Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“...quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8,35)
O relato deste domingo ocupa um lugar central e
decisivo no evangelho de Marcos. Jesus sempre teve uma presença original e
instigante no contexto social e religioso de seu tempo; sua atuação provocava
diferentes reações e ninguém podia ficar “indiferente” diante do seu modo de
ser e viver.
D’Ele se diziam muitas coisas contraditórias: que
estava “fora de si” (Mc 3,21), que era um endemoninhado (Mc 3,22), que era um
“comilão e beberrão” (Lc 7,34), “amigo dos pecadores” (Mt 11,19) e “blasfemo”
(Mc 2,7), um impostor (Mt 27,62), o profeta esperado, o mestre que ensinava
doutrinas que poderiam provocar uma rebelião (Lc 23,1), que era o “filho do
Deus vivo”...
Até que um dia, longe do seu
ambiente, longe do lago e de Jerusalém, em Cesareia de Filipe, Jesus fez aos
discípulos perguntas decisivas, que são aquelas do “meio do caminho”, perguntas
adultas.
Os discípulos já levavam um bom tempo
convivendo com Jesus; não estavam mais no entusiasmo inicial: viram e viveram o
suficiente para dar uma resposta que não dependia daquilo que os outros diziam
a respeito da identidade de Jesus. “E vós quem dizeis que eu sou?”
Chegou o momento em que eles deverão se situar diante da pergunta decisiva e que exige de todos uma tomada de posição, um ato de fé. Perceberam que a pergunta do “meio do caminho” impele-os a ir mais longe, a sondar o mistério profundo, não só da identidade de Jesus, mas da identidade de cada um. Sentiram que a resposta a ser dada a esta altura do seguimento devia iluminar o que lhes faltava percorrer, devia marcar a vida com o selo da entrega: a quem estão seguindo? Que é o que descobrem em Jesus? Que impactos causam em suas vidas a mensagem e o projeto do Mestre da Galileia?
Desde o momento em que se deixaram impactar pelo
primeiro chamado, os discípulos vivem interrogando-se sobre a identidade
de Jesus. O que mais lhes surpreende é a autoridade com que fala, a força com
que cura os enfermos, o amor com que oferece o perdão de Deus aos pecadores, a
liberdade diante da religião e da tradição do seu povo... Quem é este homem tão
diferente e tão original?
Os Evangelhos anunciam que o modo
de Jesus viver – suas atitudes, seus gestos, suas palavras
– revelava uma nova visão
das coisas, um novo ponto de partida,
uma nova ordem, um novo projeto.
Jesus era livre e essa liberdade
nos fascina até hoje.
Jesus encarnou-se num mundo fechado,
dividido, conflituoso... Fez-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores...
e a partir daí propôs um novo movimento de humanização.
Jesus
vivia a partir de um sonho primordial: o Reino.
A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixava” nos esquemas
dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixava instrumentalizar
pela instituição do Templo ou sinagoga.
Diante do seu modo original de viver, Jesus quer verificar a real motivação dos seus discípulos. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Não basta que entre eles haja opiniões diferentes mais ou menos acertadas. É fundamental que aqueles que se comprometeram com sua causa, reconheçam o “mistério” que se revela na vida d’Ele. Se não for assim, quem manterá viva sua mensagem? Que será de seu projeto do Reino de Deus? Em que terminará aquele grupo que se associou a um movimento de vida, desencadeado pelo mesmo Jesus?
O horizonte de todo ser humano é precisamente a vida
e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em
tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de
sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras
espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário
“desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o
que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.
Este esvaziamento não significa nossa anulação
enquanto “pessoas”, mas nossa potenciação. Na medida em que os aspectos que nos
limitam diminuem, aumenta o que há em nós de plenitude. Só
há seguimento de Jesus quando se dá um processo permanente de esvaziamento do
ego para viver a entrega aos outros.
Só uma pessoa esvaziada
de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.
“Renunciar a si mesmo” supõe
renunciar toda ambição pessoal. O individualismo, o egoísmo, não tem lugar na
vida de Jesus e daquele(a) que busca segui-lo.
“Carregar a cruz” também não significa buscar a dor e nem negar a vida. As palavras de Jesus não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” seus seguidores diante das consequências frente ao compromisso com a vida. “Cruz”, no seu sentido original significa “prontidão, estar de pé, preparado, mobilizado, ser fiel até o fim...”. Essa é a Cruz assumida por Jesus e essa também deve ser a cruz de quem entra no Caminho de Vida. Só essa Cruz é salvífica.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvela-lo
e desmascará-lo com todas as suas maquinações e dubiedades.
Nós, seres humanos, somos uma realidade
contraditória: experimentamos em nosso interior como que uma “dupla
identidade”: por um lado, a identidade individual (o ego) e por outro a
identidade profunda (trans-pessoal), que constitui nosso verdadeiro ser.
Na realidade, o ego não é o meu verdadeiro eu, não sou
eu. É uma falsa imagem de mim. É a ilusão de que eu sou um indivíduo separado,
independente, isolado e autônomo. Essa ilusão me distancia da comunhão com os
outros e com a Criação, nega que faço efetivamente parte de um universo imenso,
em que tudo é interdependente e está intimamente ligado entre si. O ego
exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Daí
a obsessão pelo poder e pelo domínio.
Sabemos que todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos provém da ilusão do ego que quer se impor sobre os outros.
Só na identificação
com Jesus vamos afastando as cinzas e reacendendo nosso verdadeiro eu, oblativo, aberto, expansivo... No
encontro com a identidade de Jesus descobrimos nossa verdadeira identidade.
Quando descobrimos a “boa notícia” (=evangelho) de quem somos, seremos capazes
de esvaziar a identificação com o ego e deixar-nos de viver para ele. O anúncio
do evangelho (boa-notícia) começa pelo nosso interior, levando luz para
estabelecer o “cosmos” em meio ao caos dos conflitos ali presentes.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso
ego ou falso eu.
Segundo a afirmação de Jesus, a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na
desapropriação. Podemos parafrasear as palavras de Jesus deste modo: “aquele que quer salvar seu ego, perde a vida; mas
aquele que deixa de se identificar com seu ego, vive em plenitude”.
O Evangelho nos convida, mais uma
vez, a alargar o círculo de nossa interioridade, a olhar para fora, a
descentrar-nos para encontrar o outro, a Deus, e, provavelmente, por esse
caminho, também o olhar mais autêntico e completo sobre a nossa própria vida.
O modo mais simples de traduzir
isso parece ser este: “deixa de viver
para teu eu estreito”, “não gira em torno ao teu ego, porque esse modo de vida
te aprisionará cada vez mais, e tua vida será vazia e estéril”.
Trata-se de um apelo a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.
Texto bíblico: Mc 8,27-35
Na
oração:
Como
a Lua, todos nós também temos nosso “lado oculto”: há sempre dimensões da vida
que procuramos mantê-las escondidas dos outros: feridas, fragilidades,
sentimentos dissimulados, desejos camuflados, limitações disfarçadas, pobrezas
mascaradas...
Deus
também conhece este lado oculto e o olha com compaixão. A oração é a ocasião
privilegiada para revisitar, a partir de Deus, esse lado oculto, des-velá-lo e
integrá-lo, para que nossa verdadeira identidade se manifeste.
-
Dê nomes ao seu “lado oculto”: como você reage diante dele? Como torná-lo
companheiro de estrada?
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