Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Se tua mão, teu pé, teu olho... te levam a pecar, arranca-os”
Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho
de hoje, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços
e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda
pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é uma “aliada”, está “a nosso
favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo
aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do
Reino.
Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa
e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o
mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime.
O estreitamento de mentalidade do discípulo João colide com a abertura
do coração de Jesus.
Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz. Jamais uma simples pertença grupal, uma
simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir
o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de
Deus; só Ele é a fonte única do bem. Deus só está presente onde se pratica o
bem. O bem que se faz não é, em hipótese alguma, contradição a Deus. A
força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda
atitude preconceituosa estreita.
E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do
verdadeiro discipulado.
Ser discípulo de Jesus, portanto, é compreender a vida como altar de ofertas para o bem.
O Mestre da Galileia revela o simples e,
aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio
que cura a rigidez do pre-conceito e vence a incapacidade de perceber a
ternura acolhedora em cada gesto oblativo e sua importância na construção da
vida e na recriação da dignidade humana.
Vale um copo d’água que se dá. Vale pela
importância sempre primeira do outro, não importa quem quer que seja, fazendo
valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus.
Jesus rompe toda tentação sectária em seus seguidores. Ele não
constituiu seu grupo para controlar sua salvação messiânica. Ele não é rabino
de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. Jesus não é
monopólio de ninguém. Todo aquele que está a favor do ser humano está com
Jesus. Todo aquele que trabalha pela justiça, pela paz, pela liberdade... está
em profunda sintonia com Ele. Há uma
infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais
digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos
senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários.
O(a) seguidor(a) de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.
Jesus, como bom Mestre,
aproveita da ocasião para denunciar o veneno que mata toda possibilidade para a
vivência do bem, do amor, da verdade: é a presença do “escândalo”, tanto no
nível pessoal quanto comunitário. De fato, como no tempo de Jesus, também vivemos
em uma sociedade de escândalos, que utiliza e destrói os pequenos. Há
escândalos de gastos militares, de mentiras políticas generalizadas, de riqueza
ostentosa fruto da exploração dos mais frágeis, de corrupção e violência, de
poder despótico...
Assim, o evangelho
deste domingo situa o grande pecado que consiste em “escandalizar” os
pequenos (utilizar, fazer cair, perverter, abusar) no plano social, religioso,
econômico, sexual... Trata-se do domínio de vidas e consciências. Nesse
contexto Jesus introduz a referência simbólica da mão, do pé e do olho que escandaliza ou destrói os
outros, acrescentando que o seu seguidor é capaz de “cortar” a mão ou o pé ou
de arrancar o olho, a fim de conservar-se “inteiro” para o Reino (não destruir
os outros).
É preciso, portanto, re-descobrir a espiritualidade do corpo e de todos os seus membros e órgãos, para sermos presenças compassivas, construtivas e amorosas.
A resposta de Jesus é
clara: “Corta tua mão, corta teu pé,
arranca teu olho..., renuncia-te a ser o centro para que
o outro possa viver e crescer!”.
O corpo é mediação de comunhão, de encontro..., e todos os seus
membros devem ser “cristificados”, ou seja, devem inspirar-se na corporalidade
de Jesus.
O ser humano é aqui pés, mãos e olhos, em visão ternária que se revela muito significativa. É evidente que o texto poderia ter acrescentado outros exemplos de membros vitais: língua, ouvidos... Mas, os três aqui citados condensam a totalidade humana no plano do fazer, decidir, desejar e são exemplo de um modo de proceder “cristificado” para toda a comunidade cristã.
Em primeiro lugar, “conhecemos Jesus pelos pés”; como peregrino, Ele sempre rompeu distâncias e fronteiras, fazendo-se próximo de todos para curar, animar, elevar, colocar o outro de pé.
Jesus revela que cada passo deve ser uma oração e cada
caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do
caminhante.
Na
última Ceia, quando Jesus se coloca aos pés
dos seus discípulos, não se trata apenas de um gesto de humildade, mas
sobretudo, de um gesto de cura e de amor. Porque não se pode amar alguém e
olhá-lo de cima. E também não se trata de olhá-lo de baixo para cima, sendo-lhe
submisso.
É preciso colocar-se a seus pés para ajudá-lo a reerguer-se.
Igualmente
decisivas sãos as mãos; elas adquirem uma infinidade
de formas (mãos estendidas,
enérgicas,
punho fechado, mãos abertas...).
Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão
e a riqueza
que existe em todos nós.
Jesus não ama à distância; Jesus demonstra seu amor
abraçando, abençoando, tocando...
Tocar ou nos sentir tocados
é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor.
A religiosidade popular está repleta de atitudes que
testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar
e tocar” são uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João: “Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo 1,1).
Por
fim, o olhar é o recurso não verbal
mais expressivo e sincero que possuímos: com um simples olhar podemos
transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.
Os
olhos são o “reflexo da alma”; muitas coisas que estão acontecendo no nosso
interior vão se expressar na maneira como olhamos.
“Cristificar” o olhar é entrar no fluxo do olhar compassivo de Jesus; com seu olhar intenso e penetrante Ele conseguia despertar a dimensão mais nobre e original em cada pessoa. Seus olhares falavam por sí sós, pois transmitiam sentimentos, desejos e afetos, sem necessidade de usar nenhuma palavra.
A revelação bíblica nos
diz que Deus vem ao nosso encontro pelo mais cotidiano, mais banal e próximo
dos portais: os cinco sentidos, os membros e os órgãos de nosso corpo. Eles são
grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida. É preciso aprender a
reconhecê-los como “lugares teológicos”, isto é, como território privilegiado
não apenas da manifestação de Deus, mas como possibilidade de relação com Ele.
A vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante os passos do próprio Deus em nossa direção, suas mãos providentes e cuidadosas que nos sustentam, seu olhar compassivo que nos acolhe. O corpo que somos é uma gramática de Deus: nele aprendemos a andar como Deus, a tocar como Deus, a olhar como Deus...
Texto bíblico: Mc 9,38-48
Na oração:
Este é um momento para examinar
minhas mãos, meus pés e meus olhos: eles são mediação para o encontro ou para o
escândalo na relação com os outros?
- Que tenho de arrancar-me, que
devo “perder” para não escandalizar, ou seja, para que os outros possam viver?
- Que deve a Igreja arrancar de si
mesma para não servir de escândalo aos pequenos?
- E nossa sociedade em geral, nossa política e economia neoliberal... O que terá de arrancar e cortar para que os pobres possam viver com mais dignidade?
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