Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Ephathá! Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc 7,35)
Diz um proverbio chinês que “quando
os olhos são liberados, começa-se a ver; quando os ouvidos são liberados,
começa-se a ouvir; quando a boca é liberada, começa-se a saborear, e quando a
mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a felicidade”.
Para nos livrar da auto-referência é preciso “cristificar”
nossos sentidos, tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade
que padecemos é a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a
capacidade de assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro,
aos outros e ao Outro.
Segundo o livro do Gênesis, o estado original dos
sentidos e da mente é a contemplação
e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através deles
transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.
Assim, “pensar” a realidade é acolhê-la com
gratidão e veneração. Com os sentidos oblativos, a inteligência é chamada a
“sentir” o mundo como Tabernáculo de uma Presença, que tudo dignifica e torna
sagrado.
A filosofia antiga dizia: “Não
há nada no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos”.
Todo o corpo humano é expressão:
gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela interioridade, sentimento,
espiritualidade; e os sentidos do
outro, se estão atentos, podem captar o que foi expresso.
Cessado o pensamento nós nos
transformamos num ser só de sentidos,
do jeito mesmo como nascemos.
Nós somos olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos, tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os sentidos nos humanizam.
O evangelho deste domingo condensa vários aspectos
que se oferecem a nós como luz para des-velar o lugar e a importância dos
nossos sentidos. Neste relato encontramos Jesus peregrino, fora de seu país,
atravessando terra estrangeira, um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles
que não professam a fé no Deus de Israel. Jesus, com todos os seus sentidos
ativos, quebra distâncias e se faz próximo do diferente, daquele que é
rejeitado por não ter as mesmas ideias, a mesma religião, a mesma cultura...
O relato ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus,
pois nos fala de suas mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o
seu ser a serviço do bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para
“destravar” os sentidos bloqueados do enfermo que é levado até Ele.
Jesus se revela como presença
inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver o encontro, a acolhida,
o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os pré-juízos, se aproxima e
permite que os outros se aproximem dele, oferecendo, na relação, o melhor de si
mesmo e despertando o melhor que há na outra pessoa. Assim, para uma relação
sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os sentidos corporais.
Jesus, com seus sentidos
abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o
capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora
ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa,
recupera sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
No encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte,
longe da multidão”; uma
ação personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado
na individualidade das suas dores.
-
“Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão
é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
-
“Com a saliva tocou a língua dele”: força
terapêutica da saliva.
-
“Olhando para o céu..”: Jesus olha
para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar
para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de
toda vida.
-
“Jesus suspirou”: com o sopro, prolonga o
gesto do Criador no 6º. dia da Criação; re-corda como Deus “fez tudo bem” no
início. Traz à memória o sopro do Espírito, que transforma o “caos”
existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e
pela língua, para ser transformado em palavras.
-
“E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava
teu interior!”
Depois de tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.
A sociedade na qual estamos inseridos requer de
todos nós uma nova sensibilidade para facilitar a convivência, a
transformação social e acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a
convivência social se revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes
dificuldades é a ausência de saber escutar, olhar, sentir...
Vivemos tempos de reclusão,
petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário do “ephatá-abre-te”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para
que encontrem seu lugar insubstituível na experiência da relação com os outros
e na expressão de nossa fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos
através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.
Nesse sentido, a conversão evangélica precisa chegar a
alcançar a sensibilidade para ser efetiva. Os senti-dos se fazem “espirituais”, isto é, tornam-se
sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus porque o ser
humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).
Assim, uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.
O agir cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada não podemos ter
certeza de reagir evangelicamente na vida.
Escutar, sentir, perceber as próprias sensações
físicas, as emoções primárias, as reações psíquicas...: o corpo é criativo nas
suas expressões e na arte da comunicação. A corporalidade, tanto pode ser
escutada como sentida. Tendo aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar
ou sentir as reações vocais, corporais e sentimentais do outro que padece, que
sorri, que precisa falar.
Enfim, somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que, quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida. Só assim nossa presença será mais evangélica.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração:
O
surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas todos nós
precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou talvez
alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus pelos
“territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da vida
estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...
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Deixe ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de pensar, a
outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante realidade.
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O que é preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor,
ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas
protetoras que se converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem
idealizada...); “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a)
mantém fechado(a) em uma jaula de um falso conforto...?
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O que parece claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada
da abertura aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que
conduz à descoberta de que todos somos uno com a Fonte.
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