quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Matrimônio: Amor de Deus que se faz carne

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 27º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“Desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher” (Mc 10,6) 

O evangelho deste domingo continua nos situando no contexto da subida de Jesus a Jerusalém e da instrução dada aos discípulos. A pergunta inesperada e capciosa dos fariseus sobre a licitude do homem despedir sua mulher tinha intenção de colocar Jesus numa situação constrangedora.

Mas, como bom mestre, Jesus aproveita também desta circunstância para re-situar a todos no “princípio da criação” e recuperar a essência do matrimônio.

Na realidade, a atitude de Jesus é coerente com toda sua trajetória. Se algo fica claro, no relato evangélico, é seu posicionamento decidido a favor dos “últimos”, dos “pequenos”, das “crianças”, das mulheres...

Por tudo isso, não parece casual que, depois do relato no qual defende a igualdade da mulher com relação ao homem, apareça a cena de Jesus abraçando as crianças.

Seja qual for o motivo da pergunta feita pelos fariseus, a resposta de Jesus vai se centrar neste ponto: a “intuição primeira” (e, portanto, também o “horizonte”) para a qual tende a relação amorosa entre homem e mulher é esta - “o que Deus uniu o homem não separe!”. Mas Deus não une pelas leis canônicas e sim pelo amor cuja intenção é a plena comunhão entre duas pessoas. Uma coisa é a indissolubilidade canônica e outra é a fidelidade que o casal deve atualizar cada dia e em cada instante de sua convivência.

A palavra “matrimônio” significa, etimologicamente, “múnus” ou tarefa de mãe a serviço da gestação e educação dos filhos. Mas, segundo o evangelho de Jesus, o matrimônio é uma realidade anterior: é a “matriz” ou fonte comum de vida onde duas pessoas “vivem com-vivendo e existem co-existindo”.

Significativamente, ao referir-se ao matrimônio, Jesus destacou a fidelidade ou comunhão de duas pessoas centrada na convivência mútua e não na lei de poder de um sobre outro (neste caso, do marido).

O evangelho realça a graça original do matrimônio rejeitando a pergunta de poder, segundo a lei, do fariseu: “Pode o homem despedir a mulher?” Esta é uma pergunta patriarcal que se coloca a partir do poder do homem sobre a mulher, poder que Jesus rejeita com palavras da mesma tradição israelita (Gn 1,27; 2,24-45). Jesus busca re-descobrir e potenciar o princípio superior de vida em comunhão, na linha da fidelidade pessoal e de igualdade na nobre missão de ambos, marido e mulher, se tornarem mais humanos, a partir do amor que os une e os abre à vida.

O mais interessante do Evangelho de hoje é que Jesus vai mais além de toda lei. Busca desvelar a raiz antropológica do matrimônio (o projeto de Deus) para não anular nunca o que é verdadeiramente humano.

Ao fazer referência “ao princípio” Jesus vai diretamente à essência do problema, tratando de descobrir as exigências mais profundas do ser humano (vontade de Deus).

O homem e a mulher são um lugar privilegiado de revelação e de experiência do Amor de Deus. Eles são a encarnação e a visibilização desse Amor Ágape que tem sua fonte no próprio Deus. Cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes plantadas no coração do Criador.

A palavra de Deus não se encarnou só em Jesus, mas em todo matrimônio, que é “palavra de Deus”, sendo palavra de dois, um homem e uma mulher, duas pessoas que descobrem, um no outro e com o outro, o sentido mais profundo de suas vidas, e decidem compartilhá-lo, em comunhão de amor, acima de toda lei particular, como aliança permanente. “Matrimônio”: lugar da manifestação do amor oblativo do Criador.

O caminho que mulher e homem iniciam como cônjuges (conjuntamente), não é algo estático, mas é mudança, é abertura ao novo, é movimento em direção a um amor maior. Nesse sentido, o matrimônio é o sacramento que faz mulher e homem entrarem no dinamismo expansivo do Amor de Deus. Na sua essência, o amor é oblativo, aberto, gratuito...; o amor não se fecha a dois: abre-se, amplia-se, envolve outros...; amor expansivo e que se expressa na compreensão, no perdão, no apoio, na paciência, no companheirismo...

No matrimônio, cada um é chamado a ajudar o outro a ser mais humano, mais gente, mais pessoa, mais santo(a)...; cada um tem a nobre missão de facilitar que o outro cresça e desenvolva suas capacidades, riquezas...; cada um deve ser para o outro uma presença instigante, inspiradora... À luz do Amor primeiro, ativar e despertar mutuamente os dons originais, os recursos e capacidades mobilizadores...

É querer bem, respeitar, valorizar, sentir a falta do outro, conceder espaço, querer que o outro cresça, alegrar-se com as vitórias do outro, compadecer-se com os seus fracassos...

É ajudar a manter sempre acesa a “faísca de Javé” (Cant. 8,6), a chama do amor eterno. Amor que encontra expressões diferentes de acordo com as circunstâncias e as fases da vida.

É preciso ser criativo na maneira de expressar o Amor Ágape e não deixar que a “faísca do amor divino” se atrofie pela rotina, cansaço, desencanto...

Em sentido profundo, na união conjugal, ninguém perde e nem se anula, mas os dois ganham, apresentando-se, de maneira complementária como iguais, e iniciando um processo de amor ou fidelidade pessoal sem domínio de um sobre o outro, amparados pelo mesmo Deus que se revela como Aliança de amor.

Deus garante assim o processo de fidelidade, que faz do matrimônio um contínuo recomeço e um processo de comunhão que respeita a diversidade de cada pessoa.

Por isso, na tradição judeu-cristã, a relação de um casal se expressa com as palavras: “serão os dois uma só carne”. Trata-se de uma expressão vigorosa e de uma imagem esplêndida, que destaca a unidade-na-diferença.

Sabemos que o maior inimigo do matrimônio é o egoísmo. A ânsia de buscar em tudo o benefício próprio e pessoal arruína toda possibilidade de viver relações verdadeiramente humanas. Esta busca do outro para satisfazer as necessidades do próprio ego, anula toda possibilidade de uma relação profunda de um casal. A partir da perspectiva hedonista, o casal estará fundamentado no que o outro traz de benefício, nunca no que cada um pode partilhar mutuamente. A consequência é nefasta para ambos.

Ao envelhecer juntos, meta desafiante, consuma-se o matrimônio. Assim é que se realiza a vida com-junta-mente, fazendo-se companhia digna, ajudando-se mutuamente a se tornarem mais humanos; uma companhia experimentada como dom, com alegrias e sombras, querendo-se muito e também sendo mútuo suporte, mesmo no outono da vida.

Por isso, ao falar de “indissolubilidade matrimonial”, é preciso assumir com lucidez e serenidade o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”.

Os trâmites legais que certificam o consentimento conjugal se firmam em um momento. Mas a união de duas pessoas em “comunhão de vida e amor” não é momento, mas processo; não tem efeito instantâneo a partir de uma declaração legal, nem de uma fusão biológica, nem de um artifício mágico, nem sequer de uma benção religiosa; não é uma foto estática e morta, mas um processo dinâmico e vivo.

A expressão “sim, eu quero”, não é uma fórmula mágica que produz automaticamente um vínculo indissolúvel. Para o casamento, basta meia hora. Para a consumação do matrimônio “de maneira humana”, é preciso uma vida inteira.

Texto bíblico: Mc 10,2-16

Na oração: 

Que a “faísca do Amor de Deus”, presente nos corações de todos, se transforme numa labareda, iluminando e aquecendo o cotidiano de suas vidas, inspirando e apontando caminhos para todos aqueles que, em meio às sombras, vivem tateando um sentido para suas existências.

- O Amor de Deus encontra espaço no seu interior, iluminando e dando sentido ao seu ritmo de vida?

- Quê gestos e atitudes de sua vida são transparência do Amor de Deus?

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Há mais Espiritualidade no nosso Corpo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“Se tua mão, teu pé, teu olho... te levam a pecar, arranca-os”

Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho de hoje, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é uma “aliada”, está “a nosso favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do Reino.

Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime.

O estreitamento de mentalidade do discípulo João colide com a abertura do coração de Jesus.

Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz.  Jamais uma simples pertença grupal, uma simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de Deus; só Ele é a fonte única do bem. Deus só está presente onde se pratica o bem. O bem que se faz não é, em hipótese alguma, contradição a Deus. A força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda atitude preconceituosa estreita.

E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do verdadeiro discipulado.

Ser discípulo de Jesus, portanto, é compreender a vida como altar de ofertas para o bem.

O Mestre da Galileia revela o simples e, aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio que cura a rigidez do pre-conceito e vence a incapacidade de perceber a ternura acolhedora em cada gesto oblativo e sua importância na construção da vida e na recriação da dignidade humana.

Vale um copo d’água que se dá. Vale pela importância sempre primeira do outro, não importa quem quer que seja, fazendo valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus.

Jesus rompe toda tentação sectária em seus seguidores. Ele não constituiu seu grupo para controlar sua salvação messiânica. Ele não é rabino de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. Jesus não é monopólio de ninguém. Todo aquele que está a favor do ser humano está com Jesus. Todo aquele que trabalha pela justiça, pela paz, pela liberdade... está em profunda sintonia com Ele. Há uma infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários.

O(a) seguidor(a) de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.

Jesus, como bom Mestre, aproveita da ocasião para denunciar o veneno que mata toda possibilidade para a vivência do bem, do amor, da verdade: é a presença do “escândalo”, tanto no nível pessoal quanto comunitário. De fato, como no tempo de Jesus, também vivemos em uma sociedade de escândalos, que utiliza e destrói os pequenos. Há escândalos de gastos militares, de mentiras políticas generalizadas, de riqueza ostentosa fruto da exploração dos mais frágeis, de corrupção e violência, de poder despótico...

Assim, o evangelho deste domingo situa o grande pecado que consiste em “escandalizar” os pequenos (utilizar, fazer cair, perverter, abusar) no plano social, religioso, econômico, sexual... Trata-se do domínio de vidas e consciências. Nesse contexto Jesus introduz a referência simbólica da mão, do e do olho que escandaliza ou destrói os outros, acrescentando que o seu seguidor é capaz de “cortar” a mão ou o pé ou de arrancar o olho, a fim de conservar-se “inteiro” para o Reino (não destruir os outros).

É preciso, portanto, re-descobrir a espiritualidade do corpo e de todos os seus membros e órgãos, para sermos presenças compassivas, construtivas e amorosas.

A resposta de Jesus é clara: “Corta tua mão, corta teu pé, arranca teu olho..., renuncia-te a ser o centro para que o outro possa viver e crescer!”.

O corpo é mediação de comunhão, de encontro..., e todos os seus membros devem ser “cristificados”, ou seja, devem inspirar-se na corporalidade de Jesus.

O ser humano é aqui pés, mãos e olhos, em visão ternária que se revela muito significativa. É evidente que o texto poderia ter acrescentado outros exemplos de membros vitais: língua, ouvidos... Mas, os três aqui citados condensam a totalidade humana no plano do fazer, decidir, desejar e são exemplo de um modo de proceder “cristificado” para toda a comunidade cristã.

Em primeiro lugar, “conhecemos Jesus pelos pés”; como peregrino, Ele sempre rompeu distâncias e fronteiras, fazendo-se próximo de todos para curar, animar, elevar, colocar o outro de pé.

Jesus revela que cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.

Na última Ceia, quando Jesus se coloca aos pés dos seus discípulos, não se trata apenas de um gesto de humildade, mas sobretudo, de um gesto de cura e de amor. Porque não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. E também não se trata de olhá-lo de baixo para cima, sendo-lhe submisso.

É preciso colocar-se a seus pés para ajudá-lo a reerguer-se.

Igualmente decisivas sãos as mãos; elas adquirem uma infinidade de formas (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas...). Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.

Jesus não ama à distância; Jesus demonstra seu amor abraçando, abençoando, tocando...

Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor.

A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” são uma só e mesma coisa.

Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João: “Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo 1,1).

Por fim, o olhar é o recurso não verbal mais expressivo e sincero que possuímos: com um simples olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.

Os olhos são o “reflexo da alma”; muitas coisas que estão acontecendo no nosso interior vão se expressar na maneira como olhamos.

“Cristificar” o olhar é entrar no fluxo do olhar compassivo de Jesus; com seu olhar intenso e penetrante Ele conseguia despertar a dimensão  mais nobre e original em cada pessoa. Seus olhares falavam por sí sós, pois transmitiam sentimentos, desejos e afetos, sem necessidade de usar nenhuma palavra.

A revelação bíblica nos diz que Deus vem ao nosso encontro pelo mais cotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos, os membros e os órgãos de nosso corpo. Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida. É preciso aprender a reconhecê-los como “lugares teológicos”, isto é, como território privilegiado não apenas da manifestação de Deus, mas como possibilidade de relação com Ele.

A vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante os passos do próprio Deus em nossa direção, suas mãos providentes e cuidadosas que nos sustentam, seu olhar compassivo que nos acolhe. O corpo que somos é uma gramática de Deus: nele aprendemos a andar como Deus, a tocar como Deus, a olhar como Deus...

Texto bíblico:  Mc 9,38-48

Na oração:

Este é um momento para examinar minhas mãos, meus pés e meus olhos: eles são mediação para o encontro ou para o escândalo na relação com os outros?

- Que tenho de arrancar-me, que devo “perder” para não escandalizar, ou seja, para que os outros possam viver?

- Que deve a Igreja arrancar de si mesma para não servir de escândalo aos pequenos?

- E nossa sociedade em geral, nossa política e economia neoliberal... O que terá de arrancar e cortar para que os pobres possam viver com mais dignidade?

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Uma Criança na Cátedra da Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 25º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

 “Chamou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a...” (Mc 9,36)

O relato evangélico deste domingo nos situa no começo do caminho que levará Jesus a Jerusalém. Neste momento de sua vida, ele tem consciência que as forças que se opõem à sua proposta de vida são muito fortes e não vão desistir em seu objetivo de esvaziar tal iniciativa. Jesus sente que sua vida começa a estar em perigo, mas não vai ceder em seu empenho por revelar e oferecer o amor e a justiça bondosa de Deus aos pequenos desta terra.

Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.

Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, antecipa que o poder condená-lo-á à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como consequência inevitável por viver a coerência evangélica até o extremo. As circunstâncias mostravam, com evidência, que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava. Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.

Os evangelistas sinóticos expressam esta consciência de Jesus através dos anúncios da paixão. Eles revelam que Jesus é realista ao explicitar as consequências de suas opões. Esta consciência o leva a dedicar-se com mais intensidade na formação de sua comunidade de seguidores para fortalecer suas certezas e opções e, no caso de que Ele morra, possa seguir adiante, comprometidos com a causa do Reino.

Marcos expressa com claridade que os discípulos não captam a força das palavras de Jesus e tem medo de que todas as suas expectativas venham abaixo e se obscureça o horizonte que os tinha seduzido pelos caminhos da Galileia. Eles estão longe de compreender os critérios do Reino e continuam apegados a seus ideais de êxito e poder.

Ao chegar em casa, em Cafarnaum, Jesus reúne os doze para questionar suas pretensões de poder e honra. Mais uma vez, o profeta da Galileia quebra as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço, e como critério de honra o cuidado dos pequenos e frágeis. Sua nova comunidade não pode se pautar pela busca do prestígio, do poder, da imposição, do mando...

Deste modo, Jesus coloca o serviço e a gratuidade em um lugar central nas relações dentro da nova comunidade. Com sua típica linguagem provocadora, Ele nos ensina a imaginar um mundo diferente. A partir de sua original experiência de Deus, situa tudo em outro horizonte, descobre novas possibilidades e introduz uma lógica alternativa, a da gratuidade, do esvaziamento do próprio interesse e de um deslocamento em direção aos últimos e mais frágeis.

Há algo na identidade de Jesus que chama a atenção de todos nós: sua liberdade diante de toda expressão de poder, seja no campo religioso, social e nas relações entre as pessoas. Ele tem consciência que a busca de “poder” é o pecado de morte, pois onde impera o poder ali se visibilizam toda manifestação de violência, competição, ruptura das relações, desmandos...  Para o Mestre de Nazaré, nenhum poder, muito menos o religioso, pode ser mediação de salvação e de libertação do ser humano.

Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não desejavam renunciar.

De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema respondia com hostilidade porque detectava o perigo que Jesus e sua proposta de vida representavam para ele.

Constata-se, então, o "escândalo" que a palavra e o modo de agir de Jesus provocavam em torno dele; tal escândalo procedia da sua extraordinária "autoridade". Esta expressão, presente nos evangelhos, não é fácil de ser traduzida em português. A palavra grega é "exousia" que, literalmente, refere-se ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou forçado, mas de uma atitude que emana de dentro e que se impõe por si só. “Ousia” designa o que se é ou se tem. “Ex” indica procedência, “de”. A exousia é a autoridade que sai de dentro.

Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta.

Jesus esvazia-se de todo poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. A autoridade de Jesus é uma autoridade sem poder coercitivo. Trata-se de uma autoridade moral. É a autoridade da verdade, da autenticidade, da exemplaridade. Em suas palavras e ações, Jesus deixa transparecer uma profunda experiência de Deus e isto lhe confere uma grande liberdade e explica sua autoridade. Por isso, não se pode explicar Jesus, sua vida e sua forma de agir, sem recorrer à sua experiência de intimidade com o Pai.

Sabemos que o poder foi a grande tentação dos discípulos de Jesus e dos seus seguidores ao longo da história da Igreja.

Jesus, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações inter-pessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.

Por isso, para quebrar a pretensão de poder e prestígio do seu grupo de seguidores, Jesus realiza um gesto de forte impacto: coloca uma criança no centro do grupo e a abraça. Os discípulos discutiam sobre esse “centro”, mas agora descobrem que ele está ocupado por uma criança a quem Jesus coloca de pé: esta é a nova “cátedra” a partir da qual ela ensina os(as) seguidores(as) d’Ele.

Na nova comunidade, fundada por Jesus, há uma “inversão pedagógica”: são as crianças que nos ensinam e nos conduzem, e, com um olhar assombrado, nos fazem arregalar os olhos e “ver” coisas que nunca vimos. São elas que nos fazem ver a “eterna novidade do mundo” (Fernando Pessoa).

O profeta Isaías, numa curta e maravilhosa frase, resumiu essa situação: “... e uma criança pequena os guiará” (Is 11,6). Os grandes aprendendo dos pequenos; os adultos sendo ensinados pelas crianças.

Agora Jesus nos revela que é a criança que vai mostrando o caminho. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca, as crianças sabem.

Os sábios sabem que existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce.

Recuperar a “sapientia” é preparar o caminho para a volta da criança, abafada em nosso interior.

Os adultos, para se salvar, deveriam rezar diariamente a reza mais sábia de todas:

“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).

Texto bíblicoMc 9,30-37

Na oração:

O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revela­ção de suas mazelas, violências e vaidades. E isso no campo político, religioso, nas relações entre as pessoas...

- Faça uma leitura orante de seu cotidiano e verifique se, sorrateiramente, o “veneno do poder” encontra modos de expressar “disfarçados”, petrificando seu coração, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expandir. 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Seguir JESUS é Esvaziar o Próprio ‘EGO’

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“...quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8,35) 

O relato deste domingo ocupa um lugar central e decisivo no evangelho de Marcos. Jesus sempre teve uma presença original e instigante no contexto social e religioso de seu tempo; sua atuação provocava diferentes reações e ninguém podia ficar “indiferente” diante do seu modo de ser e viver.

D’Ele se diziam muitas coisas contraditórias: que estava “fora de si” (Mc 3,21), que era um endemoninhado (Mc 3,22), que era um “comilão e beberrão” (Lc 7,34), “amigo dos pecadores” (Mt 11,19) e “blasfemo” (Mc 2,7), um impostor (Mt 27,62), o profeta esperado, o mestre que ensinava doutrinas que poderiam provocar uma rebelião (Lc 23,1), que era o “filho do Deus vivo”...

Até que um dia, longe do seu ambiente, longe do lago e de Jerusalém, em Cesareia de Filipe, Jesus fez aos discípulos perguntas decisivas, que são aquelas do “meio do caminho”, perguntas adultas.

Os discípulos já levavam um bom tempo convivendo com Jesus; não estavam mais no entusiasmo inicial: viram e viveram o suficiente para dar uma resposta que não dependia daquilo que os outros diziam a respeito da identidade de Jesus. “E vós quem dizeis que eu sou?”

Chegou o momento em que eles deverão se situar diante da pergunta decisiva e que exige de todos uma tomada de posição, um ato de fé. Perceberam que a pergunta do “meio do caminho” impele-os a ir mais longe, a sondar o mistério profundo, não só da identidade de Jesus, mas da identidade de cada um. Sentiram que a resposta a ser dada a esta altura do seguimento devia iluminar o que lhes faltava percorrer, devia marcar a vida com o selo da entrega: a quem estão seguindo? Que é o que descobrem em Jesus? Que impactos causam em suas vidas a mensagem e o projeto do Mestre da Galileia?

Desde o momento em que se deixaram impactar pelo primeiro chamado, os discípulos vivem interrogando-se sobre a identidade de Jesus. O que mais lhes surpreende é a autoridade com que fala, a força com que cura os enfermos, o amor com que oferece o perdão de Deus aos pecadores, a liberdade diante da religião e da tradição do seu povo... Quem é este homem tão diferente e tão original?

Os Evangelhos anunciam que o modo de Jesus viver – suas atitudes, seus gestos, suas palavras revelava uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto.

Jesus era livre e essa liberdade nos fascina até hoje.

Jesus encarnou-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Fez-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores... e a partir daí propôs um novo movimento de humanização.

Jesus vivia a partir de um sonho primordial: o Reino. A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixava” nos esquemas dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixava instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.

Diante do seu modo original de viver, Jesus quer verificar a real motivação dos seus discípulos. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Não basta que entre eles haja opiniões diferentes mais ou menos acertadas. É fundamental que aqueles que se comprometeram com sua causa, reconheçam o “mistério” que se revela na vida d’Ele. Se não for assim, quem manterá viva sua mensagem? Que será de seu projeto do Reino de Deus? Em que terminará aquele grupo que se associou a um movimento de vida, desencadeado pelo mesmo Jesus?

O horizonte de todo ser humano é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?

Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.

“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.

Este esvaziamento não significa nossa anulação enquanto “pessoas”, mas nossa potenciação. Na medida em que os aspectos que nos limitam diminuem, aumenta o que há em nós de plenitude. Só há seguimento de Jesus quando se dá um processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros.

Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.

“Renunciar a si mesmo” supõe renunciar toda ambição pessoal. O individualismo, o egoísmo, não tem lugar na vida de Jesus e daquele(a) que busca segui-lo.

“Carregar a cruz” também não significa buscar a dor e nem negar a vida. As palavras de Jesus não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” seus seguidores diante das consequências frente ao compromisso com a vida. “Cruz”, no seu sentido original significa “prontidão, estar de pé, preparado, mobilizado, ser fiel até o fim...”. Essa é a Cruz assumida por Jesus e essa também deve ser a cruz de quem entra no Caminho de Vida. Só essa Cruz é salvífica.

Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?

O primeiro passo será desvela-lo e desmascará-lo com todas as suas maquinações e dubiedades.

Nós, seres humanos, somos uma realidade contraditória: experimentamos em nosso interior como que uma “dupla identidade”: por um lado, a identidade individual (o ego) e por outro a identidade profunda (trans-pessoal), que constitui nosso verdadeiro ser.

Na realidade, o ego não é o meu verdadeiro eu, não sou eu. É uma falsa imagem de mim. É a ilusão de que eu sou um indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Essa ilusão me distancia da comunhão com os outros e com a Criação, nega que faço efetivamente parte de um universo imenso, em que tudo é interdependente e está intimamente ligado entre si. O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Daí a obsessão pelo poder e pelo domínio.

Sabemos que todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos provém da ilusão do ego que quer se impor sobre os outros.

Só na identificação com Jesus vamos afastando as cinzas e reacendendo nosso verdadeiro eu, oblativo, aberto, expansivo... No encontro com a identidade de Jesus descobrimos nossa verdadeira identidade. Quando descobrimos a “boa notícia” (=evangelho) de quem somos, seremos capazes de esvaziar a identificação com o ego e deixar-nos de viver para ele. O anúncio do evangelho (boa-notícia) começa pelo nosso interior, levando luz para estabelecer o “cosmos” em meio ao caos dos conflitos ali presentes.

O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo a afirmação de Jesus, a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação. Podemos parafrasear as palavras de Jesus deste modo: “aquele que quer salvar seu ego, perde a vida; mas aquele que deixa de se identificar com seu ego, vive em plenitude”.

O Evangelho nos convida, mais uma vez, a alargar o círculo de nossa interioridade, a olhar para fora, a descentrar-nos para encontrar o outro, a Deus, e, provavelmente, por esse caminho, também o olhar mais autêntico e completo sobre a nossa própria vida.

O modo mais simples de traduzir isso parece ser este: “deixa de viver para teu eu estreito”, “não gira em torno ao teu ego, porque esse modo de vida te aprisionará cada vez mais, e tua vida será vazia e estéril”.

Trata-se de um apelo a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.

Texto bíblico: Mc 8,27-35

Na oração:

Como a Lua, todos nós também temos nosso “lado oculto”: há sempre dimensões da vida que procuramos mantê-las escondidas dos outros: feridas, fragilidades, sentimentos dissimulados, desejos camuflados, limitações disfarçadas, pobrezas mascaradas...

Deus também conhece este lado oculto e o olha com compaixão. A oração é a ocasião privilegiada para revisitar, a partir de Deus, esse lado oculto, des-velá-lo e integrá-lo, para que nossa verdadeira identidade se manifeste.

- Dê nomes ao seu “lado oculto”: como você reage diante dele? Como torná-lo companheiro de estrada?

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Ressuscitar os Sentidos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“Ephathá! Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc 7,35) 

Diz um proverbio chinês que “quando os olhos são liberados, começa-se a ver; quando os ouvidos são liberados, começa-se a ouvir; quando a boca é liberada, começa-se a saborear, e quando a mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a felicidade”.

Para nos livrar da auto-referência é preciso “cristificar” nossos sentidos, tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade que padecemos é a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a capacidade de assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro, aos outros e ao Outro.

Segundo o livro do Gênesis, o estado original dos sentidos e da mente é a contemplação e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através deles transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.

Assim, “pensar” a realidade é acolhê-la com gratidão e veneração. Com os sentidos oblativos, a inteligência é chamada a “sentir” o mundo como Tabernáculo de uma Presença, que tudo dignifica e torna sagrado.

A filosofia antiga dizia: “Não há nada no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos”.

Todo o corpo humano é expressão: gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela interioridade, sentimento, espiritualidade; e os sentidos do outro, se estão atentos, podem captar o que foi expresso.

Cessado o pensamento nós nos transformamos num ser só de sentidos, do jeito mesmo como nascemos.

Nós somos olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos, tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os sentidos nos humanizam.

O evangelho deste domingo condensa vários aspectos que se oferecem a nós como luz para des-velar o lugar e a importância dos nossos sentidos. Neste relato encontramos Jesus peregrino, fora de seu país, atravessando terra estrangeira, um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles que não professam a fé no Deus de Israel. Jesus, com todos os seus sentidos ativos, quebra distâncias e se faz próximo do diferente, daquele que é rejeitado por não ter as mesmas ideias, a mesma religião, a mesma cultura...

O relato ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus, pois nos fala de suas mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o seu ser a serviço do bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos bloqueados do enfermo que é levado até Ele.

Jesus se revela como presença inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver o encontro, a acolhida, o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os pré-juízos, se aproxima e permite que os outros se aproximem dele, oferecendo, na relação, o melhor de si mesmo e despertando o melhor que há na outra pessoa. Assim, para uma relação sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os sentidos corporais.

Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa, recupera sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.

No encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.

Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma ação personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.

E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.

- “Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.

   A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.

- “Com a saliva tocou a língua dele”:  força terapêutica da saliva.

- “Olhando para o céu..”: Jesus olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.

- “Jesus suspirou”: com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. dia da Criação; re-corda como Deus “fez tudo bem” no início. Traz à memória o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.

- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”

Depois de tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.

A sociedade na qual estamos inseridos requer de todos nós uma nova sensibilidade para facilitar a convivência, a transformação social e acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a convivência social se revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes dificuldades é a ausência de saber escutar, olhar, sentir...

Vivemos tempos de reclusão, petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário do “ephatá-abre-te”.

É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência da relação com os outros e na expressão de nossa fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.

Nesse sentido, a conversão evangélica precisa chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva. Os senti-dos se fazem “espirituais”, isto é, tornam-se sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus porque o ser humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).

Assim, uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.

O agir cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada não podemos ter certeza de reagir evangelicamente na vida.

Escutar, sentir, perceber as próprias sensações físicas, as emoções primárias, as reações psíquicas...: o corpo é criativo nas suas expressões e na arte da comunicação. A corporalidade, tanto pode ser escutada como sentida. Tendo aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar ou sentir as reações vocais, corporais e sentimentais do outro que padece, que sorri, que precisa falar.

Enfim, somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que, quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida. Só assim nossa presença será mais evangélica.


Texto bíblico: Mc 7,31-37

Na oração:

O surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas todos nós precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus pelos “territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da vida estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...

- Deixe ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de pensar, a outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante realidade.

- O que é preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem idealizada...); “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em uma jaula de um falso conforto...?

- O que parece claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada da abertura aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que conduz à descoberta de que todos somos uno com a Fonte.