quinta-feira, 25 de março de 2021

Humanizar nossa Jerusalém através do Diálogo Amoroso

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o relato da "Entrada de Jesus em Jerusalém" - Domingo de Ramos


“Quando se aproximaram de Jerusalém na altura de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras... (Mc 11,1)

 

Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública.

Ele viu claramente que o melhor lugar onde Ele poderia e deveria comunicar sua mensagem era, precisamente fazer-se presente nos povoados, nas pequenas vilas, nos campos e à beira-mar, lugares habitados por humildes camponeses e pescadores, pessoas pobres e marginalizadas, doentes e excluídas.

O fato é que Jesus, para realizar sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judeia. Para comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes abastadas, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro nos grandes centros urbanos.

No entanto, Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava re-criar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...

A situação pandêmica do Covid 19 que estamos vivendo fez emergir a situação camuflada de um distanciamento humano. O isolamento sanitário e a decretação de “lockdown” em muitas cidades pôs às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...

Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força. As nossas cidades estão se revelando, cada vez com mais intensidade, como espaço de grandes rupturas e violências, lugar de exclusão e isolamento, visibilização de uma desumanização trágica.

Também os muros estão voltando à moda. Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Os muros, no interior das cidades, são muito concretos: muros sociais, religiosos, políticos, culturais... Com tantos muros é impossível construir pontes de diálogo e reconciliação.

A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência.

Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...

Esta capacidade humana de dialogar com o outro diferente, quebrar distâncias e deixar que a própria vida seja questionada pelo outro é a qualidade maior daqueles que alargam suas fronteiras e não se deixam dominar pelo medo e pelo preconceito.

O diálogo com todos é verdadeiramente o único modo para superar os desafios que temos diante da diversidade de ideias, visões, modos de ser e viver....  Quando nos encontramos, nos revelamos como pessoas vivas que tem imaginação, criatividade, sonhos..., e isso nos faz crescer e viver um humanismo mais aberto.

As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço da acolhida, da convivência, do diálogo aberto, da fraternidade e dos encontros... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.

Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser “praça comum” de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos: sentir-nos próximos uns dos outros.

Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas..., esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.

Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.

Esta é a dura contradição que estamos vivendo: se estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar as distâncias sociais e religiosas, no interior dos grandes centros urbanos.

Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência o encontro dialogal como valor ético e como hábito permanente de vida.

Somos chamados a viver o diálogo como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus.

O diálogo, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão  e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito

A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.

O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se distancia de sua cidade, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; a cidade já não é percebida como ameaça ou como objeto de domínio, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. A cidade não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do diálogo inspirador.

 


Texto bíblico:  Mc 11,1-10

Na oração:

O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.

A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde...  onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...

* Como ser portador de Boa Notícia nas grandes cidades?

* Como ser sinal de comunhão e do Amor misericordioso do Deus da Vida?

* Como transformar a vida das grandes cidades?

quinta-feira, 18 de março de 2021

Re-inventar nossa maneira de viver

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º  Domingo da Quaresma (2021).

“Quem se apega à sua vida, perde-a” (Jo 12,25)

 

Estamos chegando ao final do tempo quaresmal; abre-se a porta para a intensa vivência Pascal. Percorremos este caminho vivo de jejum, esmola e oração, centrados na pessoa de Jesus, para aprender d’Ele como viver de maneira mais oblativa, aberta, solidária... Tem sido um caminho de intensidade humana? Temos colocado o tom de nossa fé na direção da Páscoa?

O final da quaresma é tempo de olhar para trás com muita gratidão; tal atitude nos capacita para continuar olhando para frente, subindo com Jesus e seus discípulos a Jerusalém. Sempre há oportunidade para consolidar nossa vida e enraizar nossa fé. Não permitamos que continuemos passando o tempo como se nada surpreendente pudesse acontecer!

À luz da Páscoa somos movidos a re-inventar continuamente a nossa vida. Há uma outra forma de vida que subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais consciente, mais autêntica; uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios que dançam com as palavras...

“Inventar”, vem da expressão latina “inventio-onis” que significa “encontrar algo” que até agora não se havia descoberto; inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.

Por detrás da pandemia, está sendo oferecida a todos nós uma “mudança de rumo na humanidade”. Estamos sendo forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta respira, nossas cidades estão se purificando de tanta contaminação acumulada; estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra forma de inter-relação e de mais intensidade no amor...

O apelo de Jesus, no evangelho deste domingo, é para “perder” nossa vida, no sentido de não nos apegar de maneira egóica a ela e abrir-nos para recebe uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, abandonar nossas medidas de segurança, libertar-nos do domínio cego do ego, para que possa transparecer o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. Não é o auto-centrar-nos que confere dignidade à existência, mas o des-centrar-nos e deslocar-nos em favor dos outros.

Aquele que “se apega à sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!

Mas aquele que, por amor ao Reino, se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará” a vida. Sua vida transformar-se-á em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de suas vidas uma doação, um oferecimento. Assim, se deixam atravessar por Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.

É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presenças de misericórdia e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com seu compromisso ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem aparecer nas “redes sociais”, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.

“Se o grão de trigo não morre”, ou seja, se o ser humano não faz de sua vida um dom para os outros, se ele não investe a sua vida em favor da vida, acaba perdendo-se a si mesmo. Esta é a mensagem radical deste quinto domingo da quaresma: “morrer de vida”, não de morte, morrer fazendo que outros vivam, numa efusão de amor. Trata-se de “morrer de tanto viver”, nas diferentes dimensões da vida: individual, familiar, comunitário, social... Esse é o sentido da Cruz cristã: não é cruz vazia, nem um “peso morto”. É perda que se converte em ganho.

Sabemos que, à medida que nosso ego aumenta, ele se distancia da vida dos outros e só se ocupa em conservar a sua, buscando saciar sua fome devoradora para conquistar, acumular, ser o centro...

Isso lhe faz perder a capacidade de assombrar-se e de deixar-se afetar pela alegria e pela dor dos outros; tudo se converte em meio e instrumento para sua própria gratificação. O auge da afirmação de si mesmo se contrasta com a afirmação de Jesus, vista como aberração humana: “aquele que se apega à sua vida, perde-a”.  Qual é a pérola de grande valor que se oculta nesta afirmação? Onde nos quer conduzir Jesus?

É um fato central de nossa existência que a própria vida, por mais valiosa que seja, não se encontra sob nosso controle. Então precisamos nos soltar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa auto-afirmação, para que Deus possa entrar e atuar livremente em nosso interior.

Jesus recorre a uma brevíssima parábola, para fundamentar isso. Só o grão de trigo que morre dá muito fruto. Esta parábola apresenta mais uma vez, e de outro modo, a lição fundamental do Evangelho inteiro, o ponto máximo da mensagem de Jesus: o amor oblativo, o amor que se entrega a si mesmo, e que nesse perder-se a si mesmo, nesse morrer a si mesmo, gera a vida.

O ser humano se caracteriza por ser capaz de amar, por ser capaz de sair de si mesmo e entregar sua vida ou entregar-se a si mesmo por amor. A humanização ou hominização seria esse “descentramento” de si mesmo, que é centramento nos demais e no amor. A parábola do grão de trigo que morre expressa o ponto máximo dessa maturação da Humanidade; tanto é verdade que pode ser considerada como uma expressão do cume do amor. No fundo, esta parábola equivale ao mandamento novo: “Este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei; não há maior prova de amor que dar a vida” .

 

As palavras de Jesus têm também aqui a pretensão de síntese: aí se encerra toda a mensagem do Evangelho. E, na realidade, aí se encerra também toda mensagem religiosa, pois também as outras religiões chegaram a descobrir o amor, a compaixão, a solidariedade, o “des-centramento” de si como a essência da religião.

Jesus é a expressão máxima da humanidade que busca e deixa emergir o melhor que há em seu interior.

A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.

A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.

A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.

Texto bíblico:  Jo 12,20-33

Na oração:

Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica estéril. O grão de trigo precisa entregar-se, enterrar-se, perder-se... para ser fecundo. Desate a Vida de Deus que já está em você!

- Você sente resistência em fazer de sua vida uma contínua oferta em favor da vida, nos pequenos gestos de cada dia ou nos grandes momentos decisivos?

- Você captou que o centro da mensagem do evangelho é fazer da vida uma contínua doação por amor? Está dispos-to(a) a aceitar essa “morte” para viver mais plenamente?

- Sua prática cristã se reduz a cumprir ritos, devoções, práticas piedosas... ou se expressa na vivência do encontro e do diálogo amoroso, como pede a Campanha da Fraternidade deste ano?

quinta-feira, 11 de março de 2021

Tecer nossa vida à luz da verdade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Quaresma (2021).

“Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz” (Jo 3,21) 

A estas alturas da Quaresma já é tempo para termos um encontro mais profundo com Jesus, mesmo que seja de noite; para deixar-nos transformar pelo seu Espírito e começar a “nascer de novo”; para ir mudando nossa imagem “pesada e deformada” de Deus e descobrir que o Deus de nossa fé é puro Amor, comprometido com a salvação do mundo, que não quer que se perca nenhum de seus filhos(as).

O contexto do Evangelho deste domingo é a conversa noturna de Jesus com Nicodemos, uma autoridade religiosa, membro do Sinédrio. Nicodemos representante da religião judaica, Jesus portador de vida.

Nicodemos representa todos aqueles que, nos seus corações, há uma insatisfação e uma busca; são muitos os que buscam de noite, embora de dia aparentam outra coisa; são muitos os que, no silêncio da noite, buscam a verdade de Deus e de si mesmos. São muitos aqueles aos quais Deus os escuta na noite, mas para anunciar-lhes a novidade de novos amanheceres no Espírito.

Nicodemos é um desses crentes anônimos e noturnos, em cujo coração já está atuando a graça. Ele recebe, pela primeira vez, o anúncio de um rosto diferente de Deus; não de um Deus que castiga, mas de um Deus que ama; não um rosto de um Deus que condena, mas de um Deus que salva.

Jesus o convida a sair da escravidão da Lei e lhe anuncia a necessidade de “nascer de novo”; anuncia-lhe um novo princípio vital que não é precisamente o que procede da Lei, mas que procede do Espírito; revela-lhe não o Deus da Lei, mas o Deus do amor exagerado. Um amor que é capaz de enviar ao mundo seu próprio Filho; um amor que terá sua máxima expressão no alto da Cruz; um amor que não julga e nem condena; um amor tão amplo que abarca o mundo inteiro; e um chamado a viver na luz da fé e não na obscuridade da Lei.

A partir do relato, narrado em Números, no qual Moisés eleva uma serpente de bronze sobre um madeiro para que os israelitas se curassem ao olhá-la, Jesus recorda ao mestre fariseu a verdade mais absoluta: que Deus nos ama até extremos inconcebíveis, que deseja que todos tenhamos vida eterna, ou seja, vida definitiva, plena, feliz... Deus nos ama de tal maneira que chega até o limite, até a encarnação, até entregar-se a nós em seu Filho Unigênito.

Em Jesus Cristo, fica claro, de uma vez para sempre, que Deus é do mundo e o mundo é de Deus; fica claro também a universalidade do amor salvífico de Deus, pois Ele abre todas as fronteiras para se revelar como o Deus de todos os seres humanos. Isso faz cair por terra toda intolerância religiosa, todo preconceito e todo ódio. Nosso tempo pede que, frente aos conflitos e violências entre culturas e religiões, só há um remédio: o diálogo intercultural e inter-religioso, fundado no diálogo de Deus com toda a humanidade.

Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o Deus que habita tudo e tudo salva.

Na conduta de Jesus se faz presente a Verdade de Deus que é amor e realiza sua verdade amando, curando, impulsionando os seres humanos para que cheguem à sua plena realização. Nessa conduta de Jesus a humanidade encontra sua vocação.

 Na longa conversação noturna com Nicodemos, Jesus vai revelando a “verdade” do Pai, de si mesmo e de todo ser humano. Verdade que não se identifica com teorias, especulações, mas como um modo de viver. Verdade que é tecida no dia-a-dia no encontro com a Verdade revelada.

Precisamos de algumas certezas; buscamos algo sólido sobre o qual fundamentar nossa vida. Hoje, quando tudo parece discutível, nós nos perguntamos por aquilo que pode ser definitivo. Fala-se muito da verdade; é uma busca humana, mas muito delicada. Existem aqueles que, em nome da verdade, excluem, odeiam, insultam, julgam... Há outros que se fazem “donos” da verdade: dogmáticos, fanáticos... Mas, na realidade, devemos ser muito humildes na maneira de nos aproximar dela. E, no entanto, buscamos sem cessar, até descobrir algumas verdades essenciais que dão sentido à nossa existência.

O ser humano busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”. Jesus afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante da verdade do outro, caindo no fundamentalismo). O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro, transparente. A pessoa verdadeira pode entrar em consonância com a verdade do outro. Jesus é verdadeiro, revela o que é mais nobre em seu coração, não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.

“Andar na verdade” é identificá-la com o caminho mesmo da vida humana. A verdade não está na ciência abstrata, nem nas teorias puramente racionais, nem nos sistemas fechados... A verdade é a vida humana, como extensão da mesma vida de Deus. “Agir conforme a verdade” significa dizer que “nós somos a verdade”, não contra alguém, mas a favor de todos. Nós somos a verdade, os que caminhamos e vivemos no amor, sabendo que em nossa vida se expressa a Vida e da Verdade do Deus Pai.

“Agir conforme a verdade nos aproxima da luz”: significa ir tecendo dia-a-dia a existência conforme o que é coerente com o nosso ser essencial, no mais profundo de nós mesmos: uma vida na verdade, uma vida iluminada. Assusta-nos conhecer tal como somos. Sentimo-nos incomodados quando a luz penetra em nossa vida e nos des-vela. Preferimos, muitas vezes, continuar cegos, alimentando novos enganos e ilusões.

Pode parecer estranho, mas o certo é que somos capazes de viver longos anos sem ter a mínima ideia daquilo que está acontecendo em nosso interior. Podemos continuar vivendo, dia após dia, sem desejar ver o que é que, na verdade, move nossa vida e quem é que, dentro de nós, fundamenta nossas decisões.

Cada dia é tempo que nos convida a despertar e abrir os corações, escutar o Espírito e pôr-se a caminho, enquanto “a luz da vida” nos ilumina.

Despertar é simplesmente abrir nossos olhos à Luz que provém de Deus e confiar que tal luz transforme nossa maneira de ser e de viver; é preciso deixar que esta luz ilumine nossas sombras interiores, des-velando e trazendo à tona nossas aspirações e esperanças mais duradouras. Abrir os olhos à luz de Deus e escutar atônitos, fascinados, a voz divina que cada dia ressoa em nosso interior.

Trata-se de estar despertos para assumir a vida com uma consciência lúcida. O amor, a inspiração, a vida, nos movem por dentro. Tudo o que esperamos, já temos dentro de nós. Um dinamismo misterioso nos abre e nos atrai, nos impulsiona a ser, a viver. Basta “destravar” este impulso e nos deixarmos conduzir.

Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus é quando ela se deixa invadir pelo humano e é sensível a toda expressão de vida; ela “aproxima-se da luz” quando de verdade se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, sente o que Jesus sentiu, vive o que Jesus viveu...

Texto bíblico: Jo 3,14-21

Na oração:  

Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar, dialogar...

Podemos falar de uma plenitude de vida, que com toda verdade, pode-se chamar “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.

- Dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso, e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Corpo, Novo Templo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Quaresma (2021).

“Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo”. (Jo 2,21 

O evangelista João, no relato da expulsão dos “vendilhões do Templo”, revela que os conflitos maiores vividos por Jesus se deram no campo religioso; e isso esteve presente já no início de sua vida pública. Com seu gesto Jesus atinge o centro do poder religioso; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este deixou de ser espaço de encontro com o Pai e passou a ser um local de comércio explorador.

O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal; por isso, Jesus expulsa seus representantes. O Templo, o sacerdócio, a lei, já não são mais mediadores de libertação para o ser humano. Estão aí, secos e estéreis, e não estão a serviço da vida, mas da exclusão.

Jesus rejeitou o Templo e suas instituições por serem improdutivos e manipuladores; Ele pôs em evidência que a relação com Deus não necessita intermediários, como o Templo e o sacerdócio, e a relação entre as pessoas é relação de encontro e comunhão.

Por isso, Jesus não propõe sua restauração, mas seu término. Em lugar do Templo, Ele colocou o ser humano no centro, e diz “não” a uma religião fundada na Lei e no culto externo; rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e oferece uma alternativa encarnada na vida. Deus é adorado em “espírito e em verdade” e não depende de “espaços sagrados” para manifestar sua presença providente.

Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...

A partir de agora, o encontro com o Pai e com os outros não se realiza no Templo, mas fora, nas casas abertas, nas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida.

A mesa de Jesus, fora do Templo, estava aberta a todos. Ele não inicia uma nova religião, não cria um novo sacerdócio, não restaura o templo. O templo agora são as próprias pessoas que estão acima da lei e do culto.

Todos estão implicados nessa nova maneira de viver e de se relacionar com o Pai, superando o medo do castigo e confiando uns nos outros.

Segundo o evangelista João, Jesus começa sua vida pública denunciando o “deus” apresentado pelos dirigentes religiosos do Templo e em quem eles buscavam a justificação de seus poderes.

Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.

Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.

Deus era tão desconcertante como desconcertante era aquele Nazareno que eles tinham diante de si. Jesus transcende todas as religiões quando propõe uma maneira nova dos seres humanos se relacionarem com o Transcendente e entre si, onde não se faz necessário nem sacerdotes, nem templo, nem culto. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega e no serviço aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação que tem mais força, mas a acolhida e a compaixão.

A é a que faz vencer o medo diante de qualquer tentativa de domínio ou manipulação, e a solidariedade é a que possibilita que a vida se multiplique.

O Deus que Jesus revela não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se revela no amor mútuo e na entrega da própria vida.

“Mas Ele falava do templo de seu corpo”. Este é o verdadeiro Templo de Deus: o próprio “corpo” de Jesus, o Seu e o de todos os homens e mulheres que vem a Ele se unir e constituir um só “corpo de amor e solidariedade”. Este é o Templo, o “corpo messiânico”, o corpo da vida solidária de homens e mulheres que se escutam e se ajudam, se amam e se animam mutuamente. Jesus veio estabelecer um Templo Novo, pois Ele é o verdadeiro construtor, é o autêntico edificador de humanidade. Agora não é preciso sacrificar animais e dar seu sangue a Deus; não precisa de dinheiro ou banco para criar novos negócios e viver da exploração dos outros... Jesus quer humanidade e com sua própria humanidade vai construir o Templo Novo.

Surgiu um novo Templo, nosso próprio corpo, “morada sagrada” da Trindade. Costumamos distinguir entre sagrado e profano. Dentro do templo está o “sagrado”: Deus e as realidades que se relacionam com Ele. Fora do templo está o “profano”, identificado muitas vezes não só como o que não é sagrado, mas como o que se opõe ao sagrado. Curiosamente, a última página da Bíblia afirma que na Jerusalém celeste “não se vê nenhum templo” (Ap 21,22). Alguém poderia chegar à absurda conclusão que no céu não há lugar para Deus, porque não há templo.

Será esta imagem do futuro uma crítica do presente, ou seja, uma separação entre lugares onde pensamos que está Deus e lugares onde pensamos que Ele não está?

Quê acontece na terra, este espaço nosso no qual há tantos templos? Acaso Deus precisa deles, porque foi expulso dos lugares “profanos”? Não será, talvez, porque não O reconhecemos nesses lugares? Deus está em todos os lugares, sua presença providente envolve tudo e todos.

Para nós cristãos, o Templo está em Jesus e em todo ser humano que é morada do seu Espírito. Esse é o lugar do verdadeiro culto, que não se expressa em ritos vazios, mas em “fazer memória” viva de Jesus que nos impulsiona a viver como Ele. Essa é a verdadeira espiritualidade: deixar-nos conduzir pelo Espírito, no grande “templo da vida”: lugar do verdadeiro culto que se faz visível no serviço oblativo e na compaixão solidária.

Estamos nos despertando para esta realidade: hoje, os “templos” estão cada vez mais vazios; o máximo que fazemos é admirar as grandes obras de arte de um passado glorioso. Mas, ao mesmo tempo, vamos amadurecendo a consciência de que os templos são nossos corpos, os de nossos irmãos e irmãs que sofrem fugindo da violência e buscando um lar, os corpos dos “sem teto”, os corpos das vítimas do tráfego de pessoas, os corpos das pessoas exploradas por uma “economia que mata”... O templo é hoje a terra, explorada e espoliada, colocando em risco a teia de relações vitais.

Não se trata de restaurar o “templo-espaço” com todas as suas implicações, mas de voltar às origens desse “movimento itinerante” que Jesus começou pelas aldeias da Galileia, onde um pequeno grupo, entusiasmado pelo Reino, reuniam-se nas casas e partilhavam pão e vida. O movimento de Jesus é um movimento de “casas”: lugar da acolhida, do encontro, da festa, da celebração...

Seremos nós, seguidores(as) de Jesus que deveremos recordar que o “templo” não é um edifício de pedra, mas a vida inspirada pelo Espírito, em meio a um contexto social e religioso que faz da “casa do Pai uma casa de comércio”; que o verdadeiro culto que agrada a Deus é nossa relação filial com Ele, e que isso tem consequências concretas no modo como nos relacionamos com os outros. Em sintonia com o Pai, estamos mergulhados no “sagrado”, porque a vida é sagrada.

Texto bíblico: Jo 2,13-25

Na oração:

- Você sente o “pulsar” do coração de Deus nas realidades mais cotidianas: ambiente familiar, trabalho, relações, oração, descanso...?

- Diante da “cultura de morte”, como viver a “cultura do encontro”, a verdadeira “religião” de Jesus?