Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo da Quaresma (2021).
“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
No 2º. domingo da Quaresma de
cada ano, a liturgia nos convida a subir o Monte
da Transfiguração para “contemplar Jesus por dentro”, para conhecer seu
coração, seus desejos mais íntimos, seus dinamismos de vida... enfim, o
des-velamento da sua interioridade. Ao mesmo tempo, diante de Jesus
transfigurado, temos também a ocasião privilegiada para nos “olhar” por dentro
e descobrir nossa verdadeira identidade.
Todos os grandes personagens
bíblicos fizeram sua experiência de Montanha
(lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam
uma “missão” e foram abençoados). Do
alto da Montanha esta bênção foi se
espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.
Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso,
serviço...) sabia reservar momentos de Montanha
(comunhão e escuta do Pai); ali Ele buscava sentido e força para a sua
missão.
No Monte Tabor Ele
deixa “trans-parecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos
discípulos Ele “des-vela” aquilo que a visão superficial não
capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...
Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.
A Transfiguração de Jesus que Marcos relata é um símbolo das muitas
“experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende
a fazer-se rotineira, monótona, cansada, deixando-nos desanimados, sem forças
para caminhar. Mas, eis que irrompem momentos especiais, com frequência
inesperados, em que uma luz desperta nosso interior, e os olhos do coração nos
permitem ver muito mais longe e muito mais profundo do que estávamos vendo até
esse momento. A realidade é a mesma, mas aparece transfigurada para nós, com
outra figura, revelando sua dimensão interior, essa que intuíamos, mas, devido
à nossa superficialidade, tínhamos esquecido. Essas experiências,
verdadeiramente místicas, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive,
despertar nosso entusiasmo para continuar caminhando, na certeza de que “vimos o Invisível”.
Uma pessoa
transfigurada é alguém que vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente;
seu olhar contemplativo capta outra dimensão que se esconde aos olhares
superficiais e frios.
Todos carecemos
dessas experiências, para que nossa vida tenha outra inspiração, assim como os
discípulos de Jesus precisaram desse momento da Transfiguração para que, num
relance, tivessem a nítida certeza de que Ele era a “transparência do Pai” e
eles próprios sentissem confirmados no seguimento.
Hoje, nós não
podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galileia. Mas precisamos buscar
nosso Tabor interior, onde brilha a luz que nos faz “diáfanos” (transparentes),
onde se encontram as forças criativas que sustentarão nosso compromisso, onde
ouviremos a Voz que confirmará nossa filiação: “este(a)
é
meu (minha) filho(a) amado(a)”.
Despojando-nos daquilo que nos desfigura, busquemos o que nos transfigura, o que mais nos humaniza e nos diviniza. É possível que, ao contemplar nosso coração, nos deparemos com muitas surpresas que jamais imaginávamos.
Nesse sentido, a Montanha não é lugar só do encontro
íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de
nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos
nós. Por isso a transfiguração
é também descoberta do “eu profundo”, da própria realidade pessoal, do
Mistério que habita em nós. É nessa manifestação
divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único,
original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando
permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.
Nossa vocação é “trans-figurar-nos”,
superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa
originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.
Essa é a nossa
verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos
e, ao recordar isso, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar
à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é
reconhecer que somos plenitude que transborda, fonte inesgotável de sonhos,
criatividade, inspirações...
Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigura-dos(as). E é isso mesmo que se pode afirmar de todo ser humano: cada um(a) de nós é “filho(a) amado(a)”, nascido(a) daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.
Nosso “eu profundo” é luminoso,
transparente, simples, verdadeiro... Mas, para percebê-lo, é preciso nos “despertar”
e viver ancorados em nossa verdadeira identidade.
É preciso ir para além do “ego
superficial”, uma ilusão que acreditávamos ser nossa identidade e que nos fazia
viver em função dele, alimentando impulsos de poder, vaidade, imposição...
No entanto, a Transfiguração de
Jesus nos possibilita ter acesso a um “lugar” sempre estável, sólido e
permanente, onde nos fazemos presentes diante da Presença inefável.
Da transfiguração
interior à uma presença que trans-figura a realidade em que nos situamos. Não podemos
recordar quem somos para permanecer em um “monte”, isolados e acomodados, mas
para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus conflitos, e viver ali o que “temos visto e ouvido”, a partir de uma
atitude de bondade, compaixão e serviço.
A “Transfiguração”
desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e
intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para
dar sentido e valor às relações cotidianas, uma presença solidária para nos
colocar no lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a
Presença d’Aquele que se “deixa transparecer” em todos os “Tabores” da vida.
O monte da Transfiguração transforma as obscuridades humanas em caminhos de luz e esperança, o ódio em fraternidade, a divisão em vínculo... É preciso transfigurar nossas relações humanas, rompendo o círculo da intolerância, do juízo rápido e da indiferença. Por que não pensar que é uma nobre maneira de viver? Uma vida, uma cultura, uma sociedade que não se transfigura, que não transcende a existência e seus conteúdos, se desumaniza.
Trans-figurar é
deixar trans-parecer toda nossa riqueza interior. E isso não é
fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um “papel” que interpretamos. Vivemos uma
quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de
avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado,
sem horizontes, sem direção...)
O cotidiano faz-se rotineiro,
convencional e, não raro, carregado de
desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o
anonimato que ele envolve; e isso nos des-figura,
desumanizando-nos.
A luz da
Transfiguração de Jesus nos des-vela (tira o véu) e ativa a coragem a olhar
para além da “casca de nossa humanidade”, e deixar emergir nossa originalidade
e nobreza que não se deixam revelar diante do espelho, mas só numa experiência
da interioridade.
A transfiguração
de Jesus é um convite a que possamos nos transfigurar e trans-figurar os outros
e assim poder contemplar a beleza presente em cada um, muitas vezes escondida e
que se revela de maneira um tanto quanto obscura.
Crer na
Transfiguração é envolver-se no processo da transformação contínua da vida,
esperando a transfiguração definitiva.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração:
Por vezes somos levados a
conceber a aventura espiritual como uma fuga de nós mesmos, uma subida para
outra região da atmosfera mais pura que o nosso dia-a-dia.
- “Não!
Desça até o fundo de você mesmo! É dentro do seu próprio coração que Deus o
espera”.
- A busca de Deus se assemelha
mais a espeleologia do que ao alpinismo: tem mais de grutas que de cumes; mais
de interioridade que de aparência,
mais de “descida” que de “subida”.
- Diante da “trans-parência” de seu “eu
profundo” você sente temores? Resistências...?
Quais? Por que?
- “Trans-figurar” compromete com a vida; você está disposto(a) a descer do seu “Tabor” para ser presença inspiradora no seu meio?