quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Transfiguração: contemplar-nos por dentro

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Quaresma (2021).

“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2) 

No 2º. domingo da Quaresma de cada ano, a liturgia nos convida a subir o Monte da Transfiguração para “contemplar Jesus por dentro”, para conhecer seu coração, seus desejos mais íntimos, seus dinamismos de vida... enfim, o des-velamento da sua interioridade. Ao mesmo tempo, diante de Jesus transfigurado, temos também a ocasião privilegiada para nos “olhar” por dentro e descobrir nossa verdadeira identidade.

Todos os grandes personagens bíblicos fizeram sua experiência de Montanha (lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam uma “missão” e foram abençoados). Do alto da Montanha esta bênção foi se espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.

Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso, serviço...) sabia reservar momentos de Montanha (comunhão e escuta do Pai); ali Ele buscava sentido e força para a sua missão.

No Monte Tabor Ele deixa “trans-parecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos discípulos Ele “des-vela” aquilo que a visão superficial não capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...

Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.

A Transfiguração de Jesus que Marcos relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se rotineira, monótona, cansada, deixando-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que irrompem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz desperta nosso interior, e os olhos do coração nos permitem ver muito mais longe e muito mais profundo do que estávamos vendo até esse momento. A realidade é a mesma, mas aparece transfigurada para nós, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa que intuíamos, mas, devido à nossa superficialidade, tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente místicas, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, despertar nosso entusiasmo para continuar caminhando, na certeza de que “vimos o Invisível”.

Uma pessoa transfigurada é alguém que vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente; seu olhar contemplativo capta outra dimensão que se esconde aos olhares superficiais e frios.

Todos carecemos dessas experiências, para que nossa vida tenha outra inspiração, assim como os discípulos de Jesus precisaram desse momento da Transfiguração para que, num relance, tivessem a nítida certeza de que Ele era a “transparência do Pai” e eles próprios sentissem confirmados no seguimento.

Hoje, nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galileia. Mas precisamos buscar nosso Tabor interior, onde brilha a luz que nos faz “diáfanos” (transparentes), onde se encontram as forças criativas que sustentarão nosso compromisso, onde ouviremos a Voz que confirmará nossa filiação: “este(a) é meu (minha) filho(a) amado(a)”.

Despojando-nos daquilo que nos desfigura, busquemos o que nos transfigura, o que mais nos humaniza e nos diviniza. É possível que, ao contemplar nosso coração, nos deparemos com muitas surpresas que jamais imaginávamos.

Nesse sentido, a Montanha não é lugar só do encontro íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos nós. Por isso a transfiguração é também descoberta do “eu profundo”, da própria realidade pessoal, do Mistério que habita em nós. É nessa manifestação divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.

Nossa vocação é “trans-figurar-nos”, superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.

Essa é a nossa verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos e, ao recordar isso, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é reconhecer que somos plenitude que transborda, fonte inesgotável de sonhos, criatividade, inspirações...

Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigura-dos(as). E é isso mesmo que se pode afirmar de todo ser humano: cada um(a) de nós é “filho(a) amado(a)”, nascido(a) daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.

Nosso “eu profundo” é luminoso, transparente, simples, verdadeiro... Mas, para percebê-lo, é preciso nos “despertar” e viver ancorados em nossa verdadeira identidade.

É preciso ir para além do “ego superficial”, uma ilusão que acreditávamos ser nossa identidade e que nos fazia viver em função dele, alimentando impulsos de poder, vaidade, imposição...

No entanto, a Transfiguração de Jesus nos possibilita ter acesso a um “lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde nos fazemos presentes diante da Presença inefável.

Da transfiguração interior à uma presença que trans-figura a realidade em que nos situamos. Não podemos recordar quem somos para permanecer em um “monte”, isolados e acomodados, mas para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus conflitos, e viver ali o que “temos visto e ouvido”, a partir de uma atitude de bondade, compaixão e serviço.

A “Transfiguração” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor às relações cotidianas, uma presença solidária para nos colocar no lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que se “deixa transparecer” em todos os “Tabores” da vida.

O monte da Transfiguração transforma as obscuridades humanas em caminhos de luz e esperança, o ódio em fraternidade, a divisão em vínculo... É preciso transfigurar nossas relações humanas, rompendo o círculo da intolerância, do juízo rápido e da indiferença. Por que não pensar que é uma nobre maneira de viver? Uma vida, uma cultura, uma sociedade que não se transfigura, que não transcende a existência e seus conteúdos, se desumaniza.

Trans-figurar é deixar trans-parecer toda nossa riqueza interior. E isso não é fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um “papel” que interpretamos. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado, sem horizontes, sem direção...)

O cotidiano faz-se rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o anonimato que ele envolve; e isso nos des-figura, desumanizando-nos.

A luz da Transfiguração de Jesus nos des-vela (tira o véu) e ativa a coragem a olhar para além da “casca de nossa humanidade”, e deixar emergir nossa originalidade e nobreza que não se deixam revelar diante do espelho, mas só numa experiência da interioridade.

A transfiguração de Jesus é um convite a que possamos nos transfigurar e trans-figurar os outros e assim poder contemplar a beleza presente em cada um, muitas vezes escondida e que se revela de maneira um tanto quanto obscura.

Crer na Transfiguração é envolver-se no processo da transformação contínua da vida, esperando a transfiguração definitiva.

 


Texto bíblico: Mc 9,2-10

Na oração:

Por vezes somos levados a conceber a aventura espiritual como uma fuga de nós mesmos, uma subida para outra região da atmosfera mais pura que o nosso dia-a-dia.

- “Não! Desça até o fundo de você mesmo! É dentro do seu próprio coração que Deus o espera”.

- A busca de Deus se assemelha mais a espeleologia do que ao alpinismo: tem mais de grutas que de cumes; mais de interioridade que de aparência, mais de “descida” que de “subida”.

- Diante da “trans-parência” de seu “eu profundo” você sente temores? Resistências...? Quais? Por que?

- “Trans-figurar” compromete com a vida; você está disposto(a) a descer do seu “Tabor” para ser presença inspiradora no seu meio?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Quando o Espírito nos Arrasta...

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo da Quaresma (2021).

Áudio do texto: https://open.spotify.com/episode/0IapT57LW79MmaEpzFbt65?si=hvjn435dQLGq55K3sitXUQ 


“E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto...” (Mc 1,12) 

É um privilégio iniciar este tempo litúrgico, intenso e forte, chamado “tempo quaresmal”, deixando-nos “arrastar” pelo mesmo Espírito de Jesus; tempo único que nos oferece a possibilidade de fazer uma estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de plantar os pés na terra firme do evangelho e assim viver um compromisso transformador em nossa realidade. Nesse espaço e nesse tempo de maior despojamento, podemos sair de nossas inércias, podemos deixar de lado nossas seguranças e comodidades para transitar por novas paisagens. Há muitos modos de fazer isso: assumir com seriedade esse momento, investir no cuidado interior, abster-nos do rotineiro para abrir-nos ao inesperado e surpreendente...

Enfim, Quaresma sempre indica um tempo especial, de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento. E o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo quaresmal nos propõe?

O discernimento implica, em primeiro lugar, uma escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus, para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força de vida e amor, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as relações de comunhão e compromisso. É preciso, de tempos em tempos, sair de nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração. Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e com a natureza.

Neste ano, a CF está centrada no tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”: auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades... Sabemos que o diálogo implica um des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância..., nas diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural, racial... Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e pensar..., multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.

Todo primeiro domingo da quaresma a liturgia nos conduz até o deserto, onde Jesus foi “tentado”.

Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas.

Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.

As tentações não são tanto uma “prova” a superar quanto um projeto que deve ser discernido.

O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.

A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar? dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? buscando poder e sua própria glória ou a vontade de Deus?...

As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas que se opõem.

* Por um lado, está a lógica da autossuficiência, da segurança, a partir do centro, a partir de cima, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir.

* E, por outro lado, aparece a lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.

Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido” pelo Espírito ao deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.

A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel. O fato surpreendente é que Jesus começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica da Palestina: a Galileia.

Jesus rompeu com a família, afastou-se da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino.

Vivendo no meio de uma realidade conflituosa, de exploração, de desintegração das instituições, de injustiças... Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”  (Mc 1,15).

Ele vem realizar as esperanças do povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas.

Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.

Enquanto todos tinham os olhos voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém onde era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus revela sua presença nas “periferias” do mundo. A partir daí, todos nós também devemos dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.

“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)

Quê significa fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...

A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.

Texto bíblico:  Mc 1,12-15

Na oração:

Quaresma é tempo para desintoxicação existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos fechados de viver, intolerâncias, legalismos e moralismos, ...

- De que você precisa se desintoxicar? De que você precisa se alimentar ao longo deste tempo quaresmal?


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Somos “cinzas”, mas capazes de interioridade e diálogo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas, que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma.


“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17) 

O Tempo Quaresmal, como toda liturgia, só tem sentido em função da Páscoa. Por isso, estamos iniciando o grande tempo pascal da Igreja. Quarenta dias de preparação para a festa da Páscoa e, depois, cinquenta dias de celebração da Ressurreição do Senhor e da presença inspiradora de seu Espírito. Estamos no tempo forte da comunidade cristã.

Quaresma: tempo litúrgico de reconstrução de cada um de nós e da comunidade; tempo que nos motiva a colocar em questão a razão de ser da vida – para que vivemos? Sobre o que está fundamentada a nossa vida? para onde caminhamos?...

Nesse sentido dizemos que quaresma é um tempo intenso de conversão; para isso ela tem sua linguagem, sua celebração, seus exercícios e seus ritos de conversão...

Mas a conversão não é simples mudança exterior no modo de ser e agir, e sim, “mudança de senhor”; quaresma é tempo forte para consultar o interior e verificar qual é o “senhor”  que move o nosso coração. É neste contexto de conversão que se situam as práticas quaresmais: oração, jejum e esmola. Através de uma vivência mais radical dessas práticas começa a acontecer um deslocamento dos “falsos senhores” que habitam o nosso coração e, ao mesmo tempo, amplia-se o espaço interior para a presença e ação do “verdadeiro Senhor”.

Por ser um tempo especial para alimentar nossos laços comunitários, a Igreja no Brasil nos apresenta, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade, destacando algum aspecto da caminhada cristã que merece ser aprofundada, refletida, rezada, desembocando num compromisso que deve estar sempre em sintonia com o Evangelho.

Este é o tema da Campanha da Fraternidade para 2021: "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, cujo lema é: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” – Ef 2,14).

O isolamento sanitário, pelo qual estamos passando, põe às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento social e político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...

Nenhum tipo de diferença (cultura, gênero, religião, raça, classe social...) deveria romper o fluxo do respeito e diálogo entre os seres humanos, dando lugar a atitudes de violência ou ódio no convívio humano.

Quando analisamos elementos que nos unem, vemos que todos temos origem e destino iguais: habitamos a mesma casa comum, somos formados da mesma matéria (argila) e em todos nós sopra o mesmo Espírito. Já seriam elementos mais que suficientes para reconhecer que há vínculos que nos unem, que podemos ser irmãos e que devemos nos deixar conduzir pelas relações fraterno-igualitárias, pela aceitação mútua da alteridade diferente, sem jamais esquecer do totalmente Outro, de cuja fonte tudo tem sua origem.

As “Cinzas”, que são colocadas sobre nossas cabeças, deveriam despertar em nós a consciência que todos procedemos do pó; são as cinzas que nos unificam e quebram toda pretensão de poder, de vaidade, de querer se colocar acima dos outros... O que a cultura do ódio e da indiferença separa, as cinzas fazem a liga e reatam os vínculos... É com o barro das cinzas que somos reconstruídos como seres humanos, quebrados pela violência, preconceitos e ódios...

Nesse sentido, as conhecidas “práticas quaresmais” – jejum, oração e esmola – visam reconstruir nossa comunhão rompida, para que o diálogo amoroso volte a circular em nossos espaços humanos. Diálogos que se expandem em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.

A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo dialogal, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, lugar do “colóquio” íntimo com Aquele que faz do coração humano sua morada.

De sua íntima relação com o Criador, de um “sentir-se amado de coração e um saber amar com o coração”, o ser humano é movido a estabelecer uma relação fecunda com tudo e com todos:

- Na relação consigo, o ser humano é constituído pela abertura em si mesmo e para si, capacitado para a interiorização ou imanência, para ter consciência de si mesmo, para dialogar consigo mesmo, para ser autônomo e responsável em suas decisões, para ser sujeito da própria história. Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. Corre-se grandes riscos de se viver em horizontes muito estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade, atrofia a capacidade de diálogo e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território interior se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador.

- O ser humano é chamado a se relacionar com os outros, sem se confundir. Ele é ser de reciprocidade e complementariedade, que reconhece a própria singularidade, bem como a singularidade das demais pessoas. Reconhece-se a si mesmo e reconhece o outro na sua ‘distinção’, coloca-se numa atitude de relação dialogal. É o ser humano solidário que caminha lado a lado com a caravana humana.

Aqui, ganha sentido, a expressão bíblica “esmola” (“elemosyne”) que sempre está ligada à compaixão e piedade. A esmola mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva; significa ser sensível às necessidades dos outros que, em uns casos, será econômica, em outras, psicológica, em muitos, afetiva... A esmola é misericórdia em ação.

- Na relação com o mundo criado, numa perspectiva global e unitária, o ser humano, frente a todas as criaturas e ao universo, coloca-se não como dominador-depredador utilitário, mas como responsável e colaborador no aprimoramento e/ou na transformação, sem violência interesseira, e numa atitude de respeito e reverência para com o universo, dom de Deus. Descobrimos aqui o verdadeiro sentido do jejum.

 O jejum nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum só tem sentido quando brota da sensibilidade que nos faz sair de nós mesmos para viver a partilha, a comunhão.

Jejuar pode também ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua... Purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo. Implica também não se deixar levar pela tentação de falar mal dos outros, destruir reputações e ser veiculador de ódios e “fake news”.

- Por fim, segundo uma visão bíblico-cristã, para o ser humano, Deus é o grande Outro que o fundamenta e o constitui e com ele estabelece uma relação dialógica. Reconhece procedente d’Ele e a Ele se sente chamado e capacitado a uma experiência de intimidade e comunhão amorosa.

Aqui se revela o verdadeiro sentido da oração. A oração é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.

A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...

Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18

Na oração:

O diálogo é uma experiência profundamente humana de proximidade, acolhida, respeito para com quem pensa, sente e ama de maneira diferente; o diálogo amoroso desperta os sentimentos mais nobres de compaixão, mansidão, humildade.

- Viver a Quaresma é ser presença de reconciliação em situações onde o diálogo foi quebrado pelo ódio, intolerância, violência, fanatismo...

- Despertar o impulso para ser presença inspiradora e re-construtora de diálogo, frente a um mundo fragmentado.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Com suas Mãos, Jesus Tece seu Dizer e seu Fazer

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 6º  Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Áudio do texto: https://open.spotify.com/episode/6ttlEw65pyG17HSyhOYBNP?si=C8F3rhaVQQivQX_n-j5czg

“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão e tocou nele...” (Mc 1,41) 

O caminhar de Jesus pela Galileia gera situações de alívio; sua missão é aliviar o sofrimento da humanidade. Pelos caminhos, Jesus se encontra com as pessoas “des-locadas”, sem lugar e fora do convívio social. A partir do “Deus vivo” Jesus se move em direção àqueles que estavam sobrando; sua presença entre os excluídos é portadora de vida. Olhando-as nos olhos e acolhendo-as com suas mãos, Ele se deixa afetar por eles.

Jesus não se esquiva da dor, da solidão e da morte; encara-as, toca-as, revela as entranhas compassivas de Deus onde a lei vê impureza, ativa a compaixão do Pai nas entranhas das pessoas indefesas e estas encontram e recuperam sua fortaleza, sua dignidade de ser humano. Assim procede Jesus; suas mãos deixam transparecer um coração compassivo, solidário e comprometido. Muitas vezes, Ele cura os doentes através do toque, da imposição das mãos, da bênção...

O evangelho está cheio de momentos nos quais as pessoas querem tocar em Jesus, mesmo que fosse a franja de suas vestes; em outras circunstâncias, é o próprio Jesus que rompe os “protocolos sanitários” e toca os doentes, leprosos... correndo o risco de se contaminar.

Um leproso tinha, no contexto daquela época, a obrigação de viver separado, fora das povoações e distanciado da família, para evitar o risco da contaminação. E tinha o dever de gritar aos outros, prevenindo-os para que não se aproximassem. No relato deste domingo, porém, o leproso quebra o protocolo e vem ao encontro de Jesus. E faz isso, certamente, porque pressentia no profeta de Nazaré a abertura para tal.

Ora, Jesus não fica apenas na palavra: “quero”. Estende também sua mão, tocando o leproso. Podia simplesmente mandá-lo lavar-se setes vezes nas águas do rio Jordão, como o profeta do AT (2Rs 5,10); mas Ele prefere incorrer no perigo da contaminação, desejando tocar a ferida do outro, querendo compartilhar, como só o toque pode revelar, aquele sofrimento, ajudando o leproso a vencer o ostracismo interiorizado por aquela separação forçada.

Jesus não pensa nas severas restrições da Lei, mas deixa aflorar a compaixão, aquele sentimento divino que Ele encarna e torna visível. É a compaixão que o leva a quebrar o distanciamento social e compromete-se. Quando as mãos estão carregadas de compaixão, elas se tornam oblativas, abertas, servidoras... A compaixão é o sentimento que faz a conexão das mãos com o coração. Ter compaixão é ter coração nas mãos.

Tocar é algo mais que uma simples experiência psicológica; tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para outro. O leproso é tocado no sentido de encontrado, assumido, aceito, reconhecido, resgatado, abraçado. Quando toda a distância é vencida, o toque de Jesus reconstrói a humanidade ferida. Ou seja, a pessoa se sente reconstruída em sua integridade; a acolhida incondicional e o reconhecimento que Jesus lhe confere, fazem o leproso recuperar a confiança em si mesmo, abrindo-lhe um horizonte de esperança.

Sabemos que um doente, quando tocado de forma respeitosa e não invasiva, recebe estímulos de humanidade, de autoestima e confiança que facilitam o curso da sua recuperação. Um profissional de saúde deve saber que, por vezes, um simples toque ajuda a amenizar a perturbação, tranquiliza sentimentos agitados e transmite um conforto que nenhuma máquina ou medicamento transmite.

A imposição das mãos também está sendo redescoberta em seu significado sanador. Ao impor as mãos em outra pessoa, o Espirito curador de Deus inunda-a, invade suas áreas de tensão, suas paralisias, seu caos interior.

 “Tocar” é uma experiência especial; o tato é o mais visceral, originário e delicado dos sentidos; e a sensação de tocar e ser tocado é primária; basta ver como os bebês querem tocar em tudo e se acalmam quando se sentem tocados.

O toque é primordial na comunicação mútua. A chamada “fome da pele” é experiência reconhecida na vida humana. O mais leve toque pode despertar emoções, expressar calor humano que não se consegue com palavras. Reduzir os sentimentos a meras palavras cessa qualquer mensagem do coração.

O toque alivia a dor, a depressão, a ansiedade; o toque afetuoso dá segurança, faz a pessoa sentir melhor consigo mesma e com o seu ambiente; seu efeito é positivo sobre o desenvolvimento humano, provoca mudanças naquele que toca e é tocado.

É fácil dizer que na vida é preciso andar “com tato”. É verdade que com o corpo e com as mãos, expressamos ternura, abertura, proteção, acolhida, vinculação... O amor também é físico. E hoje, quando há muito contato físico sem amor, ou muitos contatos sem entrega, é necessário sentir essa unidade.

O amor toca, e assim se expressa, de muitos modos, a relação mais profunda, mais intensa e estável. O amor, atento ao outro, se expressa fisicamente de mil maneiras.

O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.

É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.

As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de expressões (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas, governar com mão de ferro”, “bordar com mão de fada”, “escrever com mão de mestre”, “abrir mão de algum direito”, “dar uma mão a alguém”, “estar de mãos atadas diante de um problema”, “lançar mão de um estratagema”, “estender a mão para alguém”, “pedir a mão da moça em casamento”, “pôr mãos à obra”, “estar nas mãos  de alguém”, “impor as mãos”...

Observando estas expressões, encontramos a “mão” como metáfora para a “força, energia, domínio”.

A aplicação figurada provém do fato de as mãos serem o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, rompemos distâncias...

Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior e que não nos pertence. Na nossa mão há a Mão da Vida; encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avançar, para nos manter de pé. Em hebraico, a mão simbolizada pela letra y (yod), é encontrada no tetragrama YHVH, que significa Javé.

As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos.

“Mãos à obra” é uma expressão acertada e precisa. Não é possível continuar fazendo elucubrações vazias sobre as coisas, divagando sobre o legalismo e o moralismo, especulando ideias piedosas e estéreis... Às vezes, em nosso meio cristão, sobram grandes ideias e palavras em excesso, mas sempre faltam mãos abertas, mãos estendidas, mãos ativas, dispostas a se sujar, a gastar-se e empenhar-se no esforço por construir, por abrir as portas à vida daqueles que estão à margem. Sempre serão mais urgentes mãos capazes de reconciliar e de elevar quem está mais afundado, mais quebrado, mais ferido; mãos capazes de suportar a própria carga e a carga alheia, daqueles que não tem quem os ajude ou de quem os defenda, a de quem não tem forças, nem esperança...

Textos bíblicos: Mc 1,40-45

Na oração:

Para rezar com o tato você deve, ainda, aprender outras linguagens: das mãos (cumprimentos, abraços, carícias, aplausos); dos lábios (beijos, consolos, palavras agradáveis); dos olhos (sorrisos, lágrimas); do coração (sensibilidade e afetos...)

Ninguém toca ninguém “de longe”. Você também estará tocando em Deus ao se aproximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor, um serviço voluntário...

templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.

- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

No Horizonte da Cotidianidade Inspiradora

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º  Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Áudio do texto no Spotify: https://open.spotify.com/episode/3cx6pBvRZFzhU1kauc8Klt?si=0rl09A7UQ92W8wTeWiqBVA


“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29) 

Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua vida pública.

É significativo o fato de que Ele se instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções adentrava-se em territórios pagãos.

Embora sua presença pública se dê numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.

Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.

A oração comunitária, a relação doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada, quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.

Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã.

Um traço característico de nossa sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.

Ao nos convidar para percorrer, junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se acamada a sogra de Pedro.

Uma mulher anônima, que só a conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.

É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.

Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.

Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.

Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e funções previamente normatizadas.

Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.

É fácil concluir que esta rede de seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante re-situar a continuidade da causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.

Trata-se, pois, de uma alternativa urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.

O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus.

Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos compromissos sociais...). 

O cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.

Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.

Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário. O amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.

Texto bíblico: Mc 1,29-39

Na oração:

O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.

- Suas atividades diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?