“Faze-me justiça contra o meu
adversário!”
(Lc 18,3)
O maior poder do mundo não é a bomba, nem o
grande capital, nem um estado autoritário e violento, nem uma igreja
triunfante, mas o rosto impotente do órfão, da viúva, do refugiado, do
excluído..., o rosto que sofre e se indigna, que olha e suplica, pois carrega
no mais profundo de si mesmo toda a energia de Deus; este é o poder que
desestabiliza, o grito dos indignados. Falamos da eficácia do “rosto
suplicante”, ou seja, do argumento dos indignados que gritam com seu
rosto, exigindo justiça.
Vivemos em um mundo que parece dominado
pela voz daqueles que vivem para impor e abafar a voz dos mais vulneráveis, um
mundo fundado na propaganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e
enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas (fake news).
Para que este mundo se transforme e
a justiça se faça presente, continua sendo necessário o grito das viúvas, a
indignação dos pobres e excluídos, a voz de todos os oprimidos da terra, aos
quais o mesmo Jesus diz: “juntai-vos e gritai ao Deus onipotente”.
Pois bem, é chegado o momento de
nos comprometer a elevar a voz, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.
Chegou o momento dos(das) grandes indignados(as), como a viúva do evangelho com
sua palavra suplicante e com sua voz que denuncia todo tipo de injustiça.
“É
muito bom gritar através das personagens o que quero gritar para o mundo” (Adriana Esteves)
Em um
mundo onde a realidade feminina era invisível, Jesus tornou-a visível. Sua
conduta e seu ensinamento foram radicalmente “contra-culturais” com relação à
mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Considerando seus gestos
e palavras, percebe-se que Jesus se mostrava sensível a tudo o que pertencia à
esfera feminina, em contraposição ao mundo masculino cultural, centrado na
dominação e submissão da mulher.
Com sua
presença e sua linguagem Jesus faz emergir o mundo vital das mulheres; ao
tirá-las do seu anonimato e trazê-las à luz, Ele realça e louva os traços
característicos da mulher. Por isso, Jesus narrou preciosas parábolas tendo as
mulheres como protagonistas, especialmente as mais pobres, como no Evangelho deste
domingo: Jesus deu
voz àquela que, por sua condição de viuvez, não tinha chance nenhuma de
expressar seu clamor por justiça.
A
mensagem e a prática de Jesus, portanto, significam uma ruptura com a situação
imperante e a introdução de um novo tipo de relação, fundado não na ordem
patriarcal da subordinação, mas no amor como mútua doação que inclui a igualdade
entre homem e mulher. A mulher irrompe como pessoa, filha de Deus, destinatária
do sonho de Jesus e convidada a ser, junto com os homens, também discípula e
membro de um novo tipo de comunidade.
Em um
contexto social e religioso no qual as relações se estabelecem através do
poder, da hierarquia, da maneira de exercer a autoridade, onde o mais forte se
impõe sobre o fraco, o rico sobre o pobre, o homem sobre a mulher, o que possui
informação sobre o ignorante, a cena da parábola deste domingo nos introduz em
uma nova ordem das relações que devem caracterizar o Reino.
A maneira
de Jesus tratar as pessoas marginalizadas, sobretudo as viúvas, pôs em marcha
um movimento de inclusão que quebrava toda pretensão de poder e de imposição.
Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, as pessoas
mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o
símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido
nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apoio social. É nesta situação
de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Fazei-me justiça!”.
Na Bíblia, as viúvas aparecem
submetidas à arbitrariedade dos poderosos, mas tem uma voz que chega até Deus. Elas ocupam um lugar especial no evangelho
de Lucas, visibilizada aqui na parábola da viúva suplicante, aquela do grito
que tudo consegue. Sua persistência inspira em todos nós a luta por libertação
das estruturas de dominação, em todas as dimensões da vida.
Contrariamente àqueles que pensam
que não vale a pena sair às ruas para gritar e protestar (no plano social e
religioso, político e eclesial), o evangelho deste domingo nos situa diante do
grito da viúva, capaz de mudar a ordem injusta do sistema.
Muitas vezes, tudo parece ficar
restrito a um grito, mas esse grito é mais profundo e eficaz que todas as vozes
opressoras, ocas, prepotentes, intolerantes, do sistema dominante. Esse grito
da viúva que chega ao coração de Deus (e à cabeça do juiz injusto), continua
sendo promessa de vida para nós.
Jesus também foi um indignado que adotou uma atitude crítica e rebelde frente ao
sistema político e religioso de seu tempo; Ele se comportou como um
“transgressor”, frente à ordem estabelecida, centrada no poder e na exclusão.
O conflito, nascido de sua indignação, define seu
modo de ser, caracteriza sua forma de viver e constitui o critério ético de sua
prática libertadora. A transgressão e a resistência foram as opções
fundamentais durante os anos de sua atividade pública, tanto no terreno
religioso como no político, ambos inseparáveis em uma teocracia que não
suportava sua liberdade e tornou-se a chave para explicar seu trágico final.
A indignação de Jesus de Nazaré com
os poderes econômicos, religiosos, políticos e patriarcais constitui um desafio
para os cristãos e cristãs de hoje e um chamado a incorporar-se ao movimento
dos indignados. E não para sacralizá-lo, mas para mobilizar e somar forças no
empenho por “um outro mundo possível”.
Precisamos alimentar uma espiritualidade da indignação,
quando é preciso reagir frente à impiedade, à violência e à injustiça que
campeiam e envenenam as relações entre as pessoas. Somos habitados pelo mesmo
Espírito que movia Jesus a ser presença original e provocativa no contexto do
seu tempo.
Na vivência do seguimento de Jesus, há algo
contraditório entre nós cristãos: somos seguidores do maior transgressor da
história e, no entanto, nos acovardamos escondidos atrás de leis, doutrinas,
ritos, que nos levam a alimentar uma cultura de indiferença e de frieza frente
à realidade que nos cerca. Precisamos ativar a atitude evangélica da denúncia
nesta sociedade perplexa que somos, neste tempo incerto que vivemos, neste
planeta ameaçado que habitamos.
Em definitiva, trata-se de deixar
ressoar o clamor dos(as) “descartados”, tantas pessoas e grupos hoje excluídos
do direito ao pão, ao trabalho, à terra, ao teto, à justiça...; deixar ecoar o
grito da terra frente a tanta destruição; deixar fluir o grito de tantas
vítimas da violência institucionalizada. Se pararmos para escutar, ouviremos
gritos insistentes. Há um clamor uníssono tão forte capaz de atravessar os
céus, ultrapassar as nuvens e não deixar de ser escutado. No fundo, é o próprio
Deus que grita nos seus filhos e filhas; escutar o grito dos últimos e dos
excluídos é escutar a voz do próprio Deus que “derruba os poderosos de seus
tronos e eleva os humildes”.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração:
Orar,
como diz S. Inácio de Loyola, é buscar e encontrar Deus em todas as coisas,
detectar sua presença como anúncio ou como denúncia, como carícia ou como
grito. A oração é sempre um clamor,
é uma aspiração, é gemido do Espírito em nós, expressão dos desejos mais
profundos da humanidade e do próprio coração.
A
oração, portanto, não é nunca um clamor estéril, nem sequer um desafogo
psíquico, mas um desejo esperançado, fundado na confiança de que o Deus, todo
misericórdia e cuidado a partir dos últimos, não abandona nunca.
-
Frente ao contexto social e político no qual vivemos, sua voz está a serviço de
quem?
-
Sua voz é prolongamento do grito indignado da viúva ou é voz conivente com a
morte?
Nenhum comentário:
Postar um comentário