“...porque não sou como os outros homens, ladrões,
desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)
Na pregação e na prática de Jesus nós nos
deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”, que
brota do encontro com a fragilidade humana. Ele, conscientemente, se compromete
com os publica-nos e pecadores, com os pobres e doentes... porque sente que
eles estão abertos ao amor de Deus.
Os “justos” (praticantes da lei e
observantes das normas religiosas), pelo contrário, vivem centrados em si
mesmos e são aqueles que entram em permanente conflito com Jesus.
Os “fariseus” são
os típicos representantes de uma espiritualidade legalista, distante da realidade
humana. Eles não percebem que, observando detalhadamente todas as leis, não
estão pensando em Deus, mas sim, em si mesmos. No fundo, não tem necessidade de
Deus. Acreditam que cumprindo perfeitamente todos os mandamentos por suas
próprias forças, tem o direito de exigir de Deus uma recompensa. Não buscam
viver o encontro com o Deus de misericórdia; o que mais lhes interessa é o
cumprimento minucioso das normas e ideais que se
impuseram a si mesmos.
De tanto se fixarem sobres
as leis, esquecem o que Deus realmente deseja do ser humano,
tornam-se frios, insensíveis... e assumem o papel de juiz para julgar o
comportamento dos outros. Por isso Jesus os condena duramente, enquanto para os
pecadores e fracos Ele se apresenta manso e misericordioso.
A
parábola do “publicano e do fariseu”
é como o espelho interior que nos des-vela (tira o véu), nos ajuda a descobrir
e acolher o que somos na realidade.
Os
personagens são muito simples, somente dois, estilizados, quase caricaturados:
o “justo” e o “pecador”. Com os dois personagens e uma eloquente imagem na qual
se vê refletida a atitude de cada um na oração, Jesus consegue nos colocar
diante do espelho de nossa interioridade, desmascarando a estupidez da
prepotência e nos animando a ativar a atitude da humildade, a mais humana das
virtudes.
Cada
um dos personagens se retrata a si mesmo em seu modo de orar. Porque, diante de
Deus, por um lado, vê-se com maior claridade o absurdo de querer se colocar
acima dos outros, e, por outro, a humanidade da humildade.
Mas o espelho mostra que os papéis estão invertidos.
Aquele que afirma ser “justo” e perfeito cumpridor das leis, na realidade é o desumano.
E aquele que se reconhece pecador, prostrando-se ao solo, na realidade é o mais
humano. Este, porque “desceu” do pedestal do ego, encontra a reconciliação.
Segundo Lucas, Jesus dirige esta parábola a alguns que
se apresentavam serem “justos” diante de Deus e desprezavam os outros. Os dois
protagonistas, que “subiram ao
templo para orar”, representam duas
atitudes religiosas contrapostas e irreconciliáveis.
Mas, qual é a atitude justa e verdadeira diante de
Deus? Esta é a pergunta de fundo.
Quando
nos vemos demasiadamente legalistas, demasiadamente perfeitos, exigentes,
rígidos, ansiosos, agressivos, intolerantes..., agiríamos bem perguntando-nos o
quanto do “fariseu” nos habita.
Na
parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de
nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se
considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da
super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de si mesmo e se
alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro
eu” que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua
verdade, nem aceito em seus limites.
Somente quando integrarmos e
nos reconciliarmos com os aspectos que tínhamos negado ou até rejeitado – o
publicano - poderemos alcançar a
paz e a harmonia estáveis. Portanto,
nosso grande empenho não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na
medida em que somos mais “completos”, porque aceitamos de maneira integral toda
a nossa verdade, vamos nos tornando mais compassivos e humanos.
A parábola nos revela que a
reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil
realidade em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em
gratuidade e em gratidão. Deus tem mais facilidade de entrar em nossa vida pela
porta da fragilidade e da limitação; ao contrário, não encontra acesso à nossa
vida quando estamos petrificados em nosso perfeccionismo e fechados em nossa
soberba.
Será
justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que
poderemos nos abrir à experiência da gratuidade divina; é quando nos encontramos
sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons
da graça divina.
A parábola nos fala da
necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente
em nossos braços o pobre “publicano interior”, de contemplá-lo com olhos
compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e
avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.
Em outras palavras, a
transformação interior só pode acontecer quando tudo quanto está em nós é
referido a Deus, ao Deus que nos ama e nos conduz à verdade de nossa existência.
Tudo quanto pensamos e
sentimos acontece na presença de Deus, Aquele que nos olha com bondade e
compaixão e que vê até o fundo de nossos pensamentos e sentimentos.
A
humildade é o coração mesmo da
mensagem bíblica; ela é a transparente verdade que enobrece e engrandece,
porque dá a exata medida de nossa fraqueza e limitação. Ela é o segredo da paz
interior.
Sabemos
que uma das fontes de angústia e ansiedade é constatar a diferença entre o que
pretendemos ser, o que gostaríamos de ser e o que realmente somos.
“A humildade é a verdade”
(S. Tereza d’Ávila);
ser o que se é, nada
acrescentar, nada tirar, aceitar seu húmus, sua condição terrosa, suas
grandezas e seus limites; maravilhar-se de que esta argila infinitamente frágil
seja habitada pela santidade e seja capaz de amar.
“Todo aquele que se exalta
será humilhado, e quem se humilha será exaltado”
(Lc 18,14).
A humildade, portanto, implica reconciliar-nos com a nossa condição
terrena, com o mundo de nossos instintos e paixões, com o nosso lado sombrio.
Nós temos necessidade de bastante contato com o chão
de nossa existência para que o salto para Deus possa acontecer. O caminho para
Deus passa sempre pela experiência da própria fraqueza.
Quando não conseguimos mais
nada, quando tudo nos foi retirado das mãos, quando somos forçados a constatar
que fracassamos, aí é também o lugar onde já não nos resta outra
coisa senão entregar-nos nas mãos de Deus, abrir nossas mãos e apresentá-las
vazias a Deus.
A experiência de Deus nunca é uma recompensa pelo nosso esforço, mas
sim, a resposta à nossa própria indigência. Entregar-nos a Deus é a meta de
todo caminho espiritual.
Texto
bíblico: Lc 18,9-14
Na
oração:
Na
perspectiva cristã nada se perde; na oração, aprendemos a acolher e a conviver
com os cacos e fragmentos de nossa vida, e a partir daí, com a graça de Deus,
podemos construir algo novo e surpreendente.
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Deixe-se “des-velar” por Deus: quanto há de “fariseu” em seu coração? Quanto há
de “publicano”?
Em que circunstâncias de sua vida transparece
o “fariseu” ou o “publicano”?