sábado, 26 de outubro de 2019

A Impiedosa Leveza de Sentir-se Superior aos Outros

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 30º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“...porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)

Na pregação e na prática de Jesus nós nos deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”, que brota do encontro com a fragilidade humana. Ele, conscientemente, se compromete com os publica-nos e pecadores, com os pobres e doentes... porque sente que eles estão abertos ao amor de Deus.
Os “justos” (praticantes da lei e observantes das normas religiosas), pelo contrário, vivem centrados em si mesmos e são aqueles que entram em permanente conflito com Jesus.
Os “fariseus” são os típicos representantes de uma espiritualidade legalista, distante da realidade humana. Eles não percebem que, observando detalhadamente todas as leis, não estão pensando em Deus, mas sim, em si mesmos. No fundo, não tem necessidade de Deus. Acreditam que cumprindo perfeitamente todos os mandamentos por suas próprias forças, tem o direito de exigir de Deus uma recompensa. Não buscam viver o encontro com o Deus de misericórdia; o que mais lhes interessa é o cumprimento minucioso das normas e ideais que se impuseram a si mesmos.
De tanto se fixarem sobres as leis, esquecem o que Deus realmente deseja do ser humano, tornam-se frios, insensíveis... e assumem o papel de juiz para julgar o comportamento dos outros. Por isso Jesus os condena duramente, enquanto para os pecadores e fracos Ele se apresenta manso e misericordioso.

A parábola do “publicano e do fariseu” é como o espelho interior que nos des-vela (tira o véu), nos ajuda a descobrir e acolher o que somos na realidade.
Os personagens são muito simples, somente dois, estilizados, quase caricaturados: o “justo” e o “pecador”. Com os dois personagens e uma eloquente imagem na qual se vê refletida a atitude de cada um na oração, Jesus consegue nos colocar diante do espelho de nossa interioridade, desmascarando a estupidez da prepotência e nos animando a ativar a atitude da humildade, a mais humana das virtudes.
Cada um dos personagens se retrata a si mesmo em seu modo de orar. Porque, diante de Deus, por um lado, vê-se com maior claridade o absurdo de querer se colocar acima dos outros, e, por outro, a humanidade da humildade.
Mas o espelho mostra que os papéis estão invertidos. Aquele que afirma ser “justo” e perfeito cumpridor das leis, na realidade é o desumano. E aquele que se reconhece pecador, prostrando-se ao solo, na realidade é o mais humano. Este, porque “desceu” do pedestal do ego, encontra a reconciliação.
Segundo Lucas, Jesus dirige esta parábola a alguns que se apresentavam serem “justos” diante de Deus e desprezavam os outros. Os dois protagonistas, que “subiram ao templo para orar”, representam duas atitudes religiosas contrapostas e irreconciliáveis.
Mas, qual é a atitude justa e verdadeira diante de Deus? Esta é a pergunta de fundo.

Quando nos vemos demasiadamente legalistas, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansiosos, agressivos, intolerantes..., agiríamos bem perguntando-nos o quanto do “fariseu” nos habita.
Na parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de si mesmo e se alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua verdade, nem aceito em seus limites.
Somente quando integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos que tínhamos negado ou até rejeitado – o publicano -  poderemos alcançar a paz e a harmonia estáveis.  Portanto, nosso grande empenho não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque aceitamos de maneira integral toda a nossa verdade, vamos nos tornando mais compassivos e humanos.
A parábola nos revela que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil realidade em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão. Deus tem mais facilidade de entrar em nossa vida pela porta da fragilidade e da limitação; ao contrário, não encontra acesso à nossa vida quando estamos petrificados em nosso perfeccionismo e fechados em nossa soberba.

Será justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir à experiência da gratuidade divina; é quando nos encontramos sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça divina.

A parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre “publicano interior”, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.
Em outras palavras, a transformação interior só pode acontecer quando tudo quanto está em nós é referido a Deus, ao Deus que nos ama e nos conduz à verdade de nossa existência.
Tudo quanto pensamos e sentimos acontece na presença de Deus, Aquele que nos olha com bondade e compaixão e que vê até o fundo de nossos pensamentos e sentimentos.

A humildade é o coração mesmo da mensagem bíblica; ela é a transparente verdade que enobrece e engrandece, porque dá a exata medida de nossa fraqueza e limitação. Ela é o segredo da paz interior.
Sabemos que uma das fontes de angústia e ansiedade é constatar a diferença entre o que pretendemos ser, o que gostaríamos de ser e o que realmente somos.
“A humildade é a verdade” (S. Tereza d’Ávila); ser o que se é, nada acrescentar, nada tirar, aceitar seu húmus, sua condição terrosa, suas grandezas e seus limites; maravilhar-se de que esta argila infinitamente frágil seja habitada pela santidade e seja capaz de amar.
                   “Todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,14).
A humildade, portanto, implica reconciliar-nos com a nossa condição terrena, com o mundo de nossos instintos e paixões, com o nosso lado sombrio.
Nós temos necessidade de bastante contato com o chão de nossa existência para que o salto para Deus possa acontecer. O caminho para Deus passa sempre pela experiência da própria fraqueza.
Quando não conseguimos mais nada, quando tudo nos foi retirado das mãos, quando somos forçados a constatar que fracassamos, aí é também o lugar onde já não nos resta outra coisa senão entregar-nos nas mãos de Deus, abrir nossas mãos e apresentá-las vazias a Deus.
A experiência de Deus nunca é uma recompensa pelo nosso esforço, mas sim, a resposta à nossa própria indigência. Entregar-nos a Deus é a meta de todo caminho espiritual.


Texto bíblico: Lc 18,9-14

Na oração:
Na perspectiva cristã nada se perde; na oração, aprendemos a acolher e a conviver com os cacos e fragmentos de nossa vida, e a partir daí, com a graça de Deus, podemos construir algo novo e surpreendente.
- Deixe-se “des-velar” por Deus: quanto há de “fariseu” em seu coração? Quanto há de “publicano”?
  Em que circunstâncias de sua vida transparece o “fariseu” ou o “publicano”?

sábado, 19 de outubro de 2019

Projeto Inaciando

Durante os meses de julho e agosto de 2019, a CVX Amar e Servir teve como estudo, em suas reuniões, o projeto “Inaciando”, de autoria do coordenador Alexandre Doelher de Oliveira, que consistia em uma visão subjetiva dos episódios mais relevantes da vida de Santo Inácio de Loyola, tendo como base oito aquarelas do pintor espanhol Carlos Sáenz de Tejada. A finalidade deste projeto foi uma reflexão e partilha das atitudes de Santo Inácio de Loyola na vida em comunidade, buscando traduzir os Exercícios Espirituais em resultados práticos de amar e servir ao próximo.

A seguir são apresentadas as aquarelas utilizadas na reflexão, com as respectivas propostas de oração e vivência:

Primeira aquarela: Inácio convalescente do ferimento adquirido na Batalha de Pamplona.
Proposta de reflexão e vivência: Quais são os obstáculos que me impedem de viver plenamente?


Segunda aquarela: Inácio em Manresa, onde adota um modelo de vida severamente penitencial e inicia a escrita dos Exercícios Espirituais.
Proposta de oração e vivência: Quais são as minhas respostas cotidianas perante o chamado de Deus?


Terceira aquarela: Inácio às margens do rio Cardoner, onde recebe uma profunda revelação de Deus.
Proposta de oração e vivência: O que me aprisiona, na minha realidade e na minha vida?


Quarta aquarela: Inácio com Francisco Xavier, em Paris.
Proposta de oração e vivência: Eu sou individualista ao propagar a mensagem de Cristo, ou permito que outros me auxiliem no trabalho de evangelização?


Quinta aquarela: Votos de Montmartre, onde Inácio e seus companheiros fundam a Companhia de Jesus.
Proposta de oração e vivência: Como realizo meu trabalho missionário?


Sexta aquarela: Inácio diante do Papa Paulo III, onde, em 3 de setembro de 1539, é aprovada a Ordem da Companhia de Jesus.
Proposta de oração e vivência: Eu tenho clareza do que eu quero para a minha vida de evangelização?


Sétima aquarela: Inácio em Roma, onde dedicou-se a difundir os Exercícios Espirituais e catequizar o povo.
Proposta de oração e vivência: Eu ofereço a Deus, integralmente, a minha liberdade, memória e entendimento? Eu sou grato(a) pelos dons que recebo Dele?


Oitava aquarela: Em 1556, morre santo Inácio de Loyola, cujo lema era “Tudo para a maior glória de Deus”.
Proposta de oração e vivência: Diante dos apelos de Cristo, como faço escolhas, tomo decisões e assumo as consequências?

Homenagem: Leitura Dramatizada

Em homenagem ao aniversário de nossa assessora Maria de Lourdes Mendonça, a CVX Amar e Servir apresentou a seguinte Leitura Dramatizada.

LETRAS

(Autoria de Alexandre Doelher)

(Leitores: Alexandre Doelher e Rocío Riveros)

- O que você está fazendo?

- Estou tentando formar uma palavra somente com boas qualidades. Você me ajuda?

- Claro! Vamos lá! Podemos começar com a letra “D” de ‘dever’. Podemos também pegar o “E” de ‘espiritualidade’.

- Ótimo! Olha, tem o “S” de ‘serviço’!

- Sim! Vamos ver se conseguimos continuar...que tal o “O” de ‘organização’ e o “R” de ‘responsabilidade’? Que palavra formou?

- “DESOR”! Que palavra estranha!

- Talvez se juntarmos o “L” de ‘luz’...e o “U” de ‘união’!

- “DESORLU”?! Mas esta palavra não existe!

- Tanto existe que conseguimos formá-la. É uma palavra...única, assim como cada um de nós devemos ser, com nossas qualidades e propósitos, sempre pensando no próximo, sempre pensando em amar e servir. Devemos, sempre, ser únicos... (Começa a mudar as letras da palavra ‘DESORLU’ de lugar, formando outra palavra: ‘LOURDES’)... Assim como você, Lourdes, é única para nós! Feliz Aniversário!

A Viúva e sua Santa Indignação

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Faze-me justiça contra o meu adversário!” (Lc 18,3)

O maior poder do mundo não é a bomba, nem o grande capital, nem um estado autoritário e violento, nem uma igreja triunfante, mas o rosto impotente do órfão, da viúva, do refugiado, do excluído..., o rosto que sofre e se indigna, que olha e suplica, pois carrega no mais profundo de si mesmo toda a energia de Deus; este é o poder que desestabiliza, o grito dos indignados. Falamos da eficácia do “rosto suplicante”, ou seja, do argumento dos indignados que gritam com seu rosto, exigindo justiça.
Vivemos em um mundo que parece dominado pela voz daqueles que vivem para impor e abafar a voz dos mais vulneráveis, um mundo fundado na propaganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas (fake news).
Para que este mundo se transforme e a justiça se faça presente, continua sendo necessário o grito das viúvas, a indignação dos pobres e excluídos, a voz de todos os oprimidos da terra, aos quais o mesmo Jesus diz: “juntai-vos e gritai ao Deus onipotente”.
Pois bem, é chegado o momento de nos comprometer a elevar a voz, como tantos homens e mulheres de nosso tempo. Chegou o momento dos(das) grandes indignados(as), como a viúva do evangelho com sua palavra suplicante e com sua voz que denuncia todo tipo de injustiça.
“É muito bom gritar através das personagens o que quero gritar para o mundo” (Adriana Esteves)

Em um mundo onde a realidade feminina era invisível, Jesus tornou-a visível. Sua conduta e seu ensinamento foram radicalmente “contra-culturais” com relação à mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Considerando seus gestos e palavras, percebe-se que Jesus se mostrava sensível a tudo o que pertencia à esfera feminina, em contraposição ao mundo masculino cultural, centrado na dominação e submissão da mulher.
Com sua presença e sua linguagem Jesus faz emergir o mundo vital das mulheres; ao tirá-las do seu anonimato e trazê-las à luz, Ele realça e louva os traços característicos da mulher. Por isso, Jesus narrou preciosas parábolas tendo as mulheres como protagonistas, especialmente as mais pobres, como no Evangelho deste domingo:  Jesus deu voz àquela que, por sua condição de viuvez, não tinha chance nenhuma de expressar seu clamor por justiça.
A mensagem e a prática de Jesus, portanto, significam uma ruptura com a situação imperante e a introdução de um novo tipo de relação, fundado não na ordem patriarcal da subordinação, mas no amor como mútua doação que inclui a igualdade entre homem e mulher. A mulher irrompe como pessoa, filha de Deus, destinatária do sonho de Jesus e convidada a ser, junto com os homens, também discípula e membro de um novo tipo de comunidade.
Em um contexto social e religioso no qual as relações se estabelecem através do poder, da hierarquia, da maneira de exercer a autoridade, onde o mais forte se impõe sobre o fraco, o rico sobre o pobre, o homem sobre a mulher, o que possui informação sobre o ignorante, a cena da parábola deste domingo nos introduz em uma nova ordem das relações que devem caracterizar o Reino.
A maneira de Jesus tratar as pessoas marginalizadas, sobretudo as viúvas, pôs em marcha um movimento de inclusão que quebrava toda pretensão de poder e de imposição.
Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, as pessoas mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apoio social. É nesta situação de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Fazei-me justiça!”.
Na Bíblia, as viúvas aparecem submetidas à arbitrariedade dos poderosos, mas tem uma voz que chega até Deus. Elas ocupam um lugar especial no evangelho de Lucas, visibilizada aqui na parábola da viúva suplicante, aquela do grito que tudo consegue. Sua persistência inspira em todos nós a luta por libertação das estruturas de dominação, em todas as dimensões da vida.
Contrariamente àqueles que pensam que não vale a pena sair às ruas para gritar e protestar (no plano social e religioso, político e eclesial), o evangelho deste domingo nos situa diante do grito da viúva, capaz de mudar a ordem injusta do sistema.
Muitas vezes, tudo parece ficar restrito a um grito, mas esse grito é mais profundo e eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes, intolerantes, do sistema dominante. Esse grito da viúva que chega ao coração de Deus (e à cabeça do juiz injusto), continua sendo promessa de vida para nós.

Jesus também foi um indignado que adotou uma atitude crítica e rebelde frente ao sistema político e religioso de seu tempo; Ele se comportou como um “transgressor”, frente à ordem estabelecida, centrada no poder e na exclusão.
O conflito, nascido de sua indignação, define seu modo de ser, caracteriza sua forma de viver e constitui o critério ético de sua prática libertadora. A transgressão e a resistência foram as opções fundamentais durante os anos de sua atividade pública, tanto no terreno religioso como no político, ambos inseparáveis em uma teocracia que não suportava sua liberdade e tornou-se a chave para explicar seu trágico final.
A indignação de Jesus de Nazaré com os poderes econômicos, religiosos, políticos e patriarcais constitui um desafio para os cristãos e cristãs de hoje e um chamado a incorporar-se ao movimento dos indignados. E não para sacralizá-lo, mas para mobilizar e somar forças no empenho por “um outro mundo possível”.

Precisamos alimentar uma espiritualidade da indignação, quando é preciso reagir frente à impiedade, à violência e à injustiça que campeiam e envenenam as relações entre as pessoas. Somos habitados pelo mesmo Espírito que movia Jesus a ser presença original e provocativa no contexto do seu tempo. 
Na vivência do seguimento de Jesus, há algo contraditório entre nós cristãos: somos seguidores do maior transgressor da história e, no entanto, nos acovardamos escondidos atrás de leis, doutrinas, ritos, que nos levam a alimentar uma cultura de indiferença e de frieza frente à realidade que nos cerca. Precisamos ativar a atitude evangélica da denúncia nesta sociedade perplexa que somos, neste tempo incerto que vivemos, neste planeta ameaçado que habitamos.
Em definitiva, trata-se de deixar ressoar o clamor dos(as) “descartados”, tantas pessoas e grupos hoje excluídos do direito ao pão, ao trabalho, à terra, ao teto, à justiça...; deixar ecoar o grito da terra frente a tanta destruição; deixar fluir o grito de tantas vítimas da violência institucionalizada. Se pararmos para escutar, ouviremos gritos insistentes. Há um clamor uníssono tão forte capaz de atravessar os céus, ultrapassar as nuvens e não deixar de ser escutado. No fundo, é o próprio Deus que grita nos seus filhos e filhas; escutar o grito dos últimos e dos excluídos é escutar a voz do próprio Deus que “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes”.


Texto bíblico:  Lc 18,1-8

Na oração:
Orar, como diz S. Inácio de Loyola, é buscar e encontrar Deus em todas as coisas, detectar sua presença como anúncio ou como denúncia, como carícia ou como grito. A oração é sempre um clamor, é uma aspiração, é gemido do Espírito em nós, expressão dos desejos mais profundos da humanidade e do próprio coração.
A oração, portanto, não é nunca um clamor estéril, nem sequer um desafogo psíquico, mas um desejo esperançado, fundado na confiança de que o Deus, todo misericórdia e cuidado a partir dos últimos, não abandona nunca.
- Frente ao contexto social e político no qual vivemos, sua voz está a serviço de quem?
- Sua voz é prolongamento do grito indignado da viúva ou é voz conivente com a morte?

sábado, 12 de outubro de 2019

Gratidão: a mais agradável das virtudes

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser este estrangeiro? (Lc 17,18)

Lucas descreve, ao longo de seu livro, o acontecimento salvífico de Jesus como uma “viagem”.
Mais uma vez, o evangelho deste domingo nos recorda que Jesus está a caminho de Jerusalém, onde os conflitos com as autoridades religiosas atingirão o ponto máximo, culminando na sua morte e na entrega total. Nessa subida, a salvação vai se fazendo presente, não só no final do caminho. Muitos dos oprimidos e excluídos, que estavam à beira do caminho, foram reconstruídos em sua dignidade pela presença itinerante de Jesus.
No seu deslocamento contínuo, Jesus está sempre com os seus sentidos abertos, atento a tudo e todos. Não é alguém distraído, centrado em si mesmo e incapaz de ver e ouvir aqueles que cruzam o seu caminho. Seus sentidos transbordam compaixão.
Nesse caminho, dez leprosos saem ao seu encontro. Assim como exigia sua condição de enfermos contagiosos (inabilitados para a convivência social), param ao longe e se comunicam através dos gritos: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”
Enfermidade é a lepra, mas maior enfermidade é a falta de fé (de enraizamento e confiança na vida, de escuta e de ajuda mútua); não cremos em Deus, não cremos unos nos outros, e assim vivemos em conflito permanente, em um mundo de leprosos, submetidos a um sistema que violenta e exclui.
É urgente superar a “lepra” de uma vida marcada por imposições e medos, optar pelo caminho de Jesus, que é a fé que salva; precisamos passar por uma profunda limpeza de pele em nosso interior, para eliminar todo vestígio das lepras da intolerância, do preconceito, da indiferença..., que rompem toda possibilidade de viver encontros humanizadores.

Jesus escuta os gritos e olha aqueles leprosos. Todos temos experiência que, dirigir nosso olhar para alguém – um olhar carregado de respeito e ternura - é um dos meios que mais o reabilita, quando este está enfermo. Muito mais ainda, quando se trata de alguém que sofre exclusão e experimenta continuamente como as pessoas desviam dele seu olhar.
Olhar cara a cara, centrar em alguém nossos olhos e deixar-nos olhar por ele, nos compromete e nos impede passar ao largo.
Ao vê-los, Jesus coloca os leprosos como protagonistas, no centro de atenção de todos. Eles lhe gritaram suplicando-lhe compaixão e isso é o que receberam já d’Ele: um olhar compadecido e atento, que percebe as necessidades deles, antes mesmo de serem explicitadas.
Estranhamos o método terapêutico que Jesus emprega aqui. Ele olha para eles e diz: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Evidentemente, Jesus não vê apenas o exterior dos doentes; seu olhar expressa que Ele os acolhe e assim lhes transmite dignidade e ativa neles a autonomia; ao olhá-los, diz que devem apresentar-se aos sacerdotes. Nessa palavra, apesar de sóbria, os doentes encontram a esperança de que os sacerdotes os proclamarão puros, e de que assim poderão voltar à comunhão humana e religiosa.

Neste ponto, o relato já poderia ser dado por concluído. Se este continua é porque o mais importante vai ser descrito a seguir. Dos dez leprosos, um deles, vendo-se curado, não chega a apresentar-se aos sacerdotes, mas dá meia volta em seu caminho para prostrar-se por terra aos pés de Jesus e manifestar-lhe uma profunda gratidão, ao mesmo tempo que louva a Deus. Com este gesto reconhece Jesus não só como seu “mestre”, mas como um sanador e Salvador.
A sua admiração por ter sido curado se torna caminho de retorno e hino de gratidão.
Este leproso samaritano está disposto a começar de novo, do zero, e Jesus com ele, iniciando um caminho arriscado de fé salvadora. Ele regressará à sua casa com a certeza de que a cura manifestada em sua pele atravessou, na realidade, todo seu ser. As palavras de Jesus “levanta-te e vai! Tua fé te salvou”, serão o motor para empreender o caminho mais uma vez, e o profundo agradecimento experimentado o fará viver de um modo novo.

O destaque do agradecimento deste samaritano se converte para nós hoje um convite a sermos agradecidos. Quem se sente agradecido para com alguém, mantém uma relação próxima com essa pessoa, está atenta a ela, escuta-a e deseja demonstrar-lhe sua gratidão.
Viver como agradecidos é reconhecer que tudo é dom, que nada nos é devido, que tudo parte de um Deus Misericórdia, cuja grandeza e bondade são insondáveis. Intuir isto, é reconhecer que só podemos viver diante d’Ele dando-lhe graças. E isso gera um modo novo de nos situar não só diante de Deus, mas também

diante dos outros e de nós mesmos.
Na experiência bíblica, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
A gratidão é a virtude humana por excelência. Por um pouco que a deixemos aflorar, a gratidão irá abrindo caminho, pacificando nosso coração e fazendo emergir, ao mesmo tempo, o melhor que há em nós.
A gratidão é um sentimento profundamente terapêutico: ela nos afasta dos obscuros pensamentos e nos situa na terra firme da presença, em sintonia com o presente.
Para que isto seja possível a gratidão deve ser um estado duradouro da personalidade. Um modo de ser que desperta a pessoa para ativa uma consciência assombrada de ter recebido um dom não buscado de alguém que não espera nada em troca, um dom que provoca um estado emotivo que a livra de ressentimentos, e que a leva a reagir, por sua vez, de modo positivo e altruísta com os demais.
Por isso, há um tom de assombro na atitude agradecida: Não só “por quê a mim?”, mas, sobretudo, “como é possível esta generosidade?”
Começamos agradecendo a alguém por algo, e isto está bem. Mas, uma vez emergida ou sentida, se permanecemos em conexão consciente com ela, a gratidão revelará aquilo realmente somos: outro nome ou dimensão de nossa verdadeira identidade.
Comprovaremos então que a gratidão não é só algo que fazemos ou sentimos, senão que é exatamente o que somos: seres vulneráveis e dependentes que, em sua verdadeira identidade, somos gratidão.
Dirigida para aqueles que nos acolhem e nos cuidam, a gratidão fará com que se renove nosso olhar para eles, para vê-los em sua verdadeira beleza e, mais além, reconhecê-los naquela mesma e única identidade que compartilhamos. Atendida em si mesma, a gratidão nos mostra que estamos em “casa”.

A gratidão é atitude fundamental para a integridade pessoal; muitos relacionam a gratidão com a maturida-de humana e com a melhoria relações interpessoais, ou ainda com a felicidade. Constata-se que as pessoas agradecidas mostram uma tendência notável a apreciar as pequenas satisfações e prazeres que costumam estar ao alcance de todos, e que muitos não percebem.
A pessoa capaz de agradecimento aparece, de modo constante, como mais extrovertida, mais aberta, mais responsável e amável. E, como facilmente podia prever-se, menos neurótica.
Uma pessoa ingrata é uma pessoa doente, incapaz de reconhecer-se cercada de tantos dons e cuidados.
Por isso, para S. Inácio, o agradecimento é a experiência humana que mais pura e decididamente mobiliza a generosidade da pessoa. Em outro contexto, o mesmo S. Inácio afirma que a ingratidão é o maior de todos os pecados. De fato, ela envenena as relações, petrificando nossa interioridade e levando-nos a um processo de desumanização.

Texto bíblico:  Lc 17,11-19

Na oração:
Todos vivemos o milagre diário da vida, mas só alguns sabem agradecer. Nossa vida inteira deve navegar em um mar de ação de graças.
A memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão. Só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.
- Faça memória de tantos dons e bens recebidos, e deixe brotar naturalmente do seu interior, o desejo uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo.

E a Mãe de Jesus estava Ali

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

“Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3)

É frequente estar perto e não ver os outros, estar junto e não se dar conta dos problemas das pessoas.
Quão importante é reaprender a olhar! É decisivo ativar um “olhar contemplativo”, capaz de “ler” por detrás das situações e compreender o que está oculto no mais profundo de cada um.
Todos “estavam” no casamento, em Caná, mas nenhum percebeu que “estava faltando vinho”. Só a Mãe de Jesus foi capaz de dar-se conta de que a festa iria terminar mal. E sai em defesa dos recém-casados, que também não estavam inteirados da situação. Graças a ela, aquilo que poderia terminar em um problema, converteu-se em festa.
A mãe Maria representa o caminho de esperança da história israelita; ela vive ainda na carência, nos tempos da lei, rito de purificações, mas conhece sua falta, sabe descobri-la e colocá-la diante de seu Filho. Dessa forma supera já o tempo de negatividade e se adianta, conhecendo e preparando aquilo que não pode resolver por si mesma. Por isso, faz o pedido ao “bom filho messiânico”, o Servidor das Bodas da humanidade, que é Jesus. Ela, a que estava presente no casamento, propicia que seu filho revele sua “hora”.
Ela não está ali para pôr condições, nem para dar conselhos, nem para proibir e controlar seus filhos, mas para desejar que “todos tenham vinho”, que possam viver em amor e bom vinho, e serem felizes.
Maria, é mãe de todas as mães que querem o melhor vinho do amor para seus filhos. Este mundo se salvará se houver mães que dizem: “eles não têm mais vinho”.

A passagem das Bodas de Caná é um relato messiânico, que marca o sentido de todo o evangelho de João, o sentido da vida cristã como festa de casamento, como festa de família. Não se diz que Maria tinha sido convidada. Ela já pertence ao espaço e tempo das Bodas, fundadas no caminho da promessa e busca humana. Em sua função de mãe messiânica, ela não é o Messias, mas está presente nas Bodas, deixando refletir nela e atualizando a experiência e esperança israelita.
Não sabemos se é que havia outros que viram e sentiram a carência de vinho, à chegada de Jesus, mas sabemos que Maria o avisou. Ela olha atenta às necessidades dos noivos, satisfeita diante de uma festa de casamento que promete felicidade a todos os que dela participam. Poderíamos dizer que ela está a serviço da festa do amor e da vida: quer que haja prazer, que haja vinho e, enquanto outros estão talvez perdidos em afazeres de menor significado, ela sabe manter distância e descobrir as necessidades das pessoas, o mesmo que fez no seu canto do Magnificat.
O evangelho de hoje destaca a carência de vinho na festa de casamento. Faltava alegria e prazer naquele ambiente judaico, obcecado em lavar-se e purificar-se. Faltava entusiasmo nas pessoas que se preparavam para a chegada de um Deus que não reconheciam. Isso sim, havia abundância de água: centenas de litros de água e de normas que não desembocavam no louvor nem na alegria. Aí é onde Maria aproveita a ocasião e situa o seu filho no centro da história de todos eles. Aí é onde Jesus antecipa a manifestação de sua autoridade: “Enchei as talhas de água!”; “agora tirai e levai ao mestre-sala!”

João começa seu evangelho recordando Jesus participando de bodas, homem da festa, a serviço do amor e da vida. Este é o Jesus verdadeiro, iniciador de Bodas, homem de festa e de vinho, promotor de uma esperança de paz (shamom), simbolizada na alegria dos convivas.
Nesta cena, há uma característica que deveria estar sempre presente na comunidade dos (as) seguidores(as) de Jesus, a Igreja: devemos passar das bodas de água e purificação (muitas leis, muitas proibições, muito rito, pedras e mais pedras...) às bodas do vinho. Que todos os homens e mulheres da terra, todas as casas, tenham o necessário para viver (pão, água, casa...), mas também o bom vinho, que é o prazer da vida, o que inspira a convivência alegre e festiva, reforçando os laços de comunhão entre todos.
Nesse sentido, a recordação da presença da Mãe de Jesus, nos revela que ela é uma mulher festeira, promessa de vinho e de amor para as pessoas sobrecarregadas sob o fardo de leis, de medos e normas que paralisam (os cântaros de pedra para a purificação).
Maria, a mãe de Jesus, quer vinho, não para ela, mas para a comunidade festiva, para todos os que buscam e querem seguir seu Filho, para todos os homens e mulheres da terra.
Ela é Virgem de Caná de Galiléia, iniciadora de evangelho, de vinho e bodas, de alegria esperançada.
A Mãe de Jesus se faz presente em todas as Bodas humanas (antes judaicas, hoje cristãs) e descobre nelas muita água para as purificações, mas carente do vinho de vida, que é a alegria dos noivos que se irradia e se expande a todos os convidados.

Maria deixa transparecer uma lucidez especial e, em gesto de serviço aberto, descobre a carência da vida. Sabe que os seres humanos foram criados para celebrar as festas do amor, para as bodas do vinho em plenitude, e por isso sofre ao vê-los carentes, sofridos, incompletos, submetidos à água dos ritos e purificações do mundo. Sua presença inspiradora quer conduzi-los à nova família do Reino, onde a festa não terá fim.
A mãe sabe olhar, mas não pode remediar. Ela se encontra diante de um mistério que a ultrapassa, diante de uma carência que não pode solucionar por si mesma. Logicamente acode ao seu Filho: “Eles não têm mais vinho”. Ela leva até Jesus as carências das pessoas. A indicação é delicada, respeitosa para com o momento do seu Filho.
Isto significa que a hora, o tempo e o gesto de Jesus não é marcado por Maria. No entanto, se considerarmos com mais profundidade, descobriremos que a mesma resposta negativa de Jesus deixa emergir um tipo de assentimento implícito: Jesus não rejeita a observação de sua mãe, não nega a carência de vinho. Simplesmente indica que a “hora” se encontra nas mãos de seu Pai dos céus.
Ela aceita a palavra de Jesus, sua transcendência. Sabe que não pode impor-lhe nem mandar n’Ele, traçando para Ele um caminho neste mundo. Mas ela pode, sim, dirigir-se aos responsáveis da festa, a todos os homens e mulheres da terra: “Fazei tudo o que Ele vos disser!”

Assim, Maria deixa a resposta nas mãos de Jesus, deixa o tempo de sua “hora” e, colocando-se no plano dos servidores, apresenta-se como a grande “diaconisa”, a primeira servidora da festa: prepara assim o ambiente para que a transformação das Bodas aconteça. Está ali para ocupar-se das pessoas, daqueles famintos e oprimidos que querem chegar até as bodas da alegria e da vida da terra, mas não podem fazer isso porque falta o vinho do amor e da vida, a alegria da festa.
Ela está ali presente, realizando uma função superior: prepara os servidores (diakonoi) do banquete, ensinando-os a acolher e a escutar seu filho Jesus.
Ela está com os diáconos, servidores do banquete, anunciando e preparando a felicidade prazerosa que se aproxima. Ela está a serviço do festim de manjares suculentos e vinhos generosos que o Deus de seu Filho Jesus Cristo preparou sobre o monte da terra, conforme Is 25,6.

Evangelho:  Jo 2,1-11

Na oração:
- Sinta tudo o que há de água depositada e parada em sua vida, com a desculpa de usá-la como purificação na relação com Deus; sinta-se como talha de pedra, fria e rígida, que o (a) torna incapaz de mobilizar sua vida em favor da vida.
- Reconheça e agradeça tudo o que na sua vida se parece com o vinho, que lhe dilata e lhe dá sentido de festa.
Vinho expansivo que provoca alegria, abundância, reconstrução de novas relações...

sábado, 5 de outubro de 2019

A Aventura da Fé

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 27º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Senhor, aumenta a nossa fé”  (Lc 17,5)

Os relatos evangélicos nos oferecem a possibilidade de conhecer o “caminho” aberto por Jesus. É o que revela a mensagem do evangelho deste domingo, a partir do pedido dos apóstolos: “aumenta nossa fé!”.
Jesus não responde diretamente, pois quer dar a entender que a petição não está bem formulada. Não se trata de quantidade, mas de autenticidade. Jesus não lhes podia aumentar a fé, por mínima que fosse. A fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela deve crescer a partir de dentro, como o grão de mostarda.
A fé é uma vivência de Deus; por isso, não tem nada que ver com a quantidade.
Efetivamente, podemos dizer que a fé é um dom de Deus, mas um dom que já foi dado a todos; à medida que a pessoa entra em sintonia com a presença de Deus em tudo e em todos, sua fé se expande e amadurece, ativando todas suas potencialidades humanas e abrindo-a a um compromisso de vida.
Precisamos revisar nosso modo de entender e viver a fé cristã, muitas vezes, passiva e estática, infantil e imatura. A não é “algo” que uns tem e outros não. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se expande... Segundo S. Paulo, se cremos em Jesus Cristo “nosso interior vai se renovando de dia em dia” (2Cor. 4,16).  A fé viva e operante amadurece no coração de quem vive como discípulo(a) e seguidor(a) de Jesus.
Nesse sentido, a imagem da amoreira transplantada no mar está nos dizendo que toda a força de Deus já está presente em cada um de nós. Aquele que tem confiança em Deus, poderá expandir toda essa energia.
A fé não é um ato, nem uma série de atos, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Confiar naquilo que realmente somos nos dá uma liberdade de movimento para desatar todas as nossas possibilidades humanas.

Sabemos que Jesus desencadeou um movimento profético em favor da vida, mobilizando seguidores(as) a quem confiou a missão de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. Por isso, o mais importante para reavivar a fé cristã é ativar a decisão de viver como seguidores(as) seus(suas).
Nesta perspectiva, o critério primeiro e a chave decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o mistério que se revela n’Ele, situa-se na perspectiva correta para entender Sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar a serviço do Reino de Deus. O seguimento constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a uma comunidade cristã expandir sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, mais que ter fé em Jesus, o decisivo é “viver a fé de Jesus”; seguir Jesus é a opção primeira que há de fazer um cristão. Esta decisão muda tudo. É começar a viver, de maneira nova e criativa, a adesão a Jesus e a pertença à sua comunidade. Encontrar, por fim, o caminho, a verdade, o sentido, a razão do viver cotidiano. Concretamente, viver a “fé de Jesus é crer no que Ele acreditou, dar importância ao que Ele dava, interessar-nos por aquilo que Ele se interessou, defender a causa que Ele defendeu, olhar as pessoas como Ele as olhava, aproximar-nos daqueles que sofrem como Ele se aproximava, sofrer por aquilo que Ele sofria, confiar no Pai como Ele confiava, enfrentarmos a vida e a morte com a esperança com a qual Ele enfrentou. 
No seguimento, vamos buscando uma maneira criativa de viver hoje o que Jesus viveu no seu tempo.

Jesus, narrado nos evangelhos, nos ensina a viver a fé, não por obrigação, mas por atração. Faz-nos viver a vida cristã, não como um dever, mas como discípulos(as) e seguidores(as), seduzidos(as) por Ele. No encontro com seu Evangelho, aprendemos seu estilo de viver e descobrimos formas mais humanas e evangélicas de pensar, viver, celebrar e contagiar nossa fé.
Parece uma afirmação óbvia: ser cristão é ser seguidor de uma Pessoa, Jesus Cristo. No entanto, grande parte dos cristãos estão mais preocupados em seguir uma doutrina, uma religião, ou centrar a vida na prática fundamentalista de leis ou normas morais. Muitos buscam mais uma religião que dá segurança e não o Evangelho que inquieta e desinstala.
Ter fé é, sobretudo, viver de acordo com os valores segundo os quais vivia Jesus. Uma primeira afirmação importante: vida. A fé é uma vida, uma relação pessoal que nos faz caminhar para aquela expressão feliz de S. Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
Um caminho, durante o qual vamos vivendo uma relação pessoal e um progressivo crescimento.
A fé, portanto, é vida e, como tal, tem todas as características da vida, com um suplemento a mais: é vida aberta à vida eterna, à imortalidade; vida que se inspira no modo de viver de Jesus: vida oblativa, inspiradora, comprometida em favor da vida.

O seguimento exige uma dinâmica de movimento. E seguimento não é questão de razão (doutrina) mas de paixão, sedução, afeto (coração). Seguir Jesus significa viver a aventura da fé: fazer caminho com Ele, identificar-se cada vez mais com Ele, revestir-se do Seu estilo de vida...
Infelizmente, tal como é vivida hoje por muitos, a fé cristã não suscita “seguidores”, mas só adeptos de uma religião. Não gera “discípulos(as)” que, identificados(as) com seu projeto, se entregam a abrir caminhos ao Reino de Deus, mas membros de uma instituição que cumprem melhor ou pior suas obrigações religiosas. Muitos deles correm o risco de não conhecer nunca a experiência mais originária e apaixonante: o encontro pessoal com Jesus. Na realidade, nunca tomaram a decisão firme de segui-lo.
A maioria dos cristãos não querem amadurecer na fé por medo das exigências que isso implica.
Alguns se instalam interiormente: já não crescem, não se deixam questionar pelo Evangelho; não creem em sua própria conversão, não se arriscam em aproximar-se de Jesus... Outros vivem sua fé de maneira rotineira e repetitiva: com isso, a oração se faz fórmula, o evangelho torna-se letra morta, a Igreja se transforma em “ong”, a autoridade se faz poder, a missão se reduz a propaganda, o culto vira ritualismo, a ação moral se revela ação de escravos e a fé viva na pessoa de Jesus vai se apagando.

Finalmente, a parábola do empregado cuja única obrigação é fazer o que lhe fora pedido, sem mérito algum, está na linha da crítica de Jesus aos fariseus por confiarem no cumprimento da Lei como único caminho de salvação. Trata-se do eterno problema da ou das obras.
Quantos problemas teríamos evitado se não tivéssemos esquecido o evangelho! Nem Deus tem que aumentar nossa fé, nem somos “servos inúteis”. Descobrir o que realmente somos seria a chave para uma verdadeira confiança em Deus, na vida, na pessoa humana...
Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos fazer”.
A expressão “somos servos inúteis”, revela uma tradução muito limitada. Se o servo fosse inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor, Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.
Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis para o projeto de Deus.


 Texto bíblico:  Lc 17,5-10

Na oração:
Na vivência cristã, sua fé se resume a algumas “práticas religiosas” ou é expressão de uma profunda identificação com o modo de ser e de agir de Jesus?
- Sua vida deixa transparecer a “fé de Jesus”?
- Sintonia com o Pai, serviço humilde aos outros, empenho em favor da vida, compromisso com os mais pobres e excluídos...