sábado, 28 de setembro de 2019

A Indiferença Cria Abismos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“E, além disso, há um grande abismo entre nós”. (Lc 16,26)

O Evangelho deste domingo volta a tratar do tema das riquezas com a parábola do rico Epulón e o pobre Lázaro. Uma parábola desconcertante e inquietante porque nos situa frente a uma cena que sacode o coração, pois concentra, em uma só imagem, a realidade presente em nosso mundo: o abismo entre ricos e pobres. Existe a injustiça, existe a humilhação e a indiferença para com os menos favorecidos; existe o esbanjamento de uns frente à miséria de outros. E isto acontece também entre nós, comunidades e famílias cristãs.
Há muitos aspectos da riqueza que podem ser injustos e nocivos; mas nesta parábola Jesus critica a indiferença do rico diante do sofrimento do pobre que está próximo, à porta. Jesus nos previne contra essa tendência a evitar que os problemas alheios perturbem nossa “zona de conforto”.
O pobre necessitado não é alguém que possamos escolher; ele aparece junto à porta de nossas vidas...
Assim, pois, estamos diante de um texto duplamente perturbador: ele nos deixa inquietos ante a humilhante situação inicial do pobre, coberto de chagas e com vontade de saciar-se das migalhas que caiam da mesa do rico; e diante do destino último do rico, que gritava para que Lázaro lhe refrescasse a língua porque as chamas o torturavam.

Se tivéssemos que escolher uma palavra que fosse a chave de leitura da parábola deste domingo, essa palavra seria “abismo”. E se pudéssemos nomear a atitude denunciada na mesma parábola, essa seria “indiferença”.
Experimentamos um grande pecado de raiz, que a todos nos envenena: a cultura da indiferença. Questões gerais, comuns a grande número de pessoas, não nos provocam e nem nos movem para além de nossos umbigos. Também os problemas dos outros não nos dizem respeito. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso não nos inquieta. A maldade, a violência, as mortes, as perseguições e escravidões não nos afetam mais. E vivemos como se nada disso tivesse relação conosco. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos. E o caos que enfrentamos em nossa sociedade nos deixa sem horizontes e perspectivas de futuro. Sentindo que tudo vai muito mal, anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas.
A indiferença é cruel. Ela edifica uma barreira instransponível entre grupos, classes sociais, ideologias, religiões... Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a condição criatural de vivermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em nós, a indiferença é sintoma de desumanização. E essa desumanização é tanto prejudicial a nós quanto às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação...

“Os cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.
O grau de humanidade (ou de indiferença) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor humana. E é a compaixão a melhor expressão dessa sensibilidade e humanidade: deixar-nos afetar pelo que acontece – ou seja, ter uma sensibilidade limpa, desbloqueada e vibrante.
Definitivamente, a compaixão é central para sermos humanos. O sofrimento das vítimas nos “descentra” e nos faz “descer com paixão” aos seus pés e nos situar ao lado (a favor) delas. Sempre podemos fazer a “travessia para o outro lado”. Ali é onde se abrem espaços à compaixão.
Esta compaixão não é meramente um sentimento privativo, mas reação “apaixonada” diante das injustiças sangrentas de nosso mundo. Nos sofredores há algo que atrai e convoca, que nos faz sair de dentro de nós mesmos e nos tornar próximos deles; aí reside a origem da solidariedade que suscita uma ação eficaz e um compromisso de vida a favor de quem é vítima de situações injustas.

Não resta dúvida que o sentimento nuclear do evangelho, o eixo ao redor do qual tudo gira, é a compaixão. Na sua missão, Jesus sempre se mostrou um homem compassivo, que revelou um Deus Compaixão e que, como consequência, nos convida a viver essa mesma atitude: “Sede compassivos como vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36).
Expressão de fraternidade e vivida como serviço, a compaixão é a capacidade de situar-se no lugar do outro, sentir e sofrer com ele. É provavelmente o máximo sinal de maturidade humana e todas as tradições espirituais reconhecem isso. No budismo, especialmente, se afirma que, enquanto alguém não for capaz de colocar-se no lugar do outro, não poderá alcançar a iluminação.
Se a compaixão constitui a coluna central do evangelho, não causa estranheza que as denúncias mais fortes de Jesus são dirigidas contra a atitude de indiferença. É o que Ele revela na parábola deste domingo, onde a indiferença é retratada na atitude do rico epulón, que não causa dano ao pobre Lázaro, mas é incapaz de abrir a porta de sua casa e deixar-se afetar pela situação miserável dele.
Aqui, a chave de compreensão da parábola é encontrada na expressão “um grande abismo”. Um abismo que, não só se faz intransponível depois da morte, mas que foi alimentado exclusivamente pela indiferença do rico. Não tinha feito mal ao pobre; simplesmente, não tinha visto aquela pessoa necessitada de suas migalhas para saciar sua fome. É esse “não ver” que cria um abismo profundo em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Há uma “massa sobrante” que se torna “invisível” porque nossa sensibilidade está bloqueada ou petri-ficada, fechando-nos em um caracol egocêntrico e instalando-nos na indiferença, que está na origem das injustiças e violências que diariamente ferem o nosso mundo.

Vivemos tempos de “globalização da indiferença”, ou seja, a indiferença está se convertendo em um fenômeno mundial. É uma mancha de óleo que invadiu todos os ambientes, é um som desagradável que molesta todos os ouvidos, é um comportamento nefasto que se espalhou como pólvora, é um péssimo modo de proceder que se converteu em denominador comum de toda a humanidade.
Nós, seguidores(as) de Jesus, precisamos vigiar se não quisermos cair na tentação da indiferença. Costumeiramente, tendemos ao conformismo. A cultura da indiferença é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim, que nossas forças já se esgotaram, que não há mais sentido para lutar.
O primeiro convite que nos faz a parábola deste domingo é o de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. Sempre é tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós o encontra no próprio caminho. Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, cuidado, amor.
Nesse sentido, “amar é abrir a porta”.


Texto bíblico:  Lc 16,19-31

Na oração:
É possível superar os tempos sombrios que estamos vivendo, não nos deixando dominar pela indiferença, alimentando a capacidade de nos indignar, compadecer e afetar pela situação do outro. Que a dor, a injustiça, a morte, a fome, a mentira, o futuro não nos seja indiferente.
- Quê lugar ocupa a “compaixão” em sua vida interior, em seu compromisso diário, no horizonte de sua vida, nos encontros cotidianos?

sábado, 21 de setembro de 2019

A Lógica Perversa do Dinheiro

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 25º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13)

O evangelho deste domingo dá margem a toda uma série de questionamentos. Será que somos tão espertos nas “coisas” de Deus como somos com as nossas coisas? Somos tão astutos no serviço ao Reino como somos para com nossos interesses? Somos criativos no anúncio do evangelho como somos no empenho por manter nosso prestígio, vaidade e poder?...
A parábola narrada por Lucas é tremendamente provocativa: é como se Jesus estivesse nos colocando frente a um autêntico dilema de nossa vida; ou, é como se Ele estivesse nos despertando para tomar consciência de quem controla nossa vida; ou, é como se Ele nos sacudisse para cair na conta de quem somos em seu projeto e em seu sonho; ou, ainda, é como se Jesus estivesse nos animando a viver o dia-a-dia com sagacidade e sabedoria em vez de nos acomodar em uma ou outra margem de nossa vida.

Todos temos consciência que, em cada um de nós, convivem a luz e as trevas, e a experiência nos diz que, quando nosso ego está em jogo, ativamos meios, recursos, táticas, argúcias, estratégias e decisões..., com o objetivo de sairmos vencedores e assegurarmos a sobrevivência – a segurança, o dinheiro, o prestígio...
Embora, no Sermão das Bem-aventuranças, Jesus tenha declarado que o Reino dos céus é dos humildes e simples, no entanto, este Reino não pode ser construído com ingenuidade, pois “os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz”.
Mas, o que acontece quando está em jogo a luz que somos? Que fazemos com o melhor que há em nós mesmos? Onde está nossa sagacidade para investir a vida em favor da vida? Onde está nossa sabedoria para que o Reino atraia, seduza, mobilize...?
Se colocássemos tanto empenho, tantos meios, astúcia e sabedoria para que nossa verdadeira identidade – a luz que somos e carregamos – se manifestasse, nosso mundo seria bem diferente e a mensagem da Boa Nova teria ressonância em todos os lugares e em todos os corações.
Devemos nos examinar se não é tempo de colocar a serviço da luz toda a capacidade e inteligência que colocamos a serviço de nossos interesses…. Devemos nos perguntar se não é tempo de sermos tão criativos e ambiciosos, no bom sentido da palavra, quando se trata de questões do Reino como quando se trata de questões de negócios. Talvez, é chegado o momento de tomarmos consciência daquilo que Deus nos pede: que não sejamos perfeitos e imaculados, refugiando-nos em nosso metro quadrado de luz, mas que sejamos espertos e busquemos maneiras de gerar luz para todos, mesmo que isso implique enfrentar as nossas próprias sombras.

Hoje, a sagacidade e a esperteza se disparam quando se trata do “deus” dinheiro. Naturalmente nenhum de nós vai a um banco para rezar ao deus dinheiro, nem faz novena aos banqueiros. Mas, no fundo, podemos estar alimentando a idolatria do dinheiro.
Não se pode servir a dois senhores com pretensões e atitudes radicalmente opostas. É impossível sentir-se bem com os dois. E isso é o que acontece entre Deus e o dinheiro.
“Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. O texto grego usa a expressão “mamwna”. “Mammon” era um deus cananeu, o deus dinheiro. Não se trata, pois, da oposição entre Deus e um objeto material, mas da incompatibilidade entre dois deuses. Servir ao dinheiro significa que toda nossa existência está orientada à acumulação de bens materiais; é buscar, como objetivo de vida, a segurança que as riquezas proporcionam; significa que colocamos no centro de nossa vida o ego e o impulso para potenciá-lo o máximo possível.
Podemos, então, afirmar que o “dinheiro” é imagem do ego e de uma vida egocentrada, que se apoia no ter e no benefício próprio. Servir ao “dinheiro” significa deixar-se conduzir pelas necessidades e pelos medos do ego, numa existência vazia e insatisfeita.
A divinização do dinheiro não é outra coisa senão expressão da divinização do próprio ego.

Falamos do dinheiro como “deus”: todas as funções religiosas que antes eram dirigidas a Deus, agora são desviadas para o “deus” dinheiro.
A religião centrada no “dinheiro” também se apresenta como uma “experiência da totalidade”. Contudo é uma religião apenas de culto: sem dogmas nem moral. Esse culto é realizado mediante o consumo.
Também é uma religião de culto contínuo, no qual todos os dias são “de preceito”; religião que se sustenta na culpa, pois viver com uma dívida equivale a viver com uma culpa contínua.
O deus dinheiro dá segurança e garante o futuro; dá segurança porque é o todo-poderoso e onipresente: não se pode conseguir nada sem ele. Além disso, o dinheiro é fecundo: no capitalismo financeiro o dinheiro já não é usado como meio para criar riqueza, mas ele mesmo produz mais dinheiro: “especular se torna então mais lucrativo que investir”.
E, a tudo isso poderíamos acrescentar: o dinheiro também é invisível, como Deus, apesar de seu poder e onipresença. Se ele é o último ponto de referência, também se pode falar dele como “o ser necessário”.
Para a pessoa que tem “afeição desordenada” ao dinheiro, Deus não pode ter lugar em seu coração, pois sua religião é o mercado: tudo se compra, tudo se vende.
Tudo isso se configura como uma forma mundana de consagração a um ídolo, algo para o qual a pessoa está disposta a oferecer a própria vida, sacrificando para isso a própria liberdade e dignidade.
Segundo Lutero, o dinheiro é “o ídolo mais comum na terra”.

De fato, o culto ao “deus dinheiro” alimenta uma lógica perversa de desumanização, rompendo laços de comunhão, alimentando poder e competição, gerando divisões e conflitos...
Eis que nos encontramos todos diante desta realidade que nos afeta: um mundo rompido e cruel, um planeta massacrado, inabitável. Nesse mundo vivemos.
Como seguidores(as) de Jesus, nossa presença nesse mundo faz diferença? Qual deveria ser nossa esperteza e nossa astúcia?
Na parábola de hoje, Jesus não justifica a injustiça do mal administrador; justifica a astúcia que tinha para buscar uma saída ao ser despedido da administração.
Ser astuto, esperto, não é mau. Tudo depende para que coisas somos mais astutos. Ser astuto é ser criativo. O astuto busca soluções, justas ou injustas, mas busca saídas.
Na realidade, com esta parábola, Jesus nos faz uma série de advertências: ser seu seguidor não significa ser um ingênuo, um inocente, um alienado... que se deixa enganar facilmente, que é “levado” pelas cir-cunstâncias, que não sabe buscar caminhos, que se revela um passivo sem criatividade.
O seguidor de Jesus revela esperteza para as coisas do Reino; ele precisa estar desperto e ser ousado para ser presença visível dos valores do Evangelho hoje; precisa ser mais arguto para mudar as coisas.
Jesus quer seguidor(a) atento(a), quer gente criativa, pensante, capaz de arriscar-se.
Na criação da “nova comunidade” dos seguidores de Jesus, a partilha substitui a acumulação e a abertura aos outros se apresenta como alternativa às relações interpessoais regidas pelo deus dinheiro; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, sempre há superabundância.


Texto bíblico: Lc 16,1-13

Na oração:
O verdadeiro sentido de nossa existência está em investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do descentramento de nós mesmos, a da santidade solidária em favor dos mais pobres.
- Seu compromisso com o Reino afeta seu “bolso”?
- Olhe no mais íntimo de você mesmo e pergunte-se: há um coração que deseja coisas grandes ou um coração atrofiado pelas “afeições desordenadas”? Seu coração conservou a inquietude da busca ou você tem se deixado sufocar pelas “coisas”, que acabam atrofiando sua existência?

sábado, 14 de setembro de 2019

O Que está Perdido em Meu Interior?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Encontrei a minha ovelha que estava perdida”; “encontrei a moeda que tinha perdido”; “este teu irmão estava perdido, e foi encontrado”

As três parábolas deste domingo, relatadas por Lucas, condensam toda a história de nossa salvação. Elas contêm a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai, proclamado por Jesus, ou seja, a história do amor de Deus para com a humanidade.
Justamente por serem o Evangelho condensado, as parábolas contadas por Jesus devem ser incessantemente escutadas e contempladas por todos nós. E, depois de contempladas e experimentadas, devemos contá-las, proclamá-las e testemunhá-las, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama.
Elas são as parábolas da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos.
Elas são as parábolas da nossa origem e do nosso destino.
As três parábolas da misericórdia são, na verdade, as “parábolas dos perdidos”.
O que Jesus quis proclamar, ao contá-las, foi revelar a nova imagem do Deus Pai/Mãe que, movido pelo seu amor, misericórdia, perdão, sai ao encontro dos que estão “perdidos”.
As três parábolas expressam, com uma força insuperável, dois temas particularmente caros a Lucas e vinculados entre si: o tema da misericórdia e do perdão oferecidos por Deus aos pecadores, a todos os “perdidos”, e o tema da alegria do mesmo Deus quando os perdidos são encontrados.
A trama das três parábolas é a expressão de que vivemos permanentemente banhados pela misericórdia reconstrutora de Deus, e que se expressa no perdão contínuo. Jesus, nestas parábolas, nos revela que Deus vai aonde nunca antes ninguém se atrevera ir, acompanhando-nos com sua presença, aproximando-se de nós e nos convidando à festa do seu perdão, com uma misericórdia sem fim.
As três parábolas também revelam o caráter de defesa, feito pelo próprio Jesus, do seu modo de vida, do seu comportamento, particularmente do seu relacionamento com os extraviados e excluídos. O Evangelho que Jesus proclama com palavras e ações é a Boa Nova da salvação para os perdidos; e é, ao mesmo tempo, apelo à conversão dirigido aos que se consideravam “justos”, mas se fechavam ao amor e ao perdão.
O que escandalizava os destinatários das três parábolas, que se consideravam justos e cumpridores exemplares da lei de Deus, não era propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta do próprio Jesus com relação a eles: permitia que os pecadores se aproximassem dele, recebia-os de coração aberto, tomava a iniciativa de ir ao encontro deles e sentava-se com eles à mesma mesa.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores.
Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse o Deus que acolhe e perdoa incondicionalmente a todos, que tem um carinho especial e um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que sai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.
Esse Deus “novo” anunciado por Jesus era um Deus “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus legalista” dos escribas e fariseus. Por isso, a pregação e o comportamento de Jesus eram intoleráveis para eles.
As três parábolas nos revelam os sentimentos e as ações do “Abba de Jesus” com relação aos filhos perdidos. Revelam-nos um Deus cheio de ternura e de misericórdia que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quando os reencontra e que convida a todos para a festa da comunhão e da alegria pelo seu retorno.

As três parábolas de Lucas nos permitem também fazer uma leitura em “chave de interioridade”, ou seja, “o quê está perdido, rejeitado, escondido... dentro de mim”?
Os entendidos em restauração de obras de arte sabem que não se trata de voltar a pintar de novo a obra em questão. Nem sequer refazê-la, com outras cores, o que parece que está perdido. Um bom restaurador procura limpar com delicadeza e paciência cada detalhe do quadro, com a única pretensão de trazer de novo à luz o mais original da obra. Isto é o que Deus faz conosco, através de sua misericórdia. Limpa-nos com delicadeza em cada esquina e dobra de nosso coração. A misericórdia de Deus atua para que venha à luz o mais original que há em nós. Somos filhos(as) de um Deus que é todo bondade e amor. Somos obras de arte restauradas pelo amor ativo de Deus.
Viver a experiência da misericórdia é deixar-nos reconstruir por um amor que nos oferece a possibilidade de sentirmos novamente como filho e filhas de Deus.

Precisamos, como Deus, tomar iniciativa, aprender a nos aproximar daquilo que está perdido e desgarrado em nós, sem julgamentos e sem moralismos. Aproximar-nos, acolher, abraçar, colocar nos ombros, tudo o que foi rejeitado e excluído, para pacificar nossa interioridade.
Tudo aquilo que consideramos “perdido” (fragilidades, feridas, traumas, fracassos, crises...) tem algo a nos revelar. Nada pode ser rejeitado, tudo deve ser acolhido pois tudo compõe a nossa história de vida. Precisamos fazer as pazes com o que foi reprimido e afastado e que continua gerando um mal-estar interior.
O diálogo com as ovelhas desgarradas, as moedas perdidas e o filho pródigo, significa dirigir a atenção para as áreas reprimidas de nossa condição humana e que foram excluídas porque centramos forças em alimentar nossas imagens aureoladas e ideais exagerados, dominados pelo desejo de sermos perfeitos e infalíveis (fariseus e mestres da lei). Acolher e integrar tudo o que é humano (também o que está afastado dentro de nós) é a condição para a verdadeira experiência de Deus.
O encontro com o que está perdido em nosso interior é oportunidade para nos lançarmos por inteiros nos braços misericordiosos de Deus. Pois Ele vem ao nosso encontro em nossas carências e fraquezas; Ele nos procura através de nossos fracassos, de nossas feridas, de nossas limitações... Deus serve-se do que está perdido em nós para abraçar-nos carinhosamente.

Portanto, o caminho para a integração e alegria interior passa pelo encontro e acolhida de tudo aquilo que foi rejeitado, reprimido e excluído dentro de nós, consumindo muita energia.
A espiritualidade das parábolas de Lucas nos mostra que é exatamente em nossas feridas onde Deus encontra mais facilidade para entrar em nossas vidas e reconstruir nossa identidade verdadeira: filhos e filhas amados(as) com um “amor em excesso”.
“Lá onde nós fomos feridos, onde nos quebramos, aí nós também nos abrimos para Deus” (H. Nouwen)
Poderíamos nos interrogar: o que é que Deus deseja nos revelar por meio daquilo que está “perdido” em nós? Procurar e buscar o que está “perdido” em nossa casa interior significa “buscar e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas, em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade...
Viver uma nova espiritualidade significa, então, não buscar “ideais de perfeição”, mas dialogar com a “vida perdida” e que deseja retornar ao lar, espaço do amor misericordioso.
A partir da experiência da misericórdia podemos reunir em nosso redil, em nossa casa, tudo o que se afastou e se perdeu. Daqui po-derá brotar nova possibilidade de vida, mais leve e mais humana.

Texto bíblico:  Lucas 15, 1-32

Na oração:
Qual é a ovelha desgarrada do seu interior que é preciso ir atrás dela, acolhê-la e integrá-la ao redil? Qual é a moeda que ali se perdeu?
- Apresente a Deus suas ovelhas e moedas perdidas, para que, na luz da sua misericórdia, tudo adquira novo brilho e nova vida.

domingo, 8 de setembro de 2019

Decisões Vitais

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33)

O verbo que marca o início do relato evangélico deste domingo não indica seguimento, mas acompanhamento. Seu significado: “viajar com”, “caminhar junto a”, está longe de manifestar adesão ao projeto ou identificação com a pessoa com quem se compartilha a caminhada.
As grandes multidões, às quais o relato de Lucas faz referência, vão se somando, pelo caminho, à marcha dos seguidores de Jesus. Agregam-se ao passo do Galileu, mas não se comprometem com Ele e com a causa do Reino. Por isso, Jesus provoca uma brusca parada e se dirige à multidão.
Suas palavras interpelam cada um dos seus integrantes e pretendem fixar as linhas que distinguem acompanhantes de seguidores. Não basta simplesmente acompanhar Jesus; isso não leva a lugar nenhum.
Chegou o momento de tomar decisões. Segui-lo, aderindo-se a seu projeto, exige dar-lhe completa prioridade. Jesus é bem claro e não fica na superfície; não quer entusiasmos que sejam fogos artificiais.
Ninguém deve sentir-se enganado. Ficam claras as condições que marcam a fronteira entre “ser massa” e formar parte do grupo daqueles(as) que se identificam com Jesus. As três condições expostas (vv. 26-27; v. 23) não deixam lugar a dúvidas e terminam do mesmo modo: “não pode ser meu discípulo”.
Só no contexto do seguimento de Jesus, podemos entender as exigências que propõe aos que o seguem (preferir-lhe à família, carregar a cruz, renúncia de tudo).

Frente à multidão que “só acompanha”, Jesus apresenta dois casos em forma de duas pequenas parábolas. Embora muito diferentes, apontam para uma mesma direção. Os protagonistas de ambos exemplos se encontram frente uma ação a realizar. Precisam tomar uma decisão. No primeiro caso, trata-se de construir uma torre; qualquer um dos integrantes da multidão pode ser o ator principal: “qual de vós querendo construir uma torre...” É preciso refletir sobre si mesmo e fazer cálculos das possibilidades que se tem em mãos. No segundo caso, fala-se de uma terceira pessoa, um rei que vai enfrentar uma batalha: “qual é o rei que ao sair para guerrear com outro...? Trata-se, nesse caso, de atuar com prudência, prevendo acontecimentos hostis que possam surgir a partir de fora.
No primeiro, ressalta-se a atividade construtiva e pacífica; no segundo, aparece um risco: o movimento destrutivo motivado por uma guerra que surge repentinamente. Ambas situações parecem concordar com as duas condições antes expostas. Uma, exige dar um passo adiante, seguindo o que fora projetado. Outra, pede uma parada estratégica para medir a possibilidade de enfrentar o risco que pressiona. Trata-se de pensar; pensar antes de fazer; e fazer requer discernimento.

Temos a impressão que o tema central do evangelho deste domingo é tão forte que se torna quase impossível abordá-lo de frente. Por isso, o melhor é pôr em prática o conselho que recebemos dele: “sentar-nos para pensar”. Temos a sensação de que o seguimento de Jesus implica sempre o dinamismo de mover-nos, deslocar-nos e caminhar; mas, às vezes, o mais aconselhável seja isso: parar um pouco e sentar-nos.
A advertência de Jesus revela grande atualidade nestes momentos críticos e decisões que ajudam a dar uma feição original ao seu seguimento. Jesus chama, antes de mais nada, a um discernimento maduro: os dois protagonistas das parábolas “se sentam” para refletir, discernir... Seria uma grave irresponsabilidade viver hoje como discípulos(as) de Jesus que não sabem o que querem, nem para onde pretender ir, nem com que meios poderão contar.
Não se pode dar o passo sem medir as consequências. Requer-se “sentar e pensar” com calma. Porque a condição para formar parte do reinado de Deus implica a ruptura com os impulsos do ego: auto-centramento, apegos, busca dos próprios interesses, busca de projeção e poder...

Os apelos de Jesus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Ele” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Para seguir a Jesus, devemos esvaziar-nos; para entrar na posse “do todo” temos de renunciar ao “nosso todo”. Os “apegos” imobilizam-nos, congelam-nos..., impedem-nos crescer.
                 “Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo”.
Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega.
E a palavra é “tudo”. Um discípulo, com um “pé atrás”, não pode ser discípulo. Não servem as entregas pela metade. Jesus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
A entrega parcial não é entrega. O “apego” a algo ou alguém, que esvazia o seguimento, anula o resto da entrega e torna impossível que nossa relação com Jesus cresça, se desenvolva e plenifique nossa vida.

Todos temos a experiência de que viver é estar continuamente tomando decisões. Desde o momento em que levantamos até à hora de deitar, estamos decidindo, algumas vezes sobre questões simples, outras vezes, sobre assuntos de maior envergadura. Sabemos que nossas decisões vão modelando nossa vida e orientando, de uma maneira ou outra, para um fim. Qual é esse fim?
Como seguidores(as) de Jesus, somos seres em contínuo discernimento: como “cristificar” (prolongar o modo de ser e agir de Jesus) nossas opções, ações, valores, compromissos...?
Sabemos que é no decidir que a pessoa torna-se pessoa, que o indivíduo torna-se sujeito.
São “significativas” as decisões que imprimem uma direção à sua vida, que a constroem dia após dia; decisões carregadas de vida, abertas à vida, comprometidas com a vida...
São as decisões que fazem a pessoa; formam sua personalidade, definem seu caráter e integram sua vida. A base da pessoa são suas decisões, suas determinações, fazendo com que sua vida tenha a marca da criatividade e da ousadia: construir o caminho de vida, rejeitar alternativas que a atrofiam e avançar na rota, em direção a um fim pleno de sentido.
Decidir é viver, decidir é definir-se; por isso, ao entender e refinar suas próprias maneiras de decidir, a pessoa está entendendo melhor e refinando mais sua vida.

Em outras palavras: “somos o que são as nossas decisões”; e a decisão pelo seguimento de Jesus é aquela que mais nos humaniza e potencializa todo nosso ser; afinal, somos chamados para “seguir uma Pessoa”, aquela que foi “humana por excelência”.  Por isso, precisamos conhecer detalhadamente quais são e como as tomamos; queremos saber se nossas decisões são realmente nossas ou se são imitação daquilo que os outros fazem, ou submissão ao que os outros nos dizem para fazer.
A coragem de decidir com firmeza e clareza é o que distingue o(a) seguidor(a) de Jesus como tal, e lhe dá sua dignidade e personalidade. Não há melhor escola humanizadora do que saber decidir.
Essa é a grande contribuição que a tomada de decisões dá à nossa vida: ativar ao máximo nossos recursos, fazer valer tudo o que trazemos dentro de nós, dar vida a todo o nosso ser, que é feito para conhecer, querer e decidir. Se evitamos decisões ou fugimos de responsabilidades, condenamo-nos a viver num canto, encolhido e prostrado. Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexidades e responsabilidades. Isto nos faz ter acesso à vida plena, mobilizar nossas forças, encontrar a nós mesmos, encontrando-nos com Aquele que nos inspira.
Texto bíblico: Lc 14,25-33

Na oração:
No encontro com Deus deixar aflorar aquilo que é a base, o sólido, o fundamento, que dá sentido à sua vida. Sobre quê valores, critérios, opções... você vai construir sua vida?
- A Bíblia fala do equilíbrio entre o olho, ouvido, coração e mão, quando se refere à decisão:
- Olho: atenção (ler os sinais, interiores e exteriores);
- Ouvido: escutar-auscultar: captar vozes do coração;
- Coração: é a decisão com afeto;
- Mão: é a ação (realizar na prática, a decisão).
            * Fazer memória das suas decisões diárias: elas são “cristificadas” ou tem a marca do “ego inflado”?
               Elas são oblativas, abertas, des-centradas..., ou centradas no próprio interesse?