sábado, 29 de junho de 2019

PEDRO E PAULO: diferenças que se encontram

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da  Solenidade de São Pedro e São Paulo.


“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13)

A Igreja, ao unir numa só celebração, duas figuras humanas tão diferentes - Pedro e Paulo - nos indica o quê pretende com esta festa: manifestar a obra comum que Deus realizou através deles. Com certeza, a liturgia descobriu a complementariedade desses dois homens; são um claro exemplo de que personalidades tão diferentes se revelaram autênticos seguidores de Jesus.
Foram completamente diferentes na formação pessoal: Pedro era simplesmente um pescador, sem nenhuma preparação, mas teimoso e sincero. Paulo era um intelectual. Havia passado pela escola rabínica, onde se envolveu no estudo profundo da Lei. Um com sua simplicidade e espontaneidade e o outro com sua agudeza intelectual, constroem a única Igreja. Tanto em Cesária de Filipe (Pedro), como no caminho de Damasco (Paulo), Jesus des-vela a originalidade e a diferença de cada um deles (rocha), sobre as quais vai fundamentar sua nova comunidade. Nada do que é humano foi anulado, mas integrado no horizonte do seguimento.
Cada um deles seguiu Jesus à sua maneira Por isso, Pedro e Paulo foram considerados como as colunas da Igreja. Eles são como duas referências permanentes para a comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus; são exemplo de fé cristã, no seguimento do Mestre de Nazaré. No final os dois rubricaram sua fidelidade entregando a própria vida como testemunhas de Jesus Cristo.
A Igreja, corpo de seguidores(as) de Jesus Cristo, plural e diversa em seus membros, também é chamada à comunhão na diversidade. Somos conscientes de viver a difícil alteridade no interior da mesma Igreja.
A fé cristã em Deus, que é uno e trino, aparece como o primeiro fundamento para acolher a diferença.
O modo original de ser e viver de Jesus também nos motiva a sair de nós mesmos para acolher o outro diferente como revelação de Deus, assumir a mudança e encontrar na Eucaristia, o sinal e a fonte da união.

A festa de hoje se apresenta como oportunidade privilegiada para aprofundar o sentido da “diferença” no interior da comunidade cristã e na convivência social. Estamos inseridos num contexto religioso e social carregado de muita intolerância e indiferença, onde prevalece o medo diante de quem é diferente.
 “A diferença é inerente à comunhão na Igreja. É um elemento da comunhão. A Igreja não é nem eliminação nem soma das ‘diferenças’, mas comunhão nas mesmas” (J.M Tillard).
Assim, ser cristão significa ser aberto, acolhedor da diferença, sensível à diversidade.
Afinal, somos humanos, seres em caminho, buscadores de sentido, buscadores da verdade e habitados pelo mesmo Deus, que atua em tudo e em todos.
O princípio de alteridade está fundado no princípio de identidade: podemos nos compreender apesar de sermos diferentes, porque todos somos seres criados e agraciados por Deus, chamados a ser habitados por uma verdade que está para além de uma ideia ou doutrina.

Esta é a vocação fundamental de todo ser humano: alimentar uma relação mútua em cada encontro. Todos trazemos dentro de nós ricas possibilidades que só podem ser colocadas em movimento quando alguém se encontra conosco e nos chama à vida, numa verdadeira relação. Somos relação, e nos fazemos ou des-fazemos na relação.  Não há um “eu sem um tu” que nos complementa com a comunhão, que nos une na diferença; esse movimento desvela nossa própria originalidade, abrindo-nos ao desconhecido e à riqueza do outro. Tanto a comunhão como a diferença são espaços de crescimento mútuo.
A diversidade nos permite enriquecer-nos, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver. A humanidade diferenciada torna-se mais dinâmica; o tesouro está precisamente em sua diversidade criadora. A humanidade é profundamente diversificada em seus talentos, valores originais e em sua vitalidade.
Daí a importância de aprender a ver o melhor de cada pessoa e de cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas de todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, preconceito, dominação...
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.

Cresce hoje a consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não como rejeição. A humanidade pós-moderna exige a diversidade de convivência sociocultural. Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências. O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado também a respeitar e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as sociedades e as nações.
A diversidade racial, cultural, religiosa... supera a monotonia e oferece a criatividade de muitas formas. A harmonia fecunda entre as pessoas está na diversidade das diferenças, não na repetição mecânica.
O conformismo repete cópias, mas não facilita a união autêntica. Sem as diferenças entre pessoas, a sociedade seria apenas um marasmo. Por isso, as diferenças pluralistas são valores, não anomalias. Além disso, são sedutoras, não amedrontadoras. A diferença pessoal mantém certo fascínio.

A diversidade é uma forma de aproximação entre os seres humanos. E deve ser vista como estimulo, não como estorvo. A diferença do “outro” deve ser motivo para o encontro e para o enriquecimento mútuo.
Segundo o pensador E. Levinas é a diferença que gera alteridade. O outro é diversificado e não repetitivo. A visão da diferença mostra que cada ser pessoal é original. Massificar as pessoas é uma forma de silenciá-las e dominá-las.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-nos para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Deveríamos pensar mais sobre a importância das diferenças entre os seres humanos.  Deveríamos admirar as diferenças pessoais e grupais, e não lamentá-las. É necessário evitar tudo o que deforma as diferenças e desenvolver a verdadeira coexistência pessoal, social, científica, religiosa, ética. Deveríamos remover abusos e vícios que anulam a diferenças. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa.
Valorizar o diferente e os diferentes implica tratar com cortesia, saber interagir, trabalhar juntos, respeitar...
Diferença não dispersa nem divide, mas provoca convergência crítica. Promove a unidade lúcida e criativa.
Por isso é valor a ser preservado e a ser desenvolvido, é potencial a ser explicitado.

A questão da «diferença cristã» não toca apenas à relação entre o cristianismo e o espaço não-cristão. O problema situa-se no interior mesmo do cristianismo. Viver como «comunidade» implica saber conjugar a diversidade na unidade. Assim, o cristianismo revela uma multiplicidade de textos, de ritos, de movimentos, de escolas de espiritualidade, de perspectivas teológicas; mas também de funções e vocações no interior da comunidade. A fidelidade, no cristianismo, passa por uma capacidade de integrar a diversidade.
Somos Igreja, Casa e Povo de Deus, que vive a acolhida positiva e respeitosa da diversidade de pessoas, carismas, ministérios, funções e expressões da fé. O reconhecimento desse pluralismo no interior da comunidade nos instiga a viver uma eclesiologia da comunhão.
Isso nos move a fazer a contínua passagem de uma Igreja que discrimina os que pensam diferentes, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, as minorias excluídas...; uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos, que abra caminhos novos em meio às diferenças, que saia às margens sociais e existenciais...; uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência...


Texto bíblicoMt 16,13-19

Na oração:
Deus nos ciou “diferentes” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo.
- Deixe-se surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...;
- O que prevalece em você diante de quem pensa, sente e ama de maneira “diferente”? intolerância, sectarismo, preconceito, mixo-fobia (medo de se misturar), xenofobia (medo do estrangeiro);... ou acolhida, proximidade, convivência...?

“Pesos Mortos” que Travam o Seguimento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo...” (Lc 9,23)

Depois do longo e intenso percurso pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecimento como “Tempo Comum”, seguindo o evangelista Lucas (Ano C).
A cena do evangelho deste domingo é muito conhecida, pois ela é relatada nos três evangelhos sinóticos, embora com grandes diferenças. Os discípulos já levam um bom tempo acompanhando Jesus. Por que o seguem? Jesus quer saber qual é a motivação presente no interior de cada um deles. Por isso, dirige uma pergunta ao grupo: “E vós, quem dizeis que eu sou?”
Esta é a pergunta que também deve ter ressonância em nosso interior; afinal, dizemos ser seguidores(as) de Jesus. Seguimos, de fato, uma pessoa ou seguimos uma doutrina, uma religião, uma moral...? Não é suficiente repetir fórmulas aprendidas na catequese. Aqui trata-se de expressar uma identificação profunda com a vida e com o modo de ser do Profeta da Galileia. Por que o seguimos? Não basta afirmar que Ele é o “Messias de Deus”; é preciso dar passos no caminho aberto por Ele, acender também hoje o fogo que Ele quis espalhar no mundo. Como podemos falar tanto dele sem sentir sua sede de justiça, seu desejo de solidariedade, sua vontade de paz?

Na experiência humana ressoa, desde sempre, a marca ou o chamado a transcender-se, a ir além de si mesmo. O seguimento de Jesus pressupõe a pessoa capaz de sair de si mesma, de descentrar-se. Deixar ressoar a voz do chamado no próprio interior implica um investimento de toda a pessoa. O ouvido se abre, o olhar se aclara, a mente se expande, o coração compreende, o corpo se ergue e a vida se reinicia.
Vida aberta e sempre em movimento, pronta para acolher e viver as surpresas.
Estamos inseridos numa cultura onde as entregas são vividas pela metade, as opções são de fôlego curto e os projetos não tem consistência.
Vivemos a chamada “cultura líquida” onde tudo parece que nos escapa das mãos. Não há solidez nas decisões pois elas são apressadas e superficiais, porque o horizonte está obscuro.
Jesus não impõe nenhuma condição, não quer gente que busque carreiras ilustres, riquezas, prestígio.... Quer pessoas que sejam capazes de descentrar-se, de renunciar ao próprio ego, de desapegar-se daquilo que as atrofia e as limita, para investir numa proposta de vida que dê direção e sentido à própria existência. Este é o lema de Jesus: “renunciar a si mesmo, tomar a cruz cada dia e segui-Lo”

O que significa “renunciar a si mesmo”. Significa sair da visão egocentrada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; nem sequer vê a tua vida a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-a a partir de tua verdadeira identidade, onde há uma unidade profunda, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia o que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando fazemos por algo melhor. O apego a nós mesmo, às coisas ou às pessoas, impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
Na vida cristã, o seguimento é questão de sedução, de paixão, de atração, de coração...; isso significa que Jesus Cristo é de fato o “amor primeiro”, aquele que antecede a qualquer outro, de maneira especial o amor a si mesmo. Daí nasce a harmonia interior. Quando o seguimento torna-se o eixo central, todos os elementos da vida, todas as afeições, todas as potencialidades do espírito, encontram-se em “seus lugares”, estabelecendo uma deliciosa experiência de paz. Os afetos “orientados” e “ordenados” à pessoa de Jesus, cria um novo referencial, um novo centro afetivo.

Se queremos fazer caminho com Jesus temos de acolher suas condições e entendê-las como Ele as entende. “Renunciar a si mesmo” é descentrar-se, não ser já o centro de seu próprio projeto. É pôr a vida inteira a serviço do outro, neste caso o projeto de Jesus. A isto Jesus chama “perder a vida por sua casa”. E quem assim fizer, “ganhará”, salvará sua vida. A condição que Jesus propõe para segui-lo não pretende negar nossa autonomia, mas orientar nossas energias e valores para a construção do Reino que Ele iniciou, renunciando, também Ele, a si mesmo, para cumprir em tudo a vontade do Pai.
Na medida em que nos desprendemos de todo apego, incluído o apego à vida, a favor dos outros, estaremos amando de verdade e, portanto, crescendo como ser humano. Nossa Vida com maiúscula se potenciará, e a vida com minúscula, adquirirá, então, todo seu sentido.

A resposta à pergunta de Jesus (“e vós, quem dizeis que eu sou?”) implica adesão à pessoa d’Ele e ao seu projeto, o Reino; significa fazer o caminho com Ele, colocar-se onde sempre se colocou, na margem, na periferia... Isso acarreta oposição, perseguição, cruz.
Em quê consiste “carregar a Cruz?” É acaso suportar tudo sem reclamar como se toda contrariedade nos é mandada pelo Deus mesmo? É submeter-se à dor pela dor, como se a dor fosse um valor em si mesmo?
Algo ou muito disto temos entendido assim e não tem nada a ver com a condição que Jesus propõe para que sigamos seus passos. Ele quer dizer que todos devem estar dispostos a viver da mesma maneira que Ele viveu, embora sabendo que este estilo de vida pode acarretar a perseguição e talvez a morte. Tomar a Cruz significa prontidão, estar preparado, mobilizado...
Essa é a cruz de Jesus e também deve ser a nossa. Não inventemos cruzes sob medida, não coloquemos cruzes sobre nós ou sobre os outros. Sigamos os passos de Jesus, assumindo seu estilo de vida!

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora.
Aquele que acompanha Jesus vai também tomando consciência que a opção pela vida pode conduzi-lo à Cruz.
Mas não basta carregar a Cruz; a novidade cristã é carregá-la como Jesus. Essa é a nova maneira de carregar a Cruz que Jesus nos ensina: transformá-la em sinal e fonte de amor e de entrega.
A palavra “cruz” – em grego “staurós” – vem do verbo “ficar em pé”. “Tomar sua Cruz” não é, portanto, suportar passivamente sua vida, tornar-se escravo de um destino tirânico; significa prontidão, estado de vigilância... para passar de uma vida suportada para uma vida escolhida. 


Texto bíblico:  Lc 9,18-24

Na oração:
Quem é Jesus para mim?” Pergunta instigante que nos ajuda a captar a originalidade de Sua vida, a escutar a novidade de Seu chama-do, a deixar-nos atrair pelo Seu projeto, contagiar-nos por Sua liberdade, empenharmos por viver seu caminho.
- Cada um de nós deve se colocar diante de Jesus, deixar-se olhar diretamente por Ele e escutar, a partir do mais profundo de si mesmo, Sua pergunta: “Quem sou Eu realmente para você?”
- A esta pergunta responde-se mais com a vida que com palavras sublimes.

Corpo do Cristo: Corpo Humano

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da  Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo no Tempo Comum (Festa de Corpus Christi).


“Jesus acolheu as multidões, falava-lhes do Reino de Deus e curava todos os que precisavam” (v. 11)

O dia de “Corpus Christi”, tradicionalmente celebrado na quinta-feira depois da Trindade, é festa do Deus feito carne e sangue humano, é festa cristã da humanidade de Deus, da divindade do ser humano.
Esta festa revela mil riquezas que deveriam ser realçadas no diálogo com a humanidade, afinal, o Corpo de Deus é, por Cristo, o ser humano inteiro, a humanidade completa; é festa cristã, mas que quer ser universal, a festa de todos aqueles que desejam vincular-se entre si, de um modo concreto, partilhando o pão, bebendo juntos o vinho da vida, em alegria e esperança, dispostos a colocar suas vidas a serviço da vida.
Festa do Corpo de Jesus e de todos os corpos; festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivento; o Universo, com suas estrelas e galáxias, é um corpo imenso. Corpo sagrado, porque habitado pela presença divina.
Celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnerável! Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos! Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem explorá-los! Sintamos como próprio o corpo do faminto, do violentado, do refugiado, da mulher violada, maltratada, assassinada... É nosso corpo; é o Corpo de Jesus; é o Corpo de Deus.

O corpo humano está, portanto, no centro da revelação cristã, pois se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo, que se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a carne, acolhendo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um Corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado entre as trevas da terra como toda criatura.
Frente a um contexto social e político que faz opção clara em favor da morte, os(as) seguidores(as) de Jesus proclamam em alta voz seu compromisso em favor da vida. É uma incoerência tremenda realçar o espírito da festa de Corpus Christi quando corpos são violentados, multidões são expostas à fome e miséria, pessoas e grupos são excluídos por preconceito, intolerância...
Sim, “Corpo de Deus”! Deus é como o pulsar íntimo, a energia originária, a criatividade inesgotável, a possibilidade infinita, a força do bem, a comunhão universal, a Presença plena em cada ser humano, numa eterna evolução; Deus é infinitamente “mais” que a soma de todos os corpos que compõem a humanidade. Somos n’Ele. Ele é em nós, infinitamente mais que um Tu separado. Toma corpo no trigo que se transforma em pão ou na vinha que floresce nos campos e se transforma em vinho; corpo que se faz alimento e alegra o coração, na promessa de nos re-conduzir às entranhas do amor do mesmo Deus.

Jesus fez do universo seu corpo e se faz pão e vinho para nós.
O pão suscita e cria Corpo…; Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma pura lei social, princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é corpo, isto, é, vida expandida, sentida, compartilhada. O Evangelho nos situa desta forma no nível da corporalidade próxima: Jesus é corpo que quebra distâncias, acolhe o diferente e cria comunhão. Podemos dizer que Jesus desencadeia um “movimento corporal humanizador”; por isso, Ele se faz alimento que a todos sustenta, criando uma comunhão corpórea universal, pois ninguém está excluído.
Sabemos que o corpo é identidade e comunhão, individualidade e comunicação, a vida inteira alimentada pelo pão.  A antropologia de Jesus não é dualista, que separa corpo e alma. A festa do Pão divino está nos revelando que corpo não é aquilo que se opõe à alma, exterioridade da pessoa, mas pessoa e vida inteira.
Corpo é o mesmo ser humano enquanto comunicação e crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte: fragilidade e grandeza de alguém que pode viver o encontro com o outro, partilhando sua vida e suas energias, criando assim um “corpo” mais alto (comunhão) com todos.

Nesse sentido, a Eucaristia se revela como centro da vivência cristã. A transformação das relações humanas se dá através do partir o pão e do passar o cálice de vinho; como o pão é um, comer desse pão nos faz todos um. A Eucaristia faz de todos nós Corpo de Cristo. Daí o interesse da primitiva Igreja em que, na Eucaristia, todos comungassem do mesmo pão partido, com a finalidade de fazer visível essa unidade de todos.
Ao dizer “tomai e comei, isto é meu corpo”, Jesus vem ao nosso encontro como alimento; não vive para impor-se sobre os outros ou explorá-los, mas, pelo contrário, para oferecer sua vida em forma de alimento, a fim de que todos se alimentem e cresçam com Sua vida.
Tudo isto se expressa e se oferece em contexto de refeição entre amigos(as): não exige obediência, não impõe sua verdade, não se eleva acima dos outros, mas, em gesto de solidariedade suprema, se atreve a oferecer-lhes seu próprio corpo, convidando-os a partilhar o pão. Este oferecimento de Jesus só tem sentido para aqueles que interpretam o corpo messiânico, como fonte de humanidade dialogal, gratuita, expansiva...
Assim fizeram seus(suas) seguidores(as): após a Ressurreição, Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque estava no templo ou ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão nas casas.
Por isso, no primeiro dia da semana, reuniam-se todos nas casas, oravam juntos, recordavam a mensagem de Jesus, comiam o pão, bebiam o vinho e a Vida ressuscitava. A isso chamavam, ‘ceia do Senhor” ou “fração do pão”.  Tudo era muito simples e despojado.

Segundo os relatos dos Evangelhos, durante sua vida pública, Jesus transitou por muitas refeições, propôs a grande mesa da inclusão e, para culminar, organizou com seus amigos mais próximos uma ceia de despedida e de esperança. Ali, ao partir o pão e passar o cálice, pediu que se recordasse dele toda vez que comessem ou bebessem juntos, reavivando a esperança de construir o mundo que todos esperavam. Eles se transfigurariam e o mundo se transformaria em Comunhão toda vez que este gesto fosse repetido.
Para isso, é preciso recuperar o lugar e o sentido da Eucaristia, para que não seja um rito puramente cultual. Para muitos cristãos, ela não é mais que uma obrigação e um peso que, se pudessem, tirariam de cima deles. A Eucaristia acabou se convertendo em uma cerimônia rotineira, que demonstra a falta absoluta de convicção e compromisso. A Eucaristia era, para as primeiras comunidades cristãs, o ato mais subversivo que podemos imaginar. Os cristãos que a celebravam se sentiam comprometidos a viver o que o sacramento significava. Eram conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido durante sua vida e se comprometiam a viver como Ele viveu.
Séculos depois, a simples refeição foi se complicando. A casa se converteu em templo, a refeição em “sacrifício”, a mesa em altar, o convite em obrigação, o rito em pompa, a partilha em exclusão...
A festa de “Corpus Christi” pode ser ocasião privilegiada para voltarmos ao mais simples e pleno, para além dos cânones, rubricas e indumentárias que não tem nada a ver com Jesus.
Basta nos reunir em um lugar qualquer, para recordar Jesus, compartilhar sua palavra, tomar o pão e o vinho, ressuscitar a esperança e alimentar o sonho do Reino.
Essa é a Missa verdadeira, a verdadeira missão.

Texto bíblico: Lc 9,11-17

Na oração:
Na sua comunidade, a celebração eucarística gera maior amor e compromisso em favor dos mais pobres ou se limita a ser um simples rito religioso obrigatório?
- Quais iniciativas concretas sua comunidade poderia fazer para que a participação na Eucaristia seja mais ativa e dinâmica?
- Sendo constituída por seguidores(as) de Jesus, como sua comuni-dade poderia se comprometer mais para levar aos outros o pão cotidiano, o pão do amor e da esperança, o pão do evangelho do Reino?

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Trindade marca encontro com a humanidade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Santíssima Trindade.



“Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade” (Jo 16,13)

Uma das expressões mais constantes nos discursos e na prática do Papa Francisco é o apelo a viver a “cultura do encontro”, inspirado na comunhão intra-trinitária: “Vivei a mística do encontro: a capacidade de ouvir atentamente as outras pessoas; a capacidade de procurar juntos o caminho, o método, deixando-vos iluminar pelo relacionamento de amor que se verifica entre as três Pessoas divinas e tomando-o como modelo de toda a relação interpessoal”.
Na contemplação da Encarnação dos Exercícios Espirituais, S. Inácio nos convida a imaginar a Trindade que, com seu olhar compassivo, acolhe “a grande extensão e a curvatura do mundo” com um abraço apertado e decidido, de tal maneira que nada do que é do mundo é deixado para trás, evitado ou negado.
O que aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade.
A decisão da “humanização” de Jesus brota das entranhas do Deus Comunidade de amor: “ver e considerar as Três Pessoas divinas...”. Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa humanidade, não é mais possível crer que o Deus Uno e Trino seja nosso rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude; Ele não é o “juiz distante” mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade...

Inspirados na linguagem da “Contemplação da Encarnação”, contemplamos, com o olhar da Trindade, nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades em conflito que geram o sofrimento, a exclusão, a morte e os infernos... E esses espaços e fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos; mas, nas profundezas de todos esses “mundos que nos são estranhos” se revela a presença do Filho de Deus “novamente encarnado” (EE. 109). Pois tudo foi alcançado e redimido pelo amor encarnado de Deus.
O mistério da Trindade Amorosa nos conduz à contemplação da realidade na qual vivemos e nos inspira a uma proximidade e um conhecimento mais profundo do “mundo” para o qual somos enviados.

O mais importante nesta festa que estamos celebrando, seria purificar nossa idéia do Deus-Comunhão-de-Pessoas e ajustá-la cada vez mais à realidade que d’Ele Jesus nos quis transmitir.
Jesus nos ensinou que, para fazer uma verdadeira experiência de Deus, o ser humano precisa aprender a olhar dentro de si mesmo (Espírito), olhar os outros (Filho) e olhar o transcendente (Pai).
Jesus não pregou a Trindade, mas abriu o caminho que conduz ao Pai e nos legou seu Esspírito.
Na realidade, a experiência dos primeiros cristãos é que a Trindade podia ser, ao mesmo tempo e sem contradição: Deus que é origem, princípio, fonte de tudo (Pai); Deus que se faz um de nós (Filho); Deus que se identifica com cada um de nós (Espírito). Estão nos falando da Trindade que não se fecha em si mesma, mas pura relação que transborda e se visibiliza na criação inteira, fazendo de cada ser humano sua morada. Deus é sempre Trindade, comunhão de Três Pessoas divinas, pelas quais circula toda a torrente de Vida Eterna.
Também S. Agostinho assim sintetizou esse mistério trinitário: “Aqui temos três coisas: o Amante, o Amado e o Amor”; um Pai Amante, um Filho amado e o vínculo que mantém unidos os dois, o Espírito de Amor.
Sendo presença visível desta Comunidade de Amor, Jesus quer que entremos nesse mesmo fluxo do Amor, expansivo e vital.

A festa do Deus-Trindade, do Deus dos encontros, é especialmente significativo para a o contexto atual, carregado de desencontros, de rupturas e profundas divisões; para quem crê na Trindade, os vínculos, a comunicação e a partilha são especialmente significativos; quem se deixa habitar pela Trindade, acolhe a diversidade e a reciprocidade como nutriente de sua maneira de estar e de viver no mundo; entrar no fluxo de vida da Trindade significa comprometer-se com a vida e não com a cultura de morte; trabalhar com a Trindade implica viver em rede humanizadora, valorizando a solidariedade, a colaboração e a interdependência. Todos esses valores, com suas luzes e sombras, são uma boa porta de entrada para iniciar-nos no conhecimento do mistério do Deus-Trindade anunciado por Jesus.
O Deus comunhão, que se revelou em Jesus, fundamenta e ilumina a dignidade e liberdade do ser humano, e o capacita a viver relações e interações transformadoras na vida social e na igreja. O Deus dos encontros suscita práticas de diálogo e de reciprocidade no amor, na acolhida e na potenciação da diversidade como riqueza.
Na contemplação do Pai, do Filho e do Espírito, aprende-se a amar, a relacionar-se, a sentir-se família com todos. Como Pai bom que, no regresso do filho, o abraça com ternura, o cobre de beijos e lhe oferece o perdão gratuitamente. Como o Filho que se inclina para lavar e beijar os pés de cada ser humano, e se entre-

ga como serviço. Como o Espírito que incita e sustenta com seu amor o ser humano, que é vínculo de união, criação e dinamismo, liberdade, fonte do maior consolo, luz na obscuridade, bálsamo para as feridas, criatividade e audácia na missão.

Portanto, a contemplação do mistério do Deus Trindade ativa em nós uma “maneira trinitária de ser e de estar” no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. A Trindade nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos “contemplativos nos encontros”.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com a Trindade, Fonte de vida e amor, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como a Trindade mesma os vê. Precisamente por ter-se encontrado com a Trindade-Comunhão, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
Desde o princípio, fomos criados para o encontro; somos seres comunitários: vivemos com os outros, estamos com os outros, somos para os outros... Somos filhos(as) do encontro e do diálogo e realizamo-nos quando permanecemos em comunhão uns com os outros, na medida em que nos encontramos e nos amamos. “Ser” significa “ser com”, ser com os outros; existir significa co-existir. Nessa co-existência buscamos ansiosamente e descobrimos a nossa identidade.
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espíri-   to Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos   com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em  nós é perfeito” (1Jo. 4,12). Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade...
Neste novo tempo, a Trindade Santa chama cada um de nós a uma maneira mais aberta e livre de nos rela-cionar com todos aqueles que são os “outros”. Afinal “somos pessoas para os outros e com os outros”.
A cultura do mundo no qual agora vivemos requer outro tipo de ascética: uma ascética de encontros.
Construir a cultura do encontro passa pelo esforço e aprendizado de sair de si para entrar em relação com a diversidade. Ante um mundo global, diverso, multicultural, qualquer tentativa de homogeneização e uniformidade está fadada ao fracasso. Descobrir que a riqueza está na diversidade é a base sobre a qual se parte para a destruição dos muros e a construção de pontes que facilitem o encontro. Isso não significa per-der os próprios valores e a identidade cultural; pelo contrário, quando somos conscientes de nossa própria identidade é quando nos tornamos capazes de entrar em relação com o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente. Afinal, “só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.

Textos bíblicos:  Jo 16,12-15  

Na oração:
Trindade Santa, para descobrir tua proposta original, ensina-nos a contemplar o mundo inteiro com o teu próprio olhar, respeitoso e fiel à nossa realidade” (Benjamin Buelta).
- Sentir-se olhado pela Trindade (impacto na própria interioridade, como Maria);
- Olhar o mundo com o olhar da Trindade (universalidade);
- Evangelizar os sentidos, muitas vezes atrofiados e limitados, para que eles sejam mediação para viver encontros verdadeiramente humanizadores.

sábado, 8 de junho de 2019

PENTECOSTES: de portas abertas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Pentecostes.

“...estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, por medo dos judeus...”

Lembremo-nos que, no domingo passado, após a Ascensão, os discípulos retornaram ao Templo de Jerusalém: “E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (Lc 24, 53). Isso quer dizer que eles ainda não estavam em movimento; eles não tinham tomado consciência de que eram habitados pelo Espírito Santo e que deviam sair do Templo para partir em missão. No entanto, em Pentecostes eles se deram conta de que deviam sair do Templo para transmitir o Sopro de vida (vento), para reunir no Amor todos os povos (fogo) e para comunicar a todos o Amor universal (línguas). A presença do Espírito rompeu os espaços atrofiados e os fez viver de portas abertas. Esta é a missão do Espírito Santo.
A Igreja, como povo de Deus, cheia de graça e de verdade, hoje se veste de festa porque está celebrando seu nascimento. Ela finca suas raízes no acontecimento de Pentecostes quando o Pai, por seu Filho, envia o Espírito da verdade e da vida à humanidade. Os discípulos receberam a força do Espírito em um contexto de debilidade e de medo. As portas estavam fechadas, no meio do mundo, por temor. E é no meio desse mundo desafiador e do medo paralisante que o Espírito rompe as portas e destranca as janelas; o que era realidade fechada e assustada se converte em comunidade “em saída”, apostólica, missionária.

O Ressuscitado cumpre a promessa definitiva: envia seu Espírito. Espírito de vida e confiança, de fortaleza e verdade, de amor e graça. É o Espírito da liberdade, que arranca as portas dos temores e das seguranças e abre as janelas para deixar entrar o vento que faz viver o risco no amor comprometido; é o Espírito do fogo que aviva a luta pela dignidade e a possibilidade da reconciliação do ser humano ferido com o Deus providente e curador, que se revela como compaixão e misericórdia; é o Espírito que torna possível outro mundo, que ativa o cuidado para com a natureza: a ecologia que se faz comunhão e se humaniza, frente ao medo da destruição do universo e daqueles que o habitam.
Com sua presença rompedora, o Espírito enche a casa onde os discípulos estavam juntos. Ele não se deixa sequestrar em certos lugares que dizemos “sagrados”. Agora “sagrada” torna-se a casa: a minha, a tua e todas as casas são o espaço privilegiado da ação Espírito. Ele vem de imprevisto, e nos apanha de surpresa, pois nem sempre estamos preparados para deixar-nos conduzir por Ele. O Espírito não suporta esquemas, rompe o que está programado, é um vento de liberdade, fonte de vida expansiva.
Um vento que sacode nossa casa, que a enche de luz e segue adiante, que traz pólens de primavera e dispersa a poeira, que traz fecundidade e dinamismo para o interior de cada um, «esse vento que faz nascer os garimpeiros de ouro» (G. Vannucci).

Vivemos um permanente Pentecostes. Quando sentimos medo é porque nos centramos em nós mesmos, nos auto-referenciamos, e a realidade nos força a buscar refúgio e proteção. Nossa fragilidade e a violência do mundo nos alarmam e buscamos segurança e conservação. Mas isso dificulta anunciar o evangelho, levar a boa notícia ao mundo e impede nossa própria realização como cristãos, pois apaga nossa criatividade e esvazia nossa presença inspiradora. Celebrar Pentecostes é acreditar que “outra igreja é possível”, que temos de superar nossos medos para construir e ser a comunidade da confiança, aquela que se arrisca na missão e no exercício da misericórdia, aquela que se descobre como fermento no meio da massa e leva a alegria do evangelho.
O medo, a obscuridade e o fechamento da “casa interior” se transformam, agora com a presença do Espírito, em paz, alegria e envio missionário. São sinais palpáveis da ação misteriosa e transformante do Espírito no interior de cada um e da comunidade.
Na vida cristã, ser espiritual faz referência ao Espírito de Deus. “Espirituais”, de algum modo, somos todos, mas a chave para deixar que essa dimensão da vida cresça está em facilitar que, dentro de nós, o Espírito de Deus tenha espaço para mover-se, ressoar e suscitar inquietações. Não se trata de que, ao habitar-nos, o Espírito nos invada. Antes, trata-se de uma convivência que potencia o melhor de nós mesmos, que faz que a solidão seja habitada e mantém os sentidos muito mais alerta.
O Espírito ressoa na oração, na atividade, ao ver o noticiário, ao dar um abraço, ao ler um livro, em uma canção, ao contemplar um quadro, fazendo um passeio, escutando alguém que nos fala de sua vida... Ressoa na história e na imaginação que nos convida a sonhar um futuro melhor. Ressoa no encontro humano. E, sob seu impulso, amadurecem em cada um de nós aquelas atitudes que nos levam a viver com mais plenitu-de: compaixão, justiça, verdade, amor...



A violência, a injustiça, a intolerância e o preconceito em todos as instâncias da sociedade atual nos enchem de medo, desalento e desesperança. Não vemos saída e preferimos fechar-nos em nós mesmos, em nossos ambientes mofados e práticas religiosas alienadas, esquecendo-nos do grande movimento de vida desencadeado por Jesus, conduzido pelo Espírito de vida. É este mesmo Espírito que irrompe em nosso interior, transpassa as portas do coração e ilumina o entendimento para que compreendamos a novidade do Evangelho e tenhamos presença diferenciada no contexto em que vivemos.
Deixar-nos habitar pelo Espírito implica romper a bolha que asfixia nossa vida e derrubar os muros que cercam nosso coração e atrofia nossa própria existência.
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, em tempos de Pentecostes, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver...   que impedem a entrada do ar para arejar o próprio interior.
Nada mais contrário ao espírito de Pentecostes que uma vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.

Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também os cristãos não estão imunes a esta tentação.
A cultura da indiferença edifica uma barreira instransponível entre nós e os outros. Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a condição criatural de vivermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em nós, a indiferença, a intolerância e a violência são sintomas de desumanização. E essa desumanização é tanto prejudicial a nós quanto às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. A partir de nossa reclusão religiosa, social, política..., passamos a divulgar discursos fascistas, alimentar práticas fundamentalistas de segregação, apoiar-nos em moralismos estéreis...
O Espírito de Pentecostes nos desarma e nos capacita a viver a cultura do encontro; isso significa desen-volver a própria capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta. Ela ativa uma relação sadia com todos; o centro se expande em direção aos outros e à criação, fazendo-nos viver uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.  


Texto bíblicoJo 20,19-23

Na oração:
Quê sinais da presença dinamizadora do Espírito de Deus você pode perceber em sua vida pessoal, familiar e comunitária?
Você conhece pessoas que atuam sob a ação do Espírito? Por quê? Quê você pode fazer para descobrir e potenciar os dons e ministérios que o Espírito continua suscitando nas pessoas e comunidades?
- Faça um tempo de oração mais profunda, procurando escutar as moções que o Espírito suscita em seu interior e que talvez não tenha condições de escutar na pressa diária.

- Que portas você mantém fechadas? Que portas continuam fechadas nas igrejas? São portas, ou se converteram em fronteiras? Por medo de quê? De quem?