“Todo aquele que é da verdade escuta a
minha voz” (Jo18,37)
É muito importante que tenhamos uma pequena ideia
sobre o momento e o motivo que levou o Papa Pio XI, em 1925, a instituir a
festa de Cristo Rei. A Igreja estava perdendo seu poder e seu prestígio,
acossada pela modernidade. Com esta festa, tentou-se recuperar o terreno
perdido frente a um mundo secular, laicista e descrente. Na encíclica o papa
dava as razões para instituir a festa: “recuperar
o reinado de Cristo e de sua Igreja”.
Ao confessar Cristo como Rei universal queria-se, com isso,
veicular o desejo de que também a Igreja fosse testemunha e participante já
aqui na terra dessa realeza; em outras palavras, uma realeza de Cristo
reconhecida, redundava inevitavelmente em uma igreja respeitada, favorecida
pelo Estado, com alto status na sociedade, forte e organizada, que, embora já
não podendo mais revestir-se de poder político temporal, pelo menos pudesse participar
dele através de uma relação estreita e harmoniosa.
A intenção da festa pode ser boa,
mas o título atribuído a Jesus não poderia ser de seu agrado. Embora muitos
estejam ainda centrados na visão de uma Igreja que busca poder, prestígio,
riqueza... a partir da imagem do Cristo Rei, na realidade, o que celebramos é
uma radical mudança de linguagem: Jesus rei
servidor, que se coloca a serviço dos mais desfavorecidos, sem poder, sem
glória, sem pompas...
Podemos conservar o título, mas mudar a maneira de
entendê-lo; Jesus é “Rei do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em
todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em
todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida...
Portanto, qualquer conotação que o título tenha
com o poder e com as pompas, esvazia a mensagem de Jesus. Uma coroa de ouro na
cabeça, um cetro brilhante nas mãos, um manto tecido de brocados e pedras
preciosas, são muito mais degradantes que a coroa de espinhos e a cana que os
soldados colocaram em suas mãos no momento do seu julgamento. Ali, diante do
poder violento e corrupto de Pilatos, Jesus, açoitado e coroado de espinhos, se
mostra sereno e revela a plena humanidade de um Rei sem reino; um rei das
nações de exilados, do povo sem lar, dos desamparados..., que prefere o poder
do amor ao poder da força e da violência.
Há uns domingos atrás, Jesus nos
dizia que aquele que queria ser o primeiro, deveria ser o último, e aquele que
queria ser grande deveria ser o servidor de todos. Esse afã de identificar
Jesus com o poder e a glória, não será acaso uma maneira de justificar nosso
afã de poder, de prestígio, de nos impor sobre outros? Não será porque nós
cristãos temos projetado n’Ele nossa necessidade de grandeza?
Reinar e ter poder é objeto de desejo de
extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e
seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, é a suprema ambição.
Não há ser humano que não tenha
sido tentado pelo canto desta sereia.
“Reinar”. Em nosso mundo reina o
terror, reina a miséria, reina a exploração, reina a vingança, reina o negócio
sujo, reina a violência, a intolerância, o preconceito...
Quando em nosso mundo reinar a confiança mútua,
quando todos viverem a cultura do encontro, quando não houver excluídos nem
sofredores, quando os negócios forem honrados, quando formos capazes de compartilhar
e de acolher o diferente..., então poderemos começar a atribuir o título de Rei
a Jesus e proclamar que Ele reina.
Jesus acreditou na força da
semente, no poder do fermento, na criatividade dos pobres, no dinamismo
incomparável do Espírito, mas a partir de dentro, a partir da humanização dos
corações.
Por isso, Jesus é Rei porque deixou
transparecer sua “realeza interior”: o que n’Ele era mais humano e divino, a
sua verdade, seu ser verdadeiro..., no mais profundo de si mesmo. Realeza que
se visibilizava no encontro com o outro. Jesus destravava e ativava a realeza
escondida em cada um, desvelava a verdade mais nobre presente nas
profundezas de cada pessoa.
Dentro do processo de Jesus frente a Pilatos,
segundo o quarto Evangelho, ocupa um lugar destacado a questão sobre a verdade; ali o título de “rei” é identificado com ser “testemunha da verdade”.
Jesus é consciente, como os grandes sábios, de
viver na verdade de si mesmo, porque se adentrou no “território” de sua
verdadeira identidade. A Verdade estava na sua atitude de vida. Esta era a
Verdade.
O convite de Jesus é, portanto, absolutamente
inclusiva: toda pessoa que, a partir de uma atitude de busca sincera e humilde,
se “adentre” na experiência de sua própria verdade, sentirá necessariamente a
“sintonia” com Ele, assim como com todos aqueles(as) que o seguem e vivem de
maneira verdadeira e transparente.
Portanto, o verdadeiro sentido do seguimento de
Jesus e a fé madura em Deus não se reduzem à segurança e firmeza em umas
determinadas verdades; mais importante que as verdades de nosso saber é
a humanização de nossas atitudes.
“Vim
ao mundo para dar testemunho da verdade”. Jesus não se refere a verdades doutrinais
ou científicas; Ele está falando da autenticidade de seu Ser; Ele está falando
da verdade de seu Ser e da verdade de todo ser humano. Jesus é rei
porque vive na verdade, vive na transparência; Ele é verdadeiro porque
revela o que é mais nobre em seu coração e no coração de todos os
seguidores(as); não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
Jesus é o Homem autêntico, a referência de
ser humano, o ser humano verdade. Jesus é a última referência para todo aquele
que queira deixar transparecer em sua vida a verdadeira qualidade humana.
Em certo sentido, poder-se-ia dizer que a verdade não passa pela mente, mas pela
vida; nem pelo pensar de uma determinada maneira, mas por ser e viver de um
modo humano e inspirador.
Por isso, frente ao fanatismo e intolerância que
denota fechamento e estreiteza de vida, a verdade requer abertura humilde,
questionamento e flexibilidade.
O importante não é ter a
verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode
entrar em ressonância e em sintonia com a verdade do outro.
O intolerante, o preconceituoso
julga ser dono da verdade e quer impô-la sobre os outros. A verdade não
é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai
ficando o nosso mundo. A humanidade busca a verdade, mas também pode
asfixiá-la. Costuma-se calar a verdade que incomoda. Também existe sempre a
tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que se acredita ser
verdadeiro. “A
verdade também pode ter suas vítimas”.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração:
Precisamos
dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em
nossas vidas, nossas relações, nossas instituições...
* O que há de verdade e o que há de mentira em nosso segui-mento de Jesus? Onde
há verdade que nos humaniza e onde há mentira que nos atrofia?