“Quem come
deste pão viverá eternamente” (Jo 6,51)
Continuamos no capítulo 6 do
Evangelho de João. Aumenta a tensão entre os judeus e Jesus. À medida que Jesus
vai aprofundando no seu ensinamento, vai aparecendo a enorme diferença
existente entre o que eles aprenderam da tradição e o que Jesus lhes quer
transmitir. E vão aparecendo as doentias murmurações.
“E começaram a murmurar contra Jesus”.
Murmuravam porque Jesus havia
dito: “eu sou o pão vivo descido do céu”.
É o mesmo verbo para falar das murmurações dos israelitas no deserto contra
Moisés, por não lhes dar alimento, como eles tinham no Egito. Jesus lhes
recorda que o povo esteve contra Moisés nos momentos difíceis e agora também não
confiam nas palavras do próprio Jesus.
Sabemos que a murmuração se expressa de inúmeras
maneiras, sutis ou não, formando uma montanha de ressentimentos, queixas,
críticas ácidas... Murmurar é
contraproducente e nocivo. Alguém que murmura é uma pessoa difícil de conviver
e poucas pessoas sabem como responder às queixas feitas por outras que expelem
sua fuligem interior. O trágico é que, uma vez expressa, a murmuração leva ao
que mais se queria evitar: um afastamento
maior. Essa murmuração íntima é sombria e pesada: condenação dos outros,
condenação de si mesmo, justificativas... entrando numa espiral de amargura e
fechamento.
À medida que a
pessoa se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas murmurações,
fica mais e mais perdida, até que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais
incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo.
Em um coração
carregado de murmurações e queixas, o Espírito não tem liberdade de atuar; elas
são a fonte poluidora de onde brotam as doentias divisões internas, que
atrofiam as forças criativas, petrificam o coração, resistem ao novo e levam ao
distanciamento de tudo e de todos. Com isso, a pessoa se blinda, tornando-se
rígida, fechada em suas posições, crenças, valores... e não se deixa impactar
pelo encontro com o diferente.
Como quebrar os
ferrolhos das murmurações e estender as mãos para acolher o surpreendentemente
novo? Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
Nesse contexto “carregado”, Jesus
vai abrindo um caminho de existência compartilhada, que se expressa na
comunicação do pão e que culmina na
comunicação de vida. Ele não se
deixa afetar pelas murmurações que levam à morte.
Jesus, o “Pão da Vida”,
tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as
transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de
Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida
do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas
fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Em Jesus acontece algo totalmente
novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos
nossos esquemas. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida
diferente, de qualidade nova, expansiva...
A comunhão com Jesus é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com
Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de
superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos
consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite
experimentar uma outra vida, que
supera tudo o que vivemos até então.
A “vida
eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica.
É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna”
desde já.
Para o evangelista
João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual,
é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida
eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá
poder sobre ela.
Precisamos
adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as
pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando
atenção, percebemos as batidas de nosso coração.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa
humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
Vida plena prometida
por Jesus: “Quem crê, tem a vida eterna”
Jesus faz-se
alimento que gerar vida nova no mundo; alimentar-nos d’Ele, desperta
nossa vida interior, fazendo-nos
redescobrir nossa verdadeira riqueza; ao mesmo tempo, fazendo-se “pão
partilhado”, Jesus
nos ensina a gerar
vida, ou seja, Ele nos move a fazer com que nossa própria vida seja “alimento
substancioso”, para que outros também tenham vida.
A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor
com a vida”.
Nem sempre sabemos viver: conformamo-nos
com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”.
Quando nos saciamos com o Pão, que proporciona vigor inesgotável, nossa vida
se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de
liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento,
gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e
sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação,
comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que
desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa,
é convocação...
Ao afirmar: “Eu
sou o pão vivo que desceu do céu”, Jesus nos revela que a vida
é sempre uma novidade que rompe velhos barris; ela é um fenômeno que emerge de
forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente.
Tal realidade desperta fascinação,
provoca admiração e veneração... porque a vida é sempre sagrada. Diante
dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os
ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna. A vida é sempre emergência
do novo e do surpreendente.
Portador de uma vida inesgotável, somos muito mais que
o simples resultado de nossos esforços e lutas. Vivemos para mergulhar em algo
diferente, novo e melhor.
Nossa vida não é um problema a resolver, mas
uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar.
Afinal, somos discípulos(as) permanentes na escola do Mestre da vida!
Nesse sentido, a
experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cuja
aprendizagem nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no
coração cheio de nutrientes, dele haurir a força da vida divina e deixar-nos
plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada
mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência
estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos,
definitivos, tranquilizadores...
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na oração:
Para viver a partir do ser mais profundo,
é preciso dedicar, cada dia, algum tempo de atenção ao próprio coração e
aprender a regozijar-se da maravilhosa vida
de Deus em cada um.
Basta um repouso e o estar presente para
fazer acalmar a agitação interior e aproximar-se da fonte da vida.
- Temos nas mãos e no coração a opção de
viver “em chave de murmurações” (queixas, ressentimentos e
desencantos) ou “em chave de benção”, descobrindo na vida a presença d’Aquele
que nos faz estremecer de alegria, desafiando-nos a ser “pão para os outros”.
- Sua vida cotidiana: “pão amargo de
murmurações” ou “pão substancioso de bênçãos”?
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