“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá
a vida por suas ovelhas” (Jo 10,11)
A partir deste 4º. Dom de Páscoa, a liturgia se
afasta dos relatos das aparições do Ressuscitado, mas não sai do tema pascal.
Como Bom Pastor, o mandato que Jesus recebeu do Pai é “dar a Vida” e a
disposição em “dar a Vida” está profundamente sintonizada com o tempo de Páscoa
que estamos celebrando.
A raiz da experiência pascal é que Jesus está
vivo e comunica Vida à comunidade. Como os primeiros cristãos, também nós temos
o mesmo privilégio de fazer nossa essa Vida. Trata-se da mesma Vida de Deus, de
seu Amor que se entrega a nós incondicionalmente.
Crer e anunciar a Ressurreição é
confiar na vida que morre, para dar lugar a mais vida, a Vida maiúscula. É crer
vivencialmente que a morte é necessária para que a corrente da vida flua, e nos
comunique suas maiores riquezas. A vida (minúscula) morre; para sermos fiéis ao
chamado à Vida, devemos ser capazes de abandonar o que já não serve, o que é
caduco, o que precisa morrer, para que a vida siga seu curso em direção à
plenitude.
Somos também chamados a proclamar
que a Vida é possível, que há algo mais além da vida limitada e frágil; somos
movidos a gritar pelos caminhos que a morte foi vencida, que o ser humano é e
continua sendo filho amado de Deus, chamado à vida maior e à liberdade.
Viver a Páscoa significa apostar
pela qualidade de vida, fugindo da mediocridade sonífera na qual muita gente se
instala, vivendo uma existência rotineira e normótica, sem cor e sem sabor,
correndo sem saber para onde, sem entusiasmo, sem dinamismo e sem poder dar cor
à própria vida, à família, ao trabalho, ao descanso, às relações, à fé...
O sintoma mais doloroso,
já constatado por sérios analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso
mal-estar que afeta a humanidade inteira. No fundo, essa crise generalizada
revela seu rosto desfigurado no fenômeno do “descuido”, do descaso
e do abandono,
numa palavra, da falta de cuidado com que são tratadas realidades
importantes da vida.
Tudo o que existe e vive precisa
ser cuidado para continuar a existir
e a viver: uma planta, um animal, uma criança, um idoso, o planeta Terra...
É urgente uma práxis de cuidado, de re-ligação, de
benevolência, de paz perene para com a Terra, para com a vida, para com a
sociedade e para com o destino das pessoas, especialmente das grandes maiorias
empobrecidas e condenadas da Terra.
Jesus foi um “homem-de-cuidado” e deixou aos seus seguidores
um estilo de vida fundado no cuidado. A imagem do “Bom Pastor” revela esse
modo de ser e proceder de Jesus.
Trata-se de uma imagem que, para os nossos
contemporâneos, revela-se, ao mesmo tempo, anacrônica e perigosa. Anacrônica,
porque as cenas do pastor cuidando do rebanho desapareceu do universo majoritariamente
urbano e desenvolvido. Perigosa, porque a imagem do rebanho apresenta
resquícios de passividade que a consciência moderna rejeita visceralmente, por
evocar o binômio poder/submissão.
Embora a imagem tenha ficado esvaziada, seu
conteúdo continua sendo plenamente atual, quando realçamos a atitude pascal da “mística do cuidado”, ou
seja, quando proclamamos a atitude de entrega aos outros até o final. Jesus, em
seu ministério “cuidador” transformou a vulnerabilidade em possibilidade, a
fraqueza em força, a dor em alegria... O evangelista Marcos diz com extrema
finura: “Ele fez bem
todas as coisas; fez surdos
ouvir e mudos falar”
(Mc. 7,37).
Sua presença e sua intervenção nos
revelam o compromisso com a vida, a afirmação da dignidade e da
sacralidade de cada pessoa, bem como a reintegração dos excluídos na comunidade
humana. Jesus é um bió-filo (amigo
da vida), pois revela uma especial atenção e zelo pela vida, seja da natureza,
seja do ser humano. Cada vida é um cenário de manifestação do Pai. Tudo lhe
causava admiração e encantamento.
Para Jesus, a cada dia o Pai chama
as criaturas pelo nome e as convoca à vida:
as águas fluem, os animais procriam, os astros retomam seu curso e o ser
humano acorda para o louvor de Deus e o cumprimento de suas tarefas. Pela ação providente e cuidadosa do Pai, a Criação inteira se refaz de crepúsculo em
crepúsculo e de aurora em aurora.
Nesse tempo pascal, o cuidado serve de crítica à nossa
civilização agonizante e também de princípio inspirador para um novo tempo de convivialidade.
Diante das realidades vulneráveis faz-se necessário despertar as consciências
para a prática do cuidado.
O cuidado é algo mais que um ato ou uma virtude entre outras; ele se
encontra na raiz primeira do ser humano, é um “modo-de-ser essencial”
do ser humano.
É uma dimensão fontal, originária,
primária, impossível de ser totalmente esvaziada.
É o cuidado que nos
faz sensíveis e nos compromete com quem está à nossa volta.
É o cuidado que nos
une às criaturas e nos envolve com as pessoas.
É o cuidado que
desperta encantamento face à grandeza do firmamento, suscita veneração diante
da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um
recém-nascido.
Pelo cuidado, o ser
humano se religa ao mundo afetivamente, responsabilizando-se por ele.
Jesus de Nazaré foi aquele que mais
encarnou o “modo-de-ser-cuidado”.
Revelou à humanidade o “Deus-Cuidado”,
experimentando-o como Pai/Mãe que cuida de cada um(a) de seus(suas)
filhos(as), do alimento dos pássaros, do sol e da chuva para todos.
Jesus resgatou a
centralidade do cuidado e da ternura para com todas as
manifestações da vida. Ele mostrou cuidado
especial com os pobres, os famintos, os discriminados e os doentes.
Pelo cuidado,
Jesus maravilhou-se diante do milagre da vida e solidarizou-se com os humanos
fragilizados e excluídos. As parábolas do bom
samaritano, que mostra a compaixão pelo caído na estrada, a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo
pai, e, sobretudo, a do Bom Pastor, são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.
Cuidar é dar atenção com ternura, isto é,
descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção ao outro, sentir o outro como
outro, participando da sua existência; cuidar é mais que um ato; é uma
atitude “kenótica”, porque exige o esvaziamento de nós mesmos para deixar o
mistério do outro encontrar abrigo em nosso coração. “Não temos
cuidado; somos cuidado”. Sem
cuidado deixamos de ser humanos.
É a partir do cuidado que
colocamos limite a toda voracidade neurótica de ter e poder; a partir do cuidado
acontece a passagem da lógica da conquista para a lógica da gratuidade, da
imposição para a interação-comunhão, da exploração para a
sintonia-cordialidade, do poder-produção para a atenção-respeitosa.
O amor é a expressão mais
alta do cuidado, porque tudo o que amamos também cuidamos. E tudo o que
cuidamos é um sinal de que também amamos.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração:
Pedir
a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção e a cura
das mãos benditas e providentes
de nosso Deus;
-
alargar o coração, para que aí a ternura de Deus possa fazer morada.
-
está sua vida cheia de Vida e de Cuidado?
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