“...todas as vezes que fizestes isso a
um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
Rei, título inapropriado para Aquele que tocou
leprosos, que preferiu a companhia dos excluídos e não dos poderosos do povo,
que lavou os pés dos seus discípulos, que não tinha riqueza nem poder...
O senhorio de Jesus foi a do amor incondicional,
do compromisso com os mais pobres e sofredores, da liberdade e da justiça, da
solidariedade e da misericórdia...
Com sua palavra e sua vida Ele
afirmou que “não veio para
ser servido, mas para servir”. Por
isso, assumiu uma
posição crítica frente a todo poder desumanizador.
A festa de “Cristo Rei”, que
encerra o Ano Litúrgico, pode ser ocasião propícia para “transgredir” nossa
concepção de “rei” e “reinado”, e evitar um triunfalismo religioso, pura
imitação dos reis deste mundo que vivem às custas da exploração dos seus
súditos.
Jesus nunca se proclamou rei; o que Ele fez foi
colocar-se a serviço total do Reino, de forma que este foi o centro mesmo de
sua pregação e de sua vida, a Causa pela qual estava apaixonado e pela qual deu
sua vida. Importa, pois, honrar a verdadeira identidade de Jesus: Ele não foi
rei, nem quis ser nunca, por mais que alguns cristãos creem que chamando-o
assim prestam-lhe as devidas honras. A melhor honra que devemos prestar a Jesus
é prolongar seu modo de ser e de viver. É preciso voltar a Jesus e sua Causa.
Se Jesus não foi rei historicamente, nem se
chamou rei, nem deixou que lhe chamasse assim, recusou e se retirou quando
queriam fazê-lo rei, tem sentido que nós o aclamemos com esse título? Por quê?
Jesus é Rei
porque deixa transparecer sua “realeza”: o que é mais real, mais
humano e divino, a sua verdade, seu ser verdadeiro... no mais profundo de si
mesmo. Realeza que se visibilizava no encontro com o outro. A partir
de seu ser verdadeiro, Jesus destravava e ativava a realeza escondida em cada
um.
Este é o sentido profundo do título: ser Rei sem
tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, sem a pressão da justiça
legal, sem prestígio, sem riqueza... Esta é a tarefa da nova humanidade, a
promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade e da justiça, da fraternidade
e não violência..., para que todos sejam reis, no sentido radical da palavra.
Segundo o relato de Mateus, quando
chegar o momento supremo, a hora da verdade definitiva, a única coisa que ficará
de pé, o que somente será levado em conta como critério de salvação ou
perdição, não vai ser nem a piedade, nem a religiosidade, nem as práticas
espirituais, nem a fé, nem mesmo o que cada pessoa tiver feito ou deixado de
fazer para com Deus; o que vai ser considerado é apenas uma coisa, a saber: o
que cada um tiver feito ou deixado de fazer para com os seres humanos.
A fundamentação está no fato de que
Jesus se identifica com cada ser humano, de maneira especial com aquele que
mais sofre, vítima da violência, da exclusão, da pobreza, da humilhação... Essa
identificação e essa fusão de Jesus com os humanos (“foi a mim que
o fizestes”) é tão
forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério
para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer “para”
Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para” os seus
semelhantes que cruzaram o seu caminho e que clamaram por uma presença
solidária e compassiva.
Na parábola do “juízo final” não é casual que os casos ali mencionados são as
situações mais baixas, mais humilhantes e as que mais detestamos, de acordo com
o que neste mundo se considera necessário para ser uma pessoa de sucesso e que
goza de uma vida cômoda e digna: a comida, o vestuário, a saúde, a liberdade e
a legalidade de quem não é um estrangeiro ou um imigrante “sem documentos”.
Essa lista de situações extremas refere-se à realidade de sofrimento e
exclusão. E Jesus assume como sua a dor de cada ser humano, pois, mediante sua
Encarnação, Ele se identificou e se fundiu com o mais basicamente humano, com
aquilo que é comum a todos os seres humanos, sem nenhuma distinção.
Toda parábola desperta ressonância e causa
impacto no nosso ser profundo; não é um relato periférico e neutro; escutar ou
ler uma parábola é sentir-se implicado nela ou, em outras palavras, toda
parábola deixa transparecer nossa real identidade; por isso, a parábola do “juízo
final” pode também ser lida em “chave de interioridade”: o que
em mim está excluído, faminto, desamparado, exilado, preso... e que precisa ser
integrado e iluminado?
Mas a luz da parábola des-vela nosso eu
interior e deixa transparecer também nossos pontos nutrientes, iluminantes...
que serão fonte de salvação para as dimensões do nosso ser profundo que ainda
permanecem na sombra da não aceitação.
Por outro lado, precisamos deixar
ressoar em nosso “eu profundo” as palavras duras do Rei Eterno: “Afastai-vos
de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Centrados em nós mesmos e
separados dos outros, vamos alimentando uma espécie de ego (força diabólica: força que divide). Todo “ego” é
possessivo e manifesta-se como um desejo insaciável de acumular, possuir, não
compartilhar... O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas,
acontecimentos e natureza. Ele compara-se com os outros e compete pelos elogios
e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pela riqueza. É isso que nos torna
invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos
torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Esse ego centrado em si próprio não confia em
ninguém a não ser em si mesmo; ele não ama ninguém e quando “ama” é para
atender apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação.
Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente
cruel para com os outros, vivendo uma situação infernal.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvelar e
desmascará-lo com todas as suas maquinações e duplicidades.
Só uma pessoa esvaziada
de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso
ego ou falso eu.
Segundo a parábola deste domingo, a pessoa “torna-se
bendita de meu Pai”
na entrega e no descentramento. Porque só assim deixa transparecer a realeza
original, aquela que se identifica com a realeza d’Aquele que viveu
para servir.
Só nos fazemos conscientes de nossa
realeza quando compreendemos nossa verdade mais profunda. Até que isso não
ocorra, viveremos como mendigos, tratando de apropriar-nos e de identificar-nos
com tudo aquilo que possa conferir uma certa sensação de identidade e de
segurança. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto
“mendigo” se descobre “rei”.
Só na medida em que nos esvaziamos
de nossos impulsos egóicos, fazemo-nos solidários com a fragilidade
e, o que é mais profundo, nos fundimos com a fragilidade dos outros.
A salvação da humanidade está,
pois, em ajudar aos excluídos do mundo a viver uma vida mais humana e digna. A
perdição, pelo contrário, está na indiferença diante do sofrimento. Este é o
grito de Jesus a toda a humanidade.
Texto bíblico:
Mt.
25,31-46
Na oração:
O
Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus, o motivo de seus milagres, a
razão de ser de sua fidelidade até a morte, a coroa de sua ressurreição. Que é
para mim o Reino de Deus? Está também no centro de minha vida? É “minha Causa”
como foi a de Jesus?
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