“Fiquei com medo e enterrei o teu
talento no chão”
(Mt 25,25)
A liturgia deste domingo nos propõe uma parábola
que pode ser facilmente mal interpretada; ou pior ainda, fomentar a auto-autocobrança
e o perfeccionismo. E, como consequência, os sentimentos de culpa, de
impotência, de fracasso...
No campo específico da
espiritualidade cristã, uma leitura deturpada da parábola dos “talentos” pode
conduzir a uma religiosidade perigosa por vários motivos: supõe a imagem de um Deus
como um patrão que exige um cumprimento das suas ordens até os mínimos
detalhes, sem admitir nenhum fracasso; fomenta a ideia do mérito e, com isso,
uma religião mercantilista; alimenta um perfeccionismo – busca de um “ideal de
perfeição” -, que gera muito sofrimento e farisaísmo; estimula a
competitividade para ver quem consegue um “prêmio maior”... Em definitiva, aqui
nos encontramos diante de uma parábola potencialmente perigosa.
Todos nós temos uma
tendência a alimentar o perfeccionismo e a leitura da
parábola dos talentos só viria confirmar essa tendência. De
fato, o conceito de perfeição cristaliza-se em nós desde a
infância, a partir de experiências não integradas, de sentimentos de
culpabilidade, e que acabam nos identificando, no plano pessoal, como não ter
defeitos, não ter fragilidades, não ter nenhuma falha ou pecado.Trata-se de um
modo fechado de viver dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo
esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está
convencido de que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. A grave consequência disso
é que estaríamos pervertendo a mensagem de Jesus, centrada radicalmente na
gratuidade, na compaixão e no amor.
Custa-nos
reconhecer Jesus como autor da “parábola dos talentos. Mas, em todo caso, não
podemos perder de vista que se trata de uma parábola, e que a leitura tampouco
pode ser literal.
Como ler
esta parábola para poder recuperar sua mensagem genuína e, ao mesmo tempo, evitar
os riscos que o próprio relato deixa transparecer?
Em primeiro lugar, coerente com a própria
mensagem evangélica, só nos cabe ler a parábola como palavra de sabedoria e não
como código moral; deve ser entendida a partir da gratuidade e não a partir da
ideia do mérito e da recompensa. Tudo é dom e somos felizes na medida em que permitimos
que esse dom se manifeste em e através de nós.
Também é importante que levemos em
conta a situação concreta em que Jesus vivia quando falava em parábolas. Ele
viveu situações muito conflitivas e de enfrentamento com os fariseus, os sumos
sacerdotes, os mestres da lei. Mateus coloca esta parábola dos talentos em um
momento de máxima tensão e enfrentamento de Jesus com os fariseus; concretamente,
com o “Deus” dos fariseus, que era um Deus terrível, ameaçante e
justiceiro. Aqui, nesta instigante parábola, Jesus desmascara a falsa imagem de
Deus dos fariseus, que torna a vida pesada e marcada pelo medo. É como se Ele
dissesse: “Meu
Pai não é assim; Ele é fonte de amor, de misericórdia e só deseja que as
pessoas vivam felizes, sem medo”.
Nesse sentido, é sumamente útil aprofundar e conhecer
o verdadeiro sentido da parábola dos talentos.
Normalmente, costuma-se explicar esta parábola dizendo que
Deus dá a cada pessoa uma quantidade determinada de talentos, divinos e
humanos, dos quais terá de prestar contas a Ele, até o último centavo, no dia
do Juízo Final. Quando se interpreta a parábola dessa maneira, o Deus
que aí aparece é uma ameaça insuportável; ao considerar a parábola como uma
exortação à uma “vida perfeita”, falsifica-se o sentido autêntico da mesma. O
que está em questão aqui é a “imagem” de Deus que todos trazemos.
O indivíduo que recebeu um só
talento está convencido de que o “senhor”, ou seja, Deus, é “duro”,
pois “colhe onde não semeou e ajunta onde não
espalhou”. Esse
indivíduo tem uma ideia terrível de
Deus. E por isso, como é natural, “tem medo”; e o medo o leva a
“esconder
o talento debaixo da terra”. Isso,
precisamente, foi sua perdição. O medo paralisa, ou seja, torna as
pessoas estéreis.
No fundo, Jesus está dizendo o
seguinte: “o Deus que ameaça com a exigência da
prestação de contas até o último centavo, é um Deus que bloqueia e anula as
pessoas, os grupos, as comunidades”.
Por isso, é urgente acabar com a imagem
do Deus que ameaça, que não liberta nem cura, que nos amarra e não nos deixa
viver.
De fato, a presença de Deus na vida e na história
de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um
“Deus” que a todos nós pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo
mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de
nossos fracassos; um
“Deus” interesseiro, um senhor severo que impõe
obrigações duras e dificulta nossa entrada no banquete; um “deus-patrão”
que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo,
causador do Grande Medo que nos paralisa.
Crer em um Deus que pede conta até
o último centavo é o mesmo que crer em um juiz justiceiro que torna a vida
amarga e pesada. Sem a superação cotidiana dos medos, nossa experiência
de Deus estará comprometida, perderá sua força inovadora e nos fará menos
humanos.
Para relacionar-nos humanamente com o Deus
que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas
imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa
intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma
ameaça da qual devemos nos proteger.
Deus é fonte da Vida, ou melhor, o próprio Dom, o
“talento” que se dá generosamente em tudo. Ao conectar com nossa verdadeira
identidade, nós nos descobrimos n’Ele, não como uma presença separada, mas como
nosso núcleo mais íntimo e profundo.
Essa descoberta é a fonte de nossa ação; estamos
permitindo que o “talento” – o Dom, a Graça, Deus..., possa viver em nós; deixar
“Deus ser Deus em nossa vida”.
Tal vivência sempre dará fruto
abundante. Mas o fruto não é algo conquistado, que antes nos faltara e nos é
dado agora em forma de prêmio ou recompensa – para engordar o ego -; o “prêmio”
não é outro que a descoberta daquilo que somos e o prazer de viver isso. O
“talento” que nos é presenteado é a descoberta da plenitude que sempre fomos.
Finalmente, aquele que não faz frutificar o
talento fala também de nós mesmos, quando permanecemos na ignorância de quem
somos e, desse modo, “perdemos” a vida, fechados – o talento enterrado – em
nossa pequena couraça narcisista. Isso significa não deixar o talento expandir
e permaneceremos nas trevas de nós mesmos, perdidos na confusão e no
sofrimento.
Mais uma vez, não se trata de uma ameaça e, menos
ainda, de um castigo: é um apelo que nos chama a despertar, para que saiamos
das crenças
tóxicas que envenenam a mente e o coração, não nos deixam amadurecer no
nível humano e espiritual e nos privam do prazer de viver o Dom (Talento) que
nos habita.
Texto bíblico: Mt
25,14-30
Na
oração: No
interior de cada um, Deus está chamando, está convidando a que ponha em
movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua
presença em todas as coisas.
- pedir para experimentar, desde
já, a presença do Senhor tal como
Ele é, evitando todas as suas falsas imagens;
- diante de sua presença cada
um deve sentir-se acolhido, desafiado e com uma nobre missão a realizar.
Maravilhoso, exatamente como eu interpretava. Eu preciso conhecer o Pe. Adroaldo. (Marcia Carvalho)
ResponderExcluirMuito bom perceber o AMOR que se dá como talento.
ResponderExcluirViver pleno AMOR é graça de Deus.