Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da celebração da Santíssima Trindade.
A proposta para oração é contemplar o ícone de Rublev para viver o mistério da Trindade.
A festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos
relacionar com o Deus Comunhão de
Pessoas, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na vida, habita decididamente
no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
A Trindade “des-vela”
a maneira de ser de Deus, como Amor
que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na
história da humanidade. Deus é Amor e
só amor.
Diante
da presença e da ação do Deus Trinitário, afogam-se as palavras,
desfalecem as imagens e morrem as especulações. Só nos restam o silêncio, a adoração
e a contemplação.
Para
facilitar tal atitude, vamos ativar nossos sentidos interiores para que se
deixem impactar pelo Ícone de Rublev: da Trindade pensada à
Trindade adorada.
A Trindade não é fácil de
ser representada. Aqui o artista representou-a na figura de três anjos
peregrinos, assentados à mesa de Abraão.
O quê vemos neste ícone? Três
anjos, reconhecidos por suas asas, estão assentados em torno de uma mesa.
Os três sustentam um cajado na mão (Trindade Peregrina).
Trata-se de uma representação do
relato da hospitalidade de Abraão, que se encontra em Gen. 18, quando o Senhor apareceu ao patriarca na
planície de Mambré, sob a forma de três jovens.
Abraão os convidou a descansar e
lhes ofereceu uma refeição. A tradição patrística viu nesses visitantes uma
figura das três pessoas divinas.
Podemos nos
aproximar do ícone a partir da beleza; num primeiro olhar, a divindade
aparece revelando-se como uma grande luz que atrai e purifica.
A ausência de
sombras no ícone quer fazer refletir a luz divina em tudo, situa-nos diante da
santidade de Deus e nos convida a participar da luz da vida trinitária.
Tudo está no mesmo
plano, o plano celestial; e, num olhar de fé, detrás da beleza de sua realidade
sensível, o ícone nos remete mais além do visível, para a beleza das realidades
divinas que representa e transmite; a razão emudece, o coração admira. Ou seja,
não é a imagem em si mesma que nos eleva pelo que representa, mas aquilo para o
qual ela aponta: o mistério trinitário ou o “excesso de Deus”.
Observe, em primeiro lugar, o ritmo
ou movimento circular que parece invadir todos os elementos do
ícone, convidando-nos a entrar no mistério de Deus.
O movimento que, partindo do Pai,
passa pelo Filho e se consuma no Espírito, é um movimento de amor sem
fim. Aqui, o ícone deixa transparecer o amor que une às três Pessoas
divinas. Trindade é mistério de comunhão. É uma comunidade perfeita.
O ícone, através
da reciprocidade dos olhares, evoca o eterno movimento de amor
que une as três Pessoas divinas, no sentido de que nenhuma delas esgota em si
mesma a existência, nem vive por si mesma, senão que subsiste num mistério de
total compenetração que ao mesmo tempo as une e as diferencia.
Isso é sugerido
também pelo movimento circular do rosto inclinado dos 3 anjos,
eternamente jovens, sentados à mesa do universo, em torno ao alimento divino;
rostos que são semelhantes sem ser realmente idênticos. A linha triangular dos
rostos e o círculo dos corpos estilizados indicam um mistério de diversidade na
unidade. Fundidos num êxtase que fala de
unidade e de harmonia, os três rostos já dizem tudo.
Pouco importa se o
Pai é sugerido pelo anjo do centro ou se, antes, há um movimento que vai
da esquerda à direita: o personagem da esquerda indica ser o Pai; o do centro,
o Filho; e o da direita, o Espírito Santo. As figuras do centro e
da direita olham com rosto respeitoso e humilde para a da esquerda, que se
mantém mais erguida que as outras duas, posto que o Pai é origem e
princípio de tudo.
Os três, com
efeito, tem a mesma atitude de abertura, de respeito, de súplica e de
invocação.
Deles emana um
mistério de eternidade, de amor, de quietude, de paz, de serenidade.
Esse movimento se
manifesta igualmente ao fundo do quadro. A árvore se inclina para a esquerda do
orante como se fosse submetida ao sopro de um vento forte. Ainda à esquerda se
inclinam os planos cortados do teto do edifício. Tudo está em movimento,
porque a vida é sair de si mesmo, é doar-se.
Esse ritmo exprime a circulação e
a comunhão da mesma Vida divina entre as Três pessoas.
Mas a Trindade não se
fecha em si mesma. O movimento expansivo expressa adoção, efusão, dom,
generosidade e graça, que admite,
convida o ser humano ao círculo divino.
Tudo se orienta,
na fé, para o mistério, para o encontro D’Aquele que vem. Curvando a
árvore, o movimento circular da vida divina atinge a natureza. Inclinando o
teto do edifício, atinge a humanidade orante, a humanidade no que ela tem de
mais elevado. O mundo todo constitui, de certo modo, a periferia; as Três
Pessoas divinas permanecem no centro.
Fixemo-nos, agora, nos traços
das três pessoas. Elas não tem idade e, no entanto, transmitem uma impressão de
juventude. Elas não tem gênero, no entanto elas unem o vigor à
graciosidade. As fisionomias e os gestos não foram “construídos” em vista do
charme e, no entanto o charme que se desprende é imenso.
Rublev soube expressar de uma
maneira única a eterna juventude e a eterna beleza das três pessoas.
Cada um dos três
anjos leva nas mãos um cajado alongado e muito fino. É que cada pessoa divina é
um viajante, um peregrino. O quadro ressalta a participação de
toda a Santíssima Trindade no mistério da salvação. Os três cajados constituem
uma declaração e uma promessa. Eles declaram que os três já vieram fazer morada
na humanidade. Eles prometem que os três continuam, através da presença
expansiva, a conduzir tudo para a plenitude. O quadro evoca, pois, o conselho
das Três Pessoas divinas em vista da redenção do gênero humano.
O artista, com sua obra, não
pretendia sugerir pensamentos, mas uma oração. A perspectiva do ícone é
orante, pois nos predispõe para “entrar” no mistério de Deus; também nos
convida a abandonar a lógica cotidiana do útil, para poder entrar na lógica da
gratuidade, do espaço místico e cultual, do diálogo com Deus, até os cumes da
adoração.
O ícone da
Trindade de Rublev nos recorda que não se trata de entender, ou de pensar e
estudar o Mistério da Santa Trindade. O decisivo é viver o mistério a partir da
adoração e da partilha fraterna.
É Deus quem toma a
iniciativa de se aproximar dos seres humanos. Como foram até Abraão, a Trindade
quer se aproximar também de cada um de nós. Dentro de nós habitam um Abraão e
uma Sara.
Que a contemplação deste quadro
nos coloque em contato mais profundo com as Três pessoas divinas para poder
repetir, prostrados, as palavras de Abraão aos divinos visitantes na planície
de Mambré:
“Meu Senhor, se mereci teu favor, peço-te, não
prossigas viagem sem parar junto a mim, teu servo”.
E se acolhermos as
Três pessoas de todo coração, poderemos, como Abraão, receber de sua boca a
certeza de que essa experiência abençoada, longe de ser um episódio isolado,
nos será concedida de novo: “passarei de novo pela tua casa”. Só assim
sentiremos Vida brotar em nossas vidas, como irrompeu no seio de Sara.
Não mais seremos velhos, estéreis e infecundos. A fé faz rejuvenescer.
Que a contemplação
do belo e do Santo faça brotar em nós a imagem de Deus que é
Pai-Filho-Espírito.
Amem!
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