“E o pão que eu darei é a minha carne
dada para a vida do mundo” (João 6,51)
O corpo humano está no centro da revelação
cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu
Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto
divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para
sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para
dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem
prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome
e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e
morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.
Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi Aquele
que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio corpo. Ele não tinha uma mentalidade
dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava
entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não
procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como
inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo
contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu
corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e
marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter
sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a
melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver
reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber,
dormir, descansar, desfrutar dos sentidos... a vista, o sabor, o olfato, o
tato.
Nem ele nem seus discípulos
guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas
com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.
Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem medos nem tabus: tocou e se
deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou os seus discípulos
desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que derramou sobre Ele um
caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e marcada somente pelo desejo
de compartilhar amor e gratidão.
Olhou o corpo das mulheres de um modo muito
diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de
tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram
amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor
operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos,
famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos...; além disso, deixou
claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar no
Reino: passar pela vida como terapeuta/sanador e não como juiz que acusa;
abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente
distância do corpo vulnerado de Jesus.
E, se com sua vida não tivesse
ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a
verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no
fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo
etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.
Na festa
de “Corpus Christi” fazemos memória
deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e
sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a
nos oferecer. Esse Corpo que era sua
própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora.
Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem
nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se
deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade
e no mais íntimo contato.
De agora
em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam,
onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que
não deixa lugar a dúvidas:
“Todas
as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi
a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um
grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia
desvinculado da realidade de sua Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez
corpo, viveu intensamente seu ser corporal e comprometeu-se com os corpos
desfigurados e sofredores dos outros, recriando-os e impulsionando-os a uma
vida mais plena.
Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos.
Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A
Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é
um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o
universo do imensamente pequeno.
Sempre foi verdade a afirmação de que “somos
corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas
durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade,
considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com
suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade
dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu...,
a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e
silenciada.
Atualmente caímos no perigo
extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de
atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em
extensão da imagem de nosso ego, ao
invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à
plenitude de Deus.
Desconectado de sua intimidade, o corpo
vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e se tecnifica
como se fosse uma mercadoria.
“Somos corpo” em relação com tudo o que é. Somos
nuvem, água, ar, terra. Carregamos todo o universo dentro de nós. Somos Terra
que sente, canta, pensa, ama. Somos partículas de matéria aberta, fonte
inesgotável de possibilidades. Somos corpo, somos espírito, somos alma, somos
afeto, somos relação… Somos milagre.
Celebremos o Corpus
Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e
vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem
submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos.
Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem
apropriar-nos dele.
Sintamos como próprio o corpo do faminto, do
excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança
abandonada...
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de
Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura
infinita.
Texto bíblico: João
6,51-58
Na
oração:
Seu
corpo, que é você mesmo, tão efêmero mas habitado pelo Infinito, o Eterno.
Você também, como Jesus, em
comunhão com todo o universo em movimento e evolução, é “corpo de Deus”. O Infinito
se manifesta e emerge de seu interior. Acolha seu mistério, deixe-se acolher
pelo Infinito em você, deixe que suba desde o mais profundo de você a Voz que
lhe diz: “Isto
é o meu corpo”.
-
Que a festa de “Corpus Christi” anime
você a viver sua vida cotidiana buscando fazer de seu corpo um lugar de
encontro, de vida, de amor, sem medos nem tabus. Você será mais feliz e, ao
mesmo tempo, será agente de felicidade em seu entorno.
O texto nos lembra de como somos corpo de Jesus encarnados na história.
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