segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Árvores: Raízes da Vida IV

Sarça: Árvore do Horeb

Folhas e caules são envolvidos pela vibração do fogo sagrado.
Entre os elementos vegetais, quase camuflados, as quatro letras do divino Tetragrammaton[1] espreitam...

O anjo do Senhor apareceu a Moisés numa chama de fogo do meio de uma sarça. Moisés prestou atenção: a sarça ardia no fogo, mas não se consumia. Então Moisés pensou: «Vou chegar mais perto e ver esse espetáculo extraordinário: por que será que a sarça não se consome?» (Ex, 3,2-3)


Cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e «cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder» quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas necessidades de utilidade e segurança». O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si. (Encíclica Laudato si, n. 105)


Videira: Árvore da alegria

Símbolo milenar de alegria, benção e paz, a videira é considerada um mensageiro da plenitude, e um elixir da vida.
Seus brotos, crescendo para cima, são uma força vital; seus ramos avermelhados são um sinal concreto de uma promessa.

Eu sou a videira, vós os ramos (Jo 15,5)

A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um antigo ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação constante de possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada momento. (Encíclica Laudato si, n. 222)




[1] Tetragrammaton: O nome hebraico de Deus transliterado em quatro letras - YHWH ou YHVH - e articulado como Javé.

Árvores: Raízes da Vida III

Oliveira do Getsêmani

Getsêmani, síntese do vínculo permanente entre Mãe e Filho.
Magma, o fogo original, explode em um sopro/instante e fixa formas esperando para ser explodido novamente.
O momento tornar-se eternidade.

Jesus foi com eles a um lugar chamado Getsêmani. E disse aos discípulos: «Sentem-se aqui, enquanto eu vou até ali para rezar.» (Mt 26,36)


Depois de um tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. (Encíclica Laudato si, n. 19)


Castanheira: Árvore da generosidade

Graças ao seu forte tronco, seus galhos espalhados pelo espaço, e seus copiosos frutos, a castanha é o símbolo por excelência de generosidade.
Ela sempre foi considerada um dom, muitas pessoas a chamam de árvore pão, um tesouro e um bem para proteger e cuidar com amor.

Espalhei os meus ramos, e a minha ramagem é bela e frondosa. (Eclo, 24, 16)


O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45). Isto tem consequências práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório, mas real. (Encíclica Laudato si, n. 94)


Árvores: Raízes da Vida II

Figueira: Árvore da hospitalidade

A figueira com seu tronco estreito e seus ramos totalmente espalhados é a imagem do processo de iluminação – despertar – focar - concentrar as energias para uma transformação espiritual. Esta árvore antiga tem sido considerada um símbolo de fertilidade, conhecimento, alegria e pacificação.

Aprendam, portanto, a parábola da figueira: quando seus ramos ficam verdes, e as folhas começam a brotar, vocês sabem que o verão está perto. (Mt 24,32)


Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra. (Encíclica Laudato si, n. 160)


Romãzeira: Árvore da prosperidade

Desde os tempos antigos a romã tem sido considerada como um símbolo da prosperidade e harmonia. Seu fruto, de forma arredondada, é uma imagem do cosmos e do mundo; possui muitas virtudes em si: unidade, honra, realeza,

Pela manhã iremos às vinhas, para ver se a vinha lançou rebentos, se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor. (Ct 7,13)



O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da atividade humana, estão a trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas conseqüências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos. (Encíclica Laudato si, n. 13)


Árvores: Raízes da Vida I

Amendoeira: Árvore da admiração

A amendoeira é a primeira das arvores a florescer. É, por excelência, um sinal da primavera e do renascimento.

Javé me dirigiu a palavra: “O que você está vendo, Jeremias?” Respondi: “Estou vendo um ramo de amendoeira”. Javé continuou: “Você viu bem, Jeremias, porque eu estou vigiando para cumprir a minha palavra”. (Jr. 1,11-12)


Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a encontrar soluções não só na técnica, mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não simplesmente renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da avidez, da dependência». Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta». (Encíclica Laudato si, n. 9)


Macieira: Árvore do conhecimento
 
Antiga árvore que dá bons frutos para aqueles que dela cuidam com atenção e amor.

Sob a macieira eu te despertei, lá onde sua mãe te concebeu, concebeu e deu à luz. (Ct 8,5)



Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. (Encíclica Laudato si, n. 67)


Árvores: Raízes da Vida

Apresentamos nas postagens a seguir um material alusivo a uma exposição de árvores citadas na Bíblia que um dos membros da CVX Amar e Servir teve a oportunidade de prestigiar na Igreja de Santo Inácio em Roma (Itália) no mês de Agosto. A exposição das árvores é uma iniciativa de disseminação da Carta Encíclica Laudato Si.
A publicação original, explicativa da obra do Maestro Settimo Tamanini, escultor das árvores, pode ser acessada neste link: Laudato Si - To the Roots of Life.  O material foi livremente traduzido dos originais (inglês/italiano). 
Consideramos uma excelente proposta para rezar individualmente ou em comunidade.​

Laudato Si - To the Roots of Life 
Para as Raízes da Vida

“Em um dia de inverno um padre do deserto pediu a uma árvore velha, escura e murcha: ‘Fale-me sobre Deus’. E a árvore floresceu”. (Autor desconhecido)

As árvores:

1. Amendoeira: Árvore da admiração
2. Macieira: Árvore do conhecimento
3. Figueira: Árvore da hospitalidade
4. Romãzeira: Árvore da prosperidade
5. Oliveira do Getsêmani
6. Castanheira: Árvore da generosidade
7. Sarça: Árvore do Horeb
8. Videira: Árvore da alegria

domingo, 30 de outubro de 2016

Zaqueu, conquistado por um Amor Exagerado

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 31º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

 ...hoje preciso ficar em sua casa” (Lucas 19,5)

Os protagonistas da cena do Evangelho de hoje, Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente.
Ao redor deles, encontra-se uma multidão, que parece desordenada e crítica, que até se torna obstáculo: de um lado, impede Zaqueu de ver, e de outro, murmura contra Jesus, contestando-o por estar do lado “errado” ou com quem já estava perdido.
Zaqueu é a uma das poucas pessoas que, nos quatro Evangelhos, toma a iniciativa de encontrar-se com o Mestre gratuitamente: nada tem a dizer e nada tem a pedir.
Zaqueu não sabe o que deseja de Jesus, nem o que Jesus deseja dele; esta é a graça: encontrar-se com o “Mistério”, deixar-se “interpelar”... Ele não tinha uma ideia formada, consistente, sobre Jesus. Brota nele, talvez por curiosidade, uma decisão de simplesmente se encontrar com Ele.
No seu interior palpita um desejo estranho. Diz o texto que desejava “ver quem era Jesus”.
Mas Zaqueu é obrigado a “sair de si”, deixar seu “lugar”; não pode “trazer a si”, “mandar vir”... é forçado a se deslocar.

E, talvez pela primeira vez, esbarra-se de encontro ao muro da impotência. Não podia ver Jesus porque era de estatura baixa e havia muitas pessoas em volta do Mestre.
Provavelmente não foi apenas a quantidade de gente que o impediu de aproximar-se d’Ele; foi a sua condição de pessoa rejeitada pela multidão. Zaqueu, pequeno em estatura, baixo em ideais, atrofiado em seus sonhos..., alimentava dentro de si um grande desejo de “querer ver”; tal atitude desvela a busca pela verdade, pelo bem, pela vida verdadeira, que reina latente no coração de cada ser humano.
Jesus se coloca, precisamente, neste espaço, fazendo brotar no interior de Zaqueu o que era novo, surpreendente, enfim, a “hora” da salvação.
Não faltava segurança econômica e nem social para Zaqueu. Porém, no fundo, talvez fosse um homem solitário, triste, marginalizado. Sentiu em seu coração um vazio profundo, que se transformou em desejo atormentador, ou seja, uma urgente necessidade de mudança.
Sentiu que não podia continuar indiferente diante da pessoa de Jesus.
A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, indicam a clara demonstração de que surgira nele uma estranha inquietude. O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.

O encontro de ambos acontece na estrada, onde transitam, onde ocorrem os acontecimentos do dia-a-dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos...
Zaqueu não se preocupa com mais nada: nem com a boa imagem ou com o que a multidão pensaria ao vê-lo sobre uma árvore; o respeito humano, o bom senso, o status social e o “bom nome” não lhe interessam mais. Enfrenta a limitação de sua baixa estatura, esquece a condição de ser um homem rico, “respeitável”, e sobe numa árvore, da qual pensa ver Jesus sem ser visto.
Jesus passa pelo caminho arborizado e vê Zaqueu em seu observatório, e o convida a descer:
                        “Desce depressa, porque hoje preciso ficar em sua casa”.
Não é uma visita passageira; é o amigo que deseja permanecer em sua casa. Não vai para deixar alguma coisa, vai para ser o próximo de Zaqueu. O próximo entra como amigo, sem impor condições, sem fazer pesar-lhe a sua situação de pecador. Chama-o finalmente pelo nome: “Zaqueu”.
Olham-se e entendem-se. O olhar profundo de Jesus, seu amor exagerado, seu convite inesperado, sua voz penetrante, transformam de imediato a vida daquele pequeno homem. E, nada mais foi como antes!

Mas o verdadeiro encontro entre os dois se dá em casa, entre as paredes da vida cotidiana. Jesus quer a mesa de Zaqueu; não lhe importa a sua estatura. O “Senhor”, como dom gratuito e inesperado, entra na casa e no coração de Zaqueu, à busca de quem estava perdido.
Somente depois daquele encontro, fulminado pelo olhar e pelas palavras de Jesus, com o coração transbordante de alegria, Zaqueu se sente renovado e tudo, ao seu redor, lhe parece novo e diferente.
Durante a refeição, partilhando do mesmo pão e do mesmo vinho, ambos se conhecem melhor.
Não há perguntas, não há conselhos, nem muito menos repreensões, mas apenas uma conversa amigável, sentimentos manifestados, experiências confrontadas.
Jesus não pede nada a Zaqueu: é seu hóspede e se contenta de estar perto dele, partilhar com ele uma refeição. Contudo, o vinho novo de Jesus arrebenta os odres velhos de Zaqueu.

Assim, o chefe dos publicanos se torna transbordante, apaixonado, protagonista de uma vida nova.
Ele passa da solidão à partilha, da tristeza à alegria...

Zaqueu não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar d’Aquele homem encheu-lhe o coração; a sua casa, agora, não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.
Zaqueu foi amado “excessivamente” e decide corresponder com a mesma moeda, sem medidas. Ele viu, por um instante, a sua vida na nova visão: “Senhor, vou dar a metade dos meus bens aos pobres; e se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais”.
E o hóspede sela esta jornada, iluminando o acontecimento e interpretando-o no seu significado de graça, de libertação: “Hoje, a salvação entrou nesta casa”.
O encontro com Jesus significou para Zaqueu abrir-se aos pobres, partilhando seus bens com eles.
Tal encontro faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.
Jesus é a única porta, e esta não dá para o vazio; esta porta dá para os outros que possuem um nome, uma identidade, uma história...
Os “outros” conseguiram tirar Zaqueu do bloqueio da sua solidão e começou a ver e a ouvir, a caminhar em direção deles e com eles. Este é o sinal claro e evidente de que o próximo foi acolhido.

Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir do observatório do próprio ego. Agora que se encontrou com o Senhor e que saiu de si para conhecê-lo e acolhê-lo, enxerga os outros a partir da perspectiva de Jesus.
Ele sente que não apenas a sua casa está habitada, mas sobretudo a sua morada interior, onde o seu “eu” tem vivido como um estranho, onde jamais encontrou segurança.
Não bastou descer da árvore: “Não, Zaqueu! Desce! Desce mais! Até o fundo de ti mesmo!”

Texto bíblico: Lucas 19,1-10 

Na oração: No fundo de nosso pobre coração, entulhado de ídolos, como um quarto de despejo, é aí que o Senhor ajeita um cantinho para sentar-se e ficar à nossa espera.
É dentro do nosso próprio coração que Deus nos espera. Compete a cada um alimentar o desejo do encontro com Ele.

- Desce ao mais profundo de você mesmo e ali, diante da presença misericordiosa do Senhor, estabelece um diálogo íntimo com Ele.   

sábado, 22 de outubro de 2016

Perfeição Petrificada x Misericórdia Vivificante

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 30º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“O fariseu de pé, rezava assim em seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens..., nem como este cobrador de impostos” (Lucas 18,11)

Nesta parábola, mais uma vez Jesus des-vela a presença de dois personagens em nosso interior: o fariseu, expressão máxima do legalismo, do moralismo, do perfeccionismo, e o publicano, expressão máxima daquele que se reconhece pecador, necessitado da misericórdia divina.
Ambos vão ao templo (coração)  para orar, e, na oração, cada um deles revela seu rosto e sua identidade.
Qual deles prevalece em nosso interior? Qual deles alimentamos?
De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus.
Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Não pode ver nem reconhecer suas imperfeições, mesmo estando dentro dos muros de um lugar sagrado. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre sua perfeição: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar.
Não só é perfeito diante de seus olhos, mas quer também mostrar-se perfeito aos olhos de Deus. A tendência à perfeição favorece um egocentrismo refinado.

Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A auto-glorificação impede sua humanização. Petrifica-se em seu legalismo e perfeccionismo.
Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus.
Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão.
Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais.
A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.

Na sua autossuficiência, o fariseu pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus e à frente de todos; sobe o pedestal da “perfeição” e do “legalismo” e distancia-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de ouvir a Deus no seu íntimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus.
Seu louvor e agradecimento são apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus.
E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado crônico, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo.
Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa.

Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo. O perfeccionista não pode prescindir da comparação. Tem necessidade de um ponto de referência que destaque sua grande estatura legalista. Por isso o fariseu observa a presença de um pecador com quem se compara e diante de quem se sente superior.
Não há perfeccionista que não seja inquisidor, nem inquisidor que não seja perfeccionista.
A tendência à perfeição oprime a pessoa até sufocá-la; sendo excessivamente exigente, oprime e sufoca também os outros. Por isso, a tendência à perfeição é uma doença do espírito, um eu em conflito consigo mesmo. O perfeccionista vive uma batalha interior, uma batalha que jamais se vence; sua vida torna-se estreita, ele se desumaniza e mergulha nos escrúpulos.
Quem se deixa guiar pela ideia de perfeição, cedo se dará conta de que não poderá abraçar a vida. Permanecerá confinado num eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de pau.
O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.
Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano prostra-se diante de Deus, volta-se para a o chão, reconhece seu pecado, abre-se à misericórdia de Deus, de quem espera o perdão. Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração autossuficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transforar a pessoa.
Jesus sabia que a pessoa consciente das suas imperfeições é mais disponível ao anúncio do Reino. Sabemos que as escolhas de Jesus não caíram sobre os perfeitos. As pessoas com quem Ele entrou em contato não eram conhecidas por suas boas maneiras nem pelas boas ações, antes, eram pecadoras públicas.
O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir.
Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.

Nesta parábola, Jesus revela também um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, impor, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...
A misericórdia torna o Deus de Jesus acessível a tudo que é imperfeito, limitado, humano...
A misericórdia constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de deter o ser humano naquele processo de autodivinização, própria do fariseu.
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
         “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lucas 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.

Texto bíblico:   Lucas 18,9-14 

Na oração:
* Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.

* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?    

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Uma fé que protesta

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Lucas 18,8)

Na parábola de hoje, dois personagens ocupam a cena. Um juiz que “não teme a Deus” e “não respeita as pessoas”; é um homem surdo à voz de Deus e indiferente aos sofrimentos dos oprimidos.
De outro lado, a parábola fala de uma viúva que tem fé e que protesta, pedindo justiça, apesar da insensibilidade do juiz. Quê ressonâncias pode encontrar hoje em nós este relato dramático que nos lembra tantas vítimas abandonadas injustamente à própria sorte?

Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.

A pobre viúva, no evangelho de hoje, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.

De fato, se observarmos bem o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a “sede de justiça”. A expressão “fazer justiça” é repetida quatro vezes. A viúva do relato é exemplo admirável de uma mulher corajosa que luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que explora os mais fracos.

Contrariamente àqueles que pensam que não vale a pena sair às ruas e gritar (no plano social e religioso, político e eclesial), o evangelho de hoje nos coloca diante do exemplo da fé e do grito de protesto da viúva, capaz de alterar a ordem injusta do sistema social. Muitas vezes resta só um grito, mas um grito que é mais profundo e eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes... daqueles que corrompem e exploram os mais pobres. O problema está em que a maioria se cala ou se dobra diante da realidade injusta, pedindo míseras migalhas, subsídios, esmolas... Para que tudo continue igual. No fundo, querem que os enganem, e assim compactuam com a submissão alienante.

O que acontece é que, muitas vezes, aqueles que deveriam protestar, como a viúva, preferem ajustar-se ao sistema “por um prato de lentilhas”: preferem fazer pacto com o juiz, com o opressor. Essa tem sido a atitude de grande parte das comunidades cristãs, daqueles que dizem que nada podem mudar. No fundo, é a atitude daqueles que não creem em Deus.

Pois bem, contrariamente a isso, esta viúva grita, em gesto de manifestação radical. Não se resigna, não se curva. Com indignação, eleva-se diante do juiz, que representa todos os “podres poderes” deste mundo. Ela, a viúva do grito, é mais forte que os próprios juízes.

Certamente tem razão o teólogo J. B. Metz quando denuncia que na vivência cristã há demasiados cânticos e poucos gritos de indignação, demasiada complacência e pouca aspiração por um mundo mais humano, demasiado consolo e pouca fome de justiça. É preciso somar gritos!

Esta parábola não trata de uma situação particular, mas recolhe a experiência mais profunda da Bíblia, desde os hebreus no Egito que gritam e Deus os escuta. Para que a realidade se transforme, continua sendo necessário o grito das viúvas, a voz de todos os oprimidos do mundo, que clamam diante de Deus e diante dos homens.

Esta é a fé fundamental, a fé da viúva que grita e pede justiça. Esta é a fé na força do protesto. Esta é a fé que se eleva e se opõe ao sistema injusto.

A fé não é “algo” que alguns possuem e outros não; da mesma forma, a fé não se reduz a uma aceitação doutrinal, prática de obrigações religiosas e obediência e uma disciplina. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se expande..., vai se renovando a cada dia e tem implicações na construção de um mundo mais justo.

A constância e a insistência de uma pobre viúva põe em cheque a um autossuficiente juiz que se considera mais valente. A constância é como a gota de água que pouco a pouco vai perfurando a pedra; a constância é capaz de dobrar o mais duro coração.

A viúva “crê” (tem fé) na força de sua insistência pedindo justiça. Numa dimensão mais profunda, o grito dos marginalizados e das viúvas ressoa na mente daqueles que se beneficiam do sistema social injusto. Trata-se não de resignar-se, de não aceitar simplesmente o mundo como está, mas de protestar...

Esta viúva é o símbolo das vozes de todos aqueles que gritam e protestam.

Se todas as viúvas do mundo gritassem, se todos os pobres gritassem, se todos os que se sentem enganados por esta sociedade elevassem a voz, o sistema social tremeria diante do grito da vida. O resultado final não estaria no triunfo dos mais fortes e poderosos, nem no poder do dinheiro, mas no grito incessante, de não-violência ativa. O grito dos que clamam diante de Deus e diante dos homens tem uma força infinita; trata-se da onipotência daqueles que gritam.

Vivemos em um mundo que parece dominado pela voz daqueles que vivem para se impor, pela propaganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas. Pois bem, contra tudo isso, temos que nos comprometer a elevar nossa voz profética, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.

Humanamente falando, essa voz parece muito fraca. Como comparar-se com as potentes vozes do império da mídia ou com a injustiça organizada dos “juízes” do mundo? Externamente o grito da viúva parece muito pouco; não é nada e, no entanto, essa voz foi e continua sendo mais poderosa que todas as armas e dinheiro do sistema.

Esta é a pressão popular, esta é a revolução de todas as viúvas do mundo, ou seja, de todos os injustiçados, uma revolução que tem que começar, a partir do Evangelho. Assim foi a voz de Jesus que gritou contra as injustiças, a favor da justiça do Reino, mas foi assassinado. É evidente que não conseguiram calar sua voz, pois esta continua ressonando e perturbando a vida de muitos acomodados. Assim deve ser nossa voz, nosso grito, contra a ordem econômica injusta, contra uma sociedade que engana para manter privilégios, e inclusive contra as religiões que nos obrigam a ficar em silêncio.
Texto bíblico: Lucas 18,1-8
Na oração: 
- É nossa oração um grito a Deus, mobilizando-nos a lutar pela justiça em favor dos pobres deste mundo, ou será que a substituímos por outra, onde o centro está ocupado pelos interesses do nosso “ego” ?

- Por que nossa comunicação com Deus não nos torna sensíveis para escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente? Muitas vezes alimentamos nossas devoções particulares, esquecendo os que vivem sofrendo.

- Continuamos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem nos importar muito com as injustiças que há no mundo. Muitas vezes, em nossas comunidades cristãs, o centro de nossas preocupações não é o sofrimento dos últimos, e sim a vida moral e religiosa dos cristãos.

- Em nossas liturgias ressoa a voz daqueles que clamam por justiça ou elas são ritos vazios de vida que nos mantém anestesiados e alienados frente aos dramas da humanidade?

sábado, 8 de outubro de 2016

GRATIDÃO: o agradecimento é a memória do coração

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum - Ano C.



“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra e lhe agradeceu; e este era um samaritano”

A tradição judaica transmite este ensinamento:
        “Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer antes uma oração de gratidão ou uma benção, comete uma injustiça”.
A ação de graças está no coração mesmo da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade do cristão consistem em poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um ateu é não ter a Quem agradecer.
A pessoa compreende que “tudo é dom e graça de Deus” e esquecer de agradecer é passar ao lado daquilo que constituí a beleza da vida. Agradecer  é muito mais que dar graças. Implica re-conhecimento e correspondência.  “Ali onde não há gratidão, o dom fica perdido” (Bruno Forte).

Lucas situa o relato de hoje no caminho de subida a Jerusalém, no limite entre Galileia e Samaria, lugar chave de disputas religiosas. Os leprosos que saem ao encontro de Jesus e gritam de longe pedindo-lhe que os cure, são dez. Significativamente, a lepra não distingue entre judeus e gentios, galileus e samaritanos. Todos são irmãos na miséria.
No relato podemos identificar os mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de curas: apresentação da situação de enfermidade (“dez leprosos vieram ao seu encontro”), petição de cura (“Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”), intervenção de Jesus (“Ide apresentar aos sacerdotes”), cura (“enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados”) e reação diante do milagre.
É este último elemento que está mais desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da atitude de um dos leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com a dos outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem senão cumprir as instruções de Jesus: ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas só um tem a suficiente finura espiritual para reconhecer profundamente o dom recebido e, deixando de lado as prescrições legais, dá primazia à expressão de agradecimento.
A gratidão parece apresentar-se aqui como um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade nas relações humanas e na vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente minoritária (um entre dez).
O samaritano sente que para ele começa uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente: poderá viver de maneira mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do samaritano que confia em Jesus, que crê no agradecimento mais que nas leis do sistema religioso. O agradecimento como atitude vital parece requerer, pois, uma especial sensibilidade espiritual, precisamente essa que encontramos nos santos e santas.
Caberia perguntar-nos quais são as razões que nos dificultam esta vivência da gratidão, quando deveria brotar de modo espontâneo e natural frente a tanto bem recebido.

No início de uma carta de S. Inácio a um de seus primeiros companheiros, Simão Rodrigues, lemos isto:
“À luz da divina bondade me parece que, embora outros possam pensar de modo diferente, a ingratidão é o mais abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor, e de todas as criaturas capazes de aproveitar-se em sua divina e eterna glória. Já que é esquecimento das graças, bens e bênçãos recebidas; e além disso aqui se encontra a causa e começo de todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a gratidão que reconhece as bênçãos e bens recebidos é estimada e amada não só na terra senão também no céu” (18 de março – 1542).

Na vivência cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
Elas adquirem a fina percepção de que tudo é Graça, tudo é “de graça”, são “agraciadas”, “cheias de graça”... Precisamente porque perceberam suas vidas como um presente, voltam-se para Deus, entregando-lhe “tudo o que tem e possuem”.
Marcada pela gratidão, a pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo tipo de mediocridade na entrega e no serviço.
O agradecimento é uma atitude fundante e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro “sabor”, com outro “ar”. Do agradecimento brota um estado interior de consolação, de disponibilidade, de agilidade em dar resposta às demandas da vida, de uma sensibilidade mais viva para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de dom e sem ansiedade  por não receber compensações ou recompensas.
O agradecimento é a experiência humana que mais ativa a generosidade como atitude vital de nossa existência de criaturas amadas e presenteadas por Deus.



O agradecimento como atitude básica na vida é a tomada de consciência daquilo que estamos recebendo,
a acolhida dos bens que nos são dados e das pessoas que nos vem ao encontro; é viver não tanto dependente daquilo que cremos que merecemos e não nos dão, quanto daquilo que, sem haver merecido, nem esperado, nem pedido, recebemos e continuamos recebendo no dia-a-dia.

Esse “agradecer” de fundo, esse viver “agradecidamente” não nos é favorecido pela cultura consumista que nos incita a estar sempre mais dependentes daquilo que não temos que daquilo que nos é dado com abundância; uma cultura que fomenta e aviva uma eterna insatisfação, matando a capacidade de “recordar tantos benefícios recebidos pela criação, redenção e dons particulares” (S. Inácio).
O que é que se encontra “de graça”? Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Há aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, são petrificados frente à gratidão. São surdos e mudos para o “muito obrigado”.
A gratidão é alegria, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como uma
gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais leve, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.

Texto bíblico: Lucas 17,11-19

Na oração:
É importante cuidar de nossa gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a memória, a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como seguidores de Jesus, pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.

- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.