“Quem põe a mão no arado e olha para trás não está
apto para o Reino de Deus” (Lucas
9,62)
O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder
porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.
O corpo humano é um receptor e um
transmissor de emoções e a principal mediação para comunicá-las e transmiti-las
é através do olhar. A maneira de conhecer melhor uma pessoa, criar laços de
empatia com ela e inclusive saber se o que está dizendo é verdade ou mentira...
é através do olhar.
O olhar é o recurso não verbal mais
expressivo e sincero que nós, seres humanos, possuímos, porque com um simples
olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.
“Se eu morrer, morre comigo um certo modo de olhar”, disse um poeta. Mas
o hábito contamina os olhos e tira seu brilho expressivo. Acostumamos a ver as
coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade
de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo
de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai
se estreitando e tudo se torna rotina.
Faz-se necessário, então,
despertar a criança que ainda habita nosso interior; ela vê o que o adulto não
vê, pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
“Um
olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais
simples” (Ir. Roger).
A saturação de imagens,
informações e efeitos especiais, tão característica de nossa cultura, está
minando, progressiva e sutilmente, a capacidade tanto de apreciar as realidades
simples como de perceber a profundidade e o mistério que há nelas. O pior desta
situação não é somente a perda da visão contemplativa, mas sobretudo não ter
consciência do que acontece ao nosso redor.
Seria de grande ajuda
conhecer as “enfermidades” mais frequentes de nossa visão. Detectá-las e
reconhecê-las constituiria um avanço decisivo para eliminar os obstáculos que
impedem penetrar no significado do mistério da vida em seu estado mais “puro”.
Mas não basta
pousar os olhos sobre a realidade para captar a profundidade e transcendência
do que é contemplado. É difícil ver o evidente. Exige uma tarefa prévia de
“desvestir” os olhos para olhar de novo e descobrir o que verdadeiramente
existe. “Ver é um esforço, e olhar, literalmente,
é um milagre”
(Luis Rosales).
Todo olhar não é neutro;
ele tem sua intencionalidade. No olhar revelamos algo de nossa
identidade: onde está o nosso olhar, aí está o nosso coração. Vemos muitas
coisas, mas só “olhamos” aquilo para o qual se dirige nossa atenção. Nesse olhar
três aspectos se interrelacionam: aquele que olha, o objeto
do olhar e o ato de olhar, ou seja, como olhar. Sempre
precisamos ter presente o processo de olhar, mas especialmente os pólos:
quem
olha (aspecto subjetivo) e onde se olha (aspecto objetivo).
Normalmente, nossa
tendência é focar a atenção mais no pólo objetivo, ou seja, para
onde se olha, qual o conteúdo do objeto do olhar. No caso do Seguimento, os
olhos estão fixos em Jesus, deixando-nos afetar pela Sua identidade, Suas
relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...
Mas o caminho do
Seguimento possibilita também centrar a atenção no pólo subjetivo, ou
seja, sobre quem olha: quem é aquele que olha, sua liberdade
interior, seus movimentos internos diante da pessoa e do chamado de Jesus, a
sedução que sente por uma grande causa...; da mesma forma, os obstáculos que
percebe ao olhar a pessoa e o projeto de Jesus, a resistência em encontrar-se
com o olhar d’Ele, o medo de ser visto em sua fragilidade...
Nossos olhos refletem nosso
interior. Eles podem estar em condições favoráveis para contemplar a cena do
chamado de Jesus. São olhos sadios. Sadios porque há uma correspondência direta
e uma profunda intimidade entre aquele que olha e Aquele que é olhado.
Há pessoas que olham de forma
bastante objetiva, transparente. São pessoas internamente mais livres, cujo
olhar se deixa impactar pela presença e pela proposta de Jesus. Desse olhar
brota o assombro, a admiração e o impulso em assumir o mesmo sonho do Jesus
peregrino: a realização do Reino do Pai.
No entanto, há
também os olhos feridos que não ousam ir mais além; os ferimentos podem
vir do interior, bem como do exterior da pessoa. São ferimentos de sua
história, de seu passado, das experiências frustrantes que viveu até o momento
presente. Muitas pessoas passam grande parte da vida fortemente impactadas por
experiências negativas, de desamor, de solidão e desvalorização...
Existencialmente,
em seu olhar a pessoa pode revelar seus ferimentos afetivos, experiências de
rejeição e de “olhares pesados” dos outros sobre ela.
Elas escondem o
olhar quando expostas a realidades externas difíceis, de violência, de
exclusão... Elas acabam pensando que o mundo e a realidade das pessoas se reduzem
a isso, e projetam uma visão deturpada sobre a própria pessoa de Jesus. Dói-lhe
fixar os olhos n’Ele.
Com isso, seu
olhar fica atrofiado e não ousa levantar-se para contemplar diante de si a
pessoa de Jesus. É o que poderíamos chamar de “cataratas” existenciais e
espirituais. São obstáculos que impedem uma experiência mais profunda e
objetiva na vivência do Evangelho.
Todos somos
testemunhas de como pessoas internamente feridas no amor expressam um rosto um
tanto sofrido e os olhos revelam certa tristeza e amargura.
Por isso, temos a
clara convicção de que a objetividade do olhar e a capacidade de fixá-lo em
Jesus requer um mínimo de liberdade interior, de ter experimentado o amor em
suas múltiplas expressões.
Há um outro aspecto no Evangelho
de hoje que é preciso ressaltar: precisamos também aceitar que o “objeto
do olhar” (Jesus e seu chamado) pode melhorar nossa visão. Isso significa
que a experiência do encontro com a pessoa de Jesus, seu olhar misericordioso e
marcado pela ternura, a proposta ousada e desafiante que Ele nos faz... podem
ajudar a purificar nossos olhos e a melhorar nossa visão.
A própria pedagogia de
humanização ampla de Jesus vai beneficiar nossa própria identidade, despertar
dinamismos e desejos ocultos em nosso interior, sacudir nossas amarguras e
ampliar nosso atrofiado olhar.
Ao “fixar seu olhar” em cada um
de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e
integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio
Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma
troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus
ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos
horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe
a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no
contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Texto bíblico: Lucas 9,51-62
Na oração: o que me impede
de ter um olhar límpido e transparente na tentativa de me configurar ao olhar
de Jesus? O que busco ao fixar os olhos em Jesus? O que sinto ao perceber os
olhos de Jesus fixos em mim?
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