Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 22º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz!”
Com sua presença provocativa numa refeição, “na casa de um dos chefes dos
fariseus”, Jesus
denuncia um “pecado de raiz” que, em grau maior ou menor, está presente em todos
nós: a vaidade.
“A vaidade é a osteoporose da alma”, afirmou o Papa Francisco; os
ossos parecem bons, a partir de fora; mas, por dentro estão todos corroídos. A
vaidade nos infla, nos engana, mas não tem longa vida, porque é como uma bolha
de sabão.
Este “pecado de raiz” se visibiliza na busca pelos “lugares” de destaque, de prestígio, de honra... A busca dos primeiros lugares se enraíza numa profunda carência pessoal: a necessidade de se sentir reconhecido. A isso se somam outras necessidades como a de “ser visto”, “ser único” ou “ser especial”. A vaidade é mascarar a própria vida para aparecer, para fingir, para impressionar...
No evangelho deste domingo, Jesus desmascara a cultura da
aparência e da vaidade; no fundo, Jesus desvela a cultura da superficialidade,
da mentira e da falsidade existencial. Para a chamada “cultura da imagem”
parece que tudo vale, contanto que a imagem pessoal saia beneficiada.
O ego busca autoafirmar-se porque unicamente desse
modo pode sentir-se “existente”. Entre os modos de autoafirmação se destacam
aquela que podemos considerar como pulsão básica: aparecer, chamar atenção
sobre si, ser reconhecido... Como se torna impossível fundamentar-se em si
mesmo, de uma maneira sadia, devido à sua natureza vazia, precisa “roubar
energia” para alimentar-se. Trata-se, portanto, de um parasita que vive do que
é tirado dos outros: o elogio, o reconhecimento, a bajulação...
O
resultado de tudo esse processo, na medida em que a pessoa se deixa enredar por
ele, é um ego escravo da vaidade e da busca de prestígio. Escravidão que corre
de mãos dadas com a ignorância acerca daquilo que realmente a pessoa é. O ego
se move sempre a partir de suas necessidades e seus medos, que são os que lhe
dão uma sensação de existir; e a pessoa egóica cada vez se sente mais frustrada
e desconectada de quem verdadeiramente ela é.
As tradições sapienciais sempre insistiram no cultivo de
atitudes alternativas, como fica destacado com força na mensagem do próprio
Jesus. Este é o caminho da sabedoria e da libertação do sofrimento. E só o
crescimento nesta consciência tornará possível a transformação pessoal e
coletiva.
A plenitude humana se revela naquilo que a pessoa é, a sua
essência, e não naquilo que aparenta. Uma pessoa, vazia de ego, tem acesso à
verdadeira sabedoria e deixa transparecer uma profunda gratidão pelo simples
fato de existir. Só quando tem acesso à sua verdadeira identidade, a pessoa será
transformada e poderá viver numa atitude de gratuidade e gratidão.
E
assim, descentrada de si mesma, vive uma atitude de acolhida e partilha na
relação com os outros; a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação
com o ego farisaico cai. Então emerge uma nova consciência na qual os outros
são percebidos como “parte” de si mesmo; partilhar com os outros é doar-se a si
mesmo; causar dano aos outros é danificar a si mesmo.
Podemos imaginar a expressão de susto e surpresa daquele
fariseu que convidara Jesus à sua mesa. É que Jesus tem sempre algo “novo” que
rompe com “o de sempre”. Contra todo formalismo auto-centrado, a Jesus lhe
ocorre dizer ao fariseu: “Então
tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir”.
A “novidade” da Boa Notícia de Jesus vai sempre contra os
“velhos costumes” do “eu
te convido para que me convides” (e, se possível, com juros).
À lei da “reciprocidade comercial” Jesus contrapõe a “generosidade gratuita”.
Para Jesus, adquire a verdadeira honra
quem não se exalta a si mesmo sobre os outro, mas quem “desce” voluntariamente,
colocando-se juntos aos últimos e servindo-os. A generosidade é compartilhada
com os pobres que não podem pagar com a mesma moeda, porque não tem nada. Honra
e vergonha adquirem, na boca de Jesus, um conteúdo diferente: a honra consiste
em servir ocupando os últimos lugares e isto não é motivo de vergonha, mas
sinal verdadeiro de quem já está dentro do grupo dos verdadeiros seguidores do
próprio Jesus que “não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em favor de muitos”.
Jesus
nos convida e nos deslocar para o “último lugar”, pois Ele se fez “último”;
Ele entrou na história a partir de baixo, dos últimos, dos excluídos, e
não pelo lugar do poder, da riqueza, da força...
As
grandes mudanças e transformações, em todos os níveis da condição humana,
começam por baixo. Não há mudança que vem de cima.
Poderíamos dizer que a denúncia de Jesus, junto à mesa de
quem o convidara, alarga o sentido da amizade.
O Para Francisco fala da “amizade social” e
colocou esta expressão no centro da encíclica “Fratelli Tutti”; tal expressão
pode parecer algo estranha, e por isso reagimos com surpresa. Todos nós estamos
acostumados a utilizar a “amizade” como atributo pessoal e privado; para falar
das relações na sociedade, recorremos a termos mais amplos como respeito,
solidariedade, civismo, cidadania, etc. Reservamos a palavra “amizade” ao
círculo íntimo de nossos afetos.
Vivemos um contexto social e religioso
onde nos sentimos mais distantes e sozinhos, mais desarticulados e vulneráveis,
limitados à condição de espectadores e consumidores; a globalização nos fez
vizinhos, mas não irmãos. Claramente, nossas sociedades mostram dificuldades
para se constituírem como um projeto que abarque a todos. Obviamente, não nos
sentimos companheiros no mesmo barco e inquilinos da mesma casa comum. São
inumeráveis os excluídos da mesa da refeição.
A “amizade social” é uma tentativa de reverter esta situação. Seu ponto de partida é o reconhecimento básico do que vale um ser humano, sempre e em qualquer circunstância, considerando-o precioso e digno de todo cuidado. Só exercendo esta visão da vida, realizaremos uma fraternidade aberta a todos. No entanto, para isso precisamos cruzar as cômodas fronteiras que nos separam.
O desafio é “ir mais além”, tomando consciência, por
exemplo, de que a amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde
ativamos habilidades para serem aplicadas universalmente. Os amigos que só se
ocupam de seus amigos reduzem o horizonte da amizade. E, da mesma maneira,
quando as famílias só se preocupam pelo bem-estar dos seus, e esgotam sua
responsabilidade neles, algo decisivo fica por fazer.
A experiência da amizade e do amor deve
servir para abrir o coração àqueles que estão excluídos, fazendo-nos sensíveis
a esta realidade, envolvendo-nos numa atitude ética de acolhida, dotando-nos de
generosidade para sair de nós mesmos e cuidar de todos. Não existimos em um
vazio, mas em um contexto amplo e diferente de relações das quais somos
corresponsáveis.
Nesse
sentido, viver o seguimento de Jesus
implica em “sair do próprio amor, querer e interesse” (Santo Inácio de Loyola)
e abrir-nos ao encontro com o outro, sobretudo o “outro” que é vítima de
estruturas sociais e políticas injustas, que é excluído, que é marginalizado.
“Converter-nos” ao Deus da Vida é “converter-nos” ao compro-misso com os
prediletos d’Ele, os mais pobres e sofredores; é abrir nossas casas e oferecer
nossas mesas.
Fazer caminho com Jesus desperta em nós uma profunda sensibilidade que nos impulsiona a uma presença inspiradora naqueles “lugares” onde já está presente Aquele que continuamente se desloca para o mais baixo, para que nenhuma pessoa, para que nenhuma situação humana, fique fora do “movimento de vida” e de “retorno” de tudo para o Pai.
Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 14,1.7-14
Na oração:
É na
espiritualidade da mesa e da refeição que nós cristãos, devemos
alimentar a nossa espiritualidade cotidiana. Mas, para isso, precisamos
resgatar a mesa como espaço do sagrado, do encontro com o outro e
conosco mesmo.
É urgente
sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que
venha o despertar da nova mesa, com gosto de pão, de vida
fraterna, de compromisso.
Mesa
criativa, solo de
onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas
múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
- Quê
lugar tem a mesa da refeição no
cotidiano de sua vida familiar, comunitária, eclesial...?