quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Preconceito e escândalo: atitudes que matam

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 26º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem...” (Mc 9,42) 

O relato do evangelho de Marcos, indicado para este domingo, nos situa diante de duas grandes tentações que envenenam as relações na comunidade cristã: o preconceito e o escândalo.

Jesus é consciente de nossas fragilidades e incoerências; portanto, tem consciência também de que haverá escândalos e preconceitos entre seus seguidores. Por isso, nos alerta sobre a gravidade dos mesmos.

De fato, vivemos mergulhados em um mundo diversificado, fragmentado, complexo e frágil, cheio de agudas necessidades. Ferem a nossa sensibilidade a tremenda violência nas relações interpessoais, a cultura do ódio e da intolerância, o desprezo pelas diferenças étnicas e religiosas, a exclusão avassaladora...

Impulsionados pelo mesmo Espírito de Jesus, guiados pelos critérios do Evangelho, marcados pelos valores universais de respeito, dignidade, solidariedade e acolhida, somos mobilizados a viver atitudes mais humanizadoras, inspirando-nos no modo de ser e viver do Mestre da Galileia.

Na primeira parte do relato, João, o discípulo amado, ingenuamente revela, diante do Mestre, sua atitude preconceituosa ao proibir um homem de “expulsar demônios” em Seu nome. De acordo com esta visão míope, o critério já não é o bem que a pessoa faz, mas “porque não nos segue”. Não se preocupa com a saúde e a vida das pessoas, mas com o prestígio de grupo. Pretende monopolizar a ação salvadora de Jesus.

Todos sabemos que há um monstro que habita as profundezas de nosso ser, devorando-nos continuamente e expelindo seu veneno mortal: trata-se do preconceito.

Ele constitui o risco permanente em nossa vida, pois limita a realidade, estreita o coração, inibe o olhar e nos faz incapazes de acolher o bem e a verdade presentes no outro.

O mal que o preconceituoso faz a si mesmo e aos outros é enorme.

Marcado pela impaciência e desprovido do espírito de leveza, o preconceituoso é incapaz de relativizar os problemas, atrofia seu desenvolvimento criativo, aniquila seus sonhos e esfria seus relacionamentos.

Vive o tempo todo petrificado em suas velhas e deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos.

Seu autoritarismo o leva a julgar os outros o tempo todo, vendo inimigos e concorrentes por todos os lados e acaba numa extrema solidão.

Geralmente, os preconceituosos são dogmáticos e fervorosos, muitos deles tornam-se fundamentalistas, moralistas, legalistas, carregados de hostilidade e intolerância religiosa.

Ao tornarem absoluta uma verdade, os preconceituosos se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...

A inflexibilidade da alma preconceituosa está ligada ao orgulho; ela tem aquela postura de que tudo sabe e tudo controla, carecendo da humildade de “saber que não sabe”. Não tem senso de igualdade e semelhança, e muito menos de compaixão. Aliada à ignorância, não admite que possa mudar de opinião, pois aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona.

Vive enraizada nas tradições e nas leis, quase sempre antiquadas e ultrapassadas. Enfim, o preconceito impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontâneo e de viver mais intensamente.

Outro monstro que destrói os vínculos na comunidade cristã é o do “escândalo”. A denúncia de Jesus fala de escandalizar a “um destes pequenos que creem em mim”, ou seja, de colocar tropeços no caminho dos mais fracos para fazê-los cair. Marcos fala dos “pequenos”, que são os necessitados de todo tipo, homens e mulheres que não tem posição de destaque ou prestígio para serem reconhecidos, em um contexto social mais amplo, e em especial na Igreja.

O risco maior de um grupo humano, como o da comunidade cristã, é o escândalo (mal exemplo ou atitude que destrói os outros) e o desprezo, entendido como atitude de superioridade e de rejeição dos outros. Atualmente vivemos numa sociedade muito individualista, pois cada um tende a pensar que deve ocupar-se só de si mesmo, sem cuidar dos outros, como se cada um fosse autossuficiente. Tal atitude egóica acaba tendo repercussão também na comunidade cristã, onde cada um só se preocupa com seus ritualismos vazios, devoções estéreis, penitências auto-centradas..., sem nenhum compromisso com os mais necessitados. Tal vivência religiosa egóica acaba alimentando atitudes de intolerância, preconceito, julgamentos, suspeita com relação àqueles que são os prediletos de Deus. Somente um retorno à fonte do Evangelho e às atitudes oblativas de Jesus em favor dos últimos tornará possível a reconstrução de uma comunidade que deixa transparecer a verdadeira identidade cristã.

Esta é a eterna tentação das comunidades cristãs quando perdem a referência à pessoa de Jesus e caem num formalismo religioso, centrado no “endeusamento” de algumas pessoas que, com sua ostentação e com seu “poder de consciência”, manipulam, desprezam, alimentam medo e culpa, criam divisões..., desembocando nas comunidades “guetos”, reacionárias, petrificadas diante do novo e completamente alienadas do compromisso evangélico com os mais necessitados. O pior dos escândalos é daqueles que, deturpando suas funções religiosas, abusam sexualmente dos menores e incapacitados, revelam-se autoritários e manipuladores de consciência, impõem pesados fardos legalistas e moralistas sobre os mais humildes e simples... Diante de tal gravidade, uma solução também radical, indicada por Jesus:ser jogado ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço”.

Escandalizamos quando, com nossa vida, colocamos à prova a fé dos mais humildes; escandalizamos quando nossa atitude e conduta pode ser um perigo para a fé dos mais simples; escandalizamos quando nossa vida é causa de que muitos abandonem o caminho da Igreja; escandalizamos quando matamos a alegria da fé e de Jesus no coração dos simples; escandalizamos quando manipulamos a religião para alimentar culpa e medo de Deus, quando impomos sobre os ombros do mais vulneráveis pesados fardos do legalismo e do moralismo. O escândalo pode causar a morte.

O que a Igreja deve cortar para não ser escândalo? Jesus fala de mão, pé, olho..., em sentido radical, ou seja, para ser verdadeira seguidora do Mestre, ela precisa cortar na raiz e estar disposta a “arrancar” muitas coisas que parecem valiosas: o clericalismo, o poder opressor das consciências, o abuso sexual de menores, a suntuosidade, o rigorismo, a cultura da aparência e da ostentação, a riqueza escandalosa, a falta de humanidade, ritualismos extravagantes, a insensibilidade diante da miséria e violência...

A Igreja de Jesus deve ser boa mão, bom e bom olho, para ajudar os outros a viver, a caminhar e a ver. Mas ali onde a mão, olho e pé da Igreja se convertem em “motivo de escândalo” (de destruição dos pequenos) ela deve estar disposta a cortá-los, se não quer cair na “geena”, que é o fogo que destrói.

Esta “poda” eclesial” nos situa no centro do Evangelho de Marcos, que é evangelho que anima e estimula, mas também que adverte e corrige profeticamente os seguidores e o conjunto da Igreja, que deve inspirar-se em Jesus no uso de suas mãos, pés e olhos.

Falamos da Igreja que se “auto-mutila”, se esvazia e se torna “pequena” para acompanhar e ajudar os pequenos, fazendo-se evangelho vivo, abrindo um caminho de comunhão e ajuda mútua com os menores e pobres.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 9,38-48

Na oração:

Num mundo plurirreligioso e pluricultural as novas fronteiras estão em todas as partes (não mais geográficas); somos chamados a construir pontes entre os que vivem de um lado e outro da fronteira. Mais ainda, que cheguemos a ser pontes em um mundo fragmentado, cheio de brechas... que isolam as pessoas e os grupos sociais e religiosos; estabelecer pontes de diálogo e reconciliação que permitam criar uma nova forma de convivência respeitosa, justa, harmônica e construtiva.

- Você está aberto(a) à verdade, venha de onde vier, ou se deixa levar por pré-juizos, preconceitos e intolerâncias?

- O que é preciso ser “cortado e arrancado” de sua vida para abrir-se a uma atitude de acolhida e de serviço dos mais humildes e pequenos?


sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O poder atrofia a criança dentro de nós

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 25º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34)

 

Continuamos o percurso contemplativo, deixando-nos ensinar pelo Mestre Jesus. No evangelho deste domingo, Ele atravessa a Galileia, a caminho de Jerusalém; e faz isso de maneira reservada, sem dar publi-cidade. Ele deseja se dedicar inteiramente à instrução dos seus discípulos. É muito importante o que Ele quer gravar em seus corações: seu caminho não é um caminho de glória, de êxito, de poder. Pelo contrário: é o caminho da fidelidade à causa da vida, do compromisso em aliviar o sofrimento humano, da entrega radical em favor dos últimos. 

Jesus frustra os planos e as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço aos outros; estabelece como critério de honra o cuidado dos pequenos. Esta é a lógica do Reino: esvaziamento de toda pretensão de poder e vaidade, que envenenam as relações entre as pessoas, para poder construir a fraternidade sobre outros fundamentos: serviço solidário, atenção compassiva, cuidado amoroso.

Ao chegarem em casa, Jesus sentou-se; quer ensinar aos discípulos algo que eles nunca deverão esquecer. Desmascara a competição entre eles para saber quem era o “maior”. Chama os “Doze”, aqueles que estão mais intimamente associados à sua missão e os convida a que se aproximem, pois os vê muito distanciados d’Ele. Para seguir seus passos e identificar-se com Ele, é preciso aprender duas atitudes fundamentais.

Primeira atitude: “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”. O discípulo de Jesus deve renunciar toda pretensão de ambição, de ser importantede honras e vaidades. Em sua comunidade ninguém deve pretender estar acima dos outros. Pelo contrário, deve ocupar o último lugar, descer ao nível daqueles que não tem poder e nem ostentam título algum. E, a partir daí, ser como o próprio Jesus: “servidor de todos”.

segunda atitude é tão importante que Jesus ilustra com um gesto simbólico provocativo: coloca uma criança no meio dos Doze, no centro do grupo, para que, aqueles homens ambiciosos deixassem de se preo-cupar com honras e grandezas, e centrassem seus olhos nos pequenos, nos frágeis, nos mais necessitados de defesa e cuidado.

Deste modo, Jesus denuncia nossas tendências egóicas que estabelecem hierarquias de mando, divisão entre “superiores e inferiores”, vaidade religiosa. Para Ele, a atitude de serviço não é questão meramente ascética, mas uma proposta profética que quebra qualquer pretensão de divinizar estruturas, de justificar privilégios, de compactuar com os poderosos deste mundo. 

Jesus tem plena consciência de que nenhum poder é mediação de salvação; e o pior poder é o “religioso”, pois alimenta medo e culpa, cria dependência doentia e trava toda autonomia pessoal. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...

O poder “mata a criança” que todos carregam em sua essência, impedindo-a de se expandir.

A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é aquele que ocupa um cargo de importância, mas quem vive servindo e ajudando os outros. Os primeiros na Igreja não são os hierarcas, mas as pessoas mais simples que vivem ajudando àqueles que encontram em seu caminho.

 

poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia.

Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros... 

A palavra “poder” indica sempre uma relação de dependência, manifesta uma desigualdade. Aquele que exerce o poder está acima daquele que se submete a esse poder. Jamais, nem se insinua nos evangelhos, que Jesus se relacionasse com o ser humano a partir da superioridade de quem manda sobre o inferior que obedece. A relação de Jesus com os discípulos e com as pessoas se expressa sempre, nos evangelhos, mediante a experiência do “seguimento”, que nasce da “exemplaridade”, nunca da “submissão”, que é a resposta do fraco ao forte, do pequeno ao grande.

Jesus nunca teve “poder” e nunca transmitiu “poder” aos seus discípulos. Ele deu-lhes “autoridade”, o que é bem diferente. E o evangelho destaca que se trata de uma autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É uma autoridade terapêutica, para aliviar sofrimentos e fazer felizes as pessoas em suas relações com os demais e sua relação com Deus.

Quem tem poder, o centro está em si mesmo; quem tem “autoridade” o centro está fora, no outro. Significa despertar a autonomia, a autoria do outro; não alimenta dependência, mas ativa o melhor que há no outro.

Jesus, que foi tão tolerante com os discípulos em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”

Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer os mais fracos e necessitados.

O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.

Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...

Nesse contexto, o fato de Jesus propor as crianças como paradigma das relações da comunidade do reino, supõe uma mudança radical,eliminando hierarquias. Isso implica identificar-se com os mais desfavorecidos, de considerar dignos aqueles que não são contados, a “massa sobrante”; é preciso uma mudança de mentali-dade e compreender que, para os seguidores e seguidoras do Mestre, os primeiros e mais importantes lugares são para os últimos; e não é só por um gesto de compaixão, mas porque essa é a chave para abrir o sentido da conduta no seguimento de Jesus e para compreender ocoração do próprio Deus.

caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes...

Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como seusrepresentantes.

A estrutura da “nova comunidade” não é piramidal ou hierárquica, mas circular. O centro já está ocupado por uma “criança” nos braços de Jesus. Ao redor deles estamos todos, com serviços e ministérios diferentes.

Aqui não há lugar para alimentar “egos inflados”, prepotentes, autoritários...

A casa cristã é o lugar de benção, onde todos são acolhidos, começando pelas crianças, por serem as mais frágeis e necessitadas. Jesus funda a “comunidade da ternura”.

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 9,30-37

 

Na oração:  

A palavra-chave do evangelho deste domingo é “acolhida: ela expressa uma atitude de descentramento e sensibilidade diante dos mais vulneráveis; ela quebra toda tendência de imposição sobre os outros e revela que é anti-evangélico alimentar competição para saber quem é mais importante ou mais poderoso.

- Seu espaço familiar, sua comunidade, seu ambiente de trabalho... se revela como lugar de acolhida e de bênção ou ambiente que alimenta competição e ativa o apetite de poder e de vaidade?

 

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O seguimento de Jesus e a pretensão do nosso ‘ego’

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 24º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“No caminho perguntou aos discípulos: ‘quem dizem os homens que eu sou’”? (Mc 8,27) 

O Evangelho de Marcos é chamado de “Evangelho do Caminho”. O “caminho” é a verdadeira escola do Mestre da Galileia, pois Ele está aberto às surpresas da vida e não se refugia no interior das sinagogas e espaços sagrados; no caminho Jesus deixa transparecer a sua missão; o caminho revela também o verdadeiro sentido do seguimento.

É no caminho que Jesus faz duas perguntas que deixam transparecer dois círculos: um exterior e um interior. O que se vê de fora e o que se vê de dentro. O que se vê com os olhos e o que se contempla com o coração. As duas perguntas deixam clara uma distinção entre a visão que a multidão tinha de Jesus e a dos discípulos, depois de um tempo de convivência com Ele. Os discípulos são chamados a ter um olhar mais profundo, capaz de mergulhar no mistério de Jesus, um olhar sem falsidade e sem interesse próprio; eles não devem se contentar com o que ouvem dizer, mas são movidos a tomar uma posição, uma decisão.

As afirmações de Jesus no evangelho deste domingo têm dado margem a interpretações deturpadas. Ele é claro: apresenta-nos as consequências do seu seguimento; Ele não está falando da “cruz patíbulo”, imposta pelos homens, mas da “cruz fidelidade” a uma causa em favor da vida, ou seja, estar pronto e preparado diante da resistência e perseguição daqueles que não se abrem à ousada proposta do Evangelho.

Quem vive radicalmente o Evangelho, mais cedo ou mais tarde, vai ser rejeitado, perseguido... Tudo o que aconteceu com o Mestre, acontecerá também com os seus discípulos.

Jesus não veio para complicar a vida dos seus seguidores, nem impor novas leis, ritos, penitências... que só alimentam medo de Deus e culpa doentia. Afinal, Ele veio para que todos tivessem vida, e vida em plenitude. Na sua mensagem, Ele proclamou uma palavra vital e sábia. Não é, certamente, uma palavra que satisfaça nosso ego, alimentando a ignorância e a inconsciência na qual ele se move; também não é uma mensagem que atrofia a vida e a liberdade da pessoa. Pelo contrário.

O texto de Marcos fala de “perder a vida (o ego) pelo evangelho”. Como entender isso? Não se trata, evidentemente, de nenhum tipo de fanatismo que faz do evangelho uma bandeira de sofrimento ou um ídolo ao qual “sacrificar” a própria vida.

“Salvar a vida” ou viver em plenitude só é possível quando permanecemos em conexão com aquela identidade profunda, com o “eu original”. Isso requer, obviamente, deixar de nos identificar com o “ego” de uma maneira absoluta.

Vivemos, interiormente, o eterno conflito entre o “ego” e o nosso “eu verdadeiro”. No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus”“sereis como deuses” (Gn 3,5). É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado).

“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “ego”, mas a identificação com Jesus (“quem quiser me seguir...”). Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus. Se a pessoa não renuncia essa pretensão de “bastar-se a si mesma”, não poderá seguir Jesus Cristo.

Portanto, o convite é este: “negar o ego” para fazer emergir o “eu sou”, nossa originalidade e verdadeira identidade. No encontro com o “Eu sou” de Jesus reacende-se o nosso “eu sou”, aquilo que é mais nobre, elevado e sagrado no mais profundo de nós mesmos.

E quando se manifesta o nosso “eu original”?

Quando nos sentimos genuinamente movidos por sentimentos de compaixão para com as pessoas necessitadas, esse é o nosso verdadeiro eu que está se manifestando. Quando começamos a sentir uma grande gratidão pelos inúmeros dons que a vida nos oferece, podemos ter a certeza de que isso não provém do nosso ego. O ego é completamente incapaz de sentir gratidão. Sentir uma gratidão imensa por todos os dons e graças da nossa vida é algo que brota do fundo do nosso ser. Quando reconhecemos um momento de honestidade e sinceridade no nosso desejo de conhecer a verdade acerca de nós mesmos ou da realidade que nos cerca, esse é o nosso verdadeiro eu. Nos momentos em que agimos com uma coragem e valentia incomum e inexplicáveis, isso também brota de um impulso que provém das profundezas do nosso próprio ser. Se alguma vez experimentamos a alegria tranquila de deixarmos de lado nosso ego, fazendo alguma coisa pelos outros, sem recebermos qualquer recompensa ou agradecimento, e sem que ninguém o saiba, então entramos em contato com o nosso verdadeiro eu. E quando nos sentimos invadidos por uma onda de assombro e deslumbramento, quer dizer que estamos deixando o nosso verdadeiro eu prevalecer.

O que está em questão é precisamente “salvar a vida”, ou seja, viver em plenitude, com sentido e inspiração. Pois bem, isso só é possível quando descobrimos nossa verdadeira identidade e nos libertarmos das armadilhas do ego que nos confundem e nos mantém no sofrimento.

O evangelho deste domingo não reforça nenhum tipo de voluntarismo egóico, nem trata da exigência arbitrária de um Deus que exige sacrifícios e mortificações. É uma questão de sabedoria ou de compreensão. E é isso que expressam as palavras de Jesus que fecham o relato: “se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.

Uma consideração superficial destas palavras de Jesus deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que enfatiza a dor, a renúncia e a negação da própria vida e da própria identidade.

Mas Jesus não buscou a dor e nem negou a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para sua verdadeira identidade, para que assim ela possa assumir uma atitude acertada diante da vida.

O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E buscamos isso em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?

A verdade é que, nos ouvidos de muitas pessoas, a palavra “religião” soa como “negação”, “sofrimento”, “cruz”, “mortificação” ..., ou seja, como “negação da vida”. Diante deste grande equívoco, é preciso começar a reconhecer que tal visão não tem fundamento no Evangelho, mas em fatores alheios, de diferentes procedências, que chegaram a configurar o imaginário coletivo com matizes doloridos e angustiantes. Temas como o pecado, a culpa, o castigo, as “penas eternas” ..., rechearam os catecismos doutrinários, pregações moralistas e devoções estéreis, até os extremos difíceis de imaginar.

São muitos os cristãos que sofrem, feridos pela negatividade, pela rigidez, pela exigência; talvez humilhados pela culpabilidade, pelo medo, pelo perfeccionismo, pelo voluntarismo ou idealismo vazio, pelo excesso de cruzes inúteis, negações e sacrifícios impostos por uma educação religiosa repressora, restritiva e dominadora. Em suma, são muitos que estão feridos por uma religião tenebrosa, e acabam abandonando por pura necessidade de sobrevivência.

Infelizmente, como no tempo de Jesus, há uma religião que desumaniza em vez de potencializar todos os recursos mais humanos; uma religião que massacra em vez de contagiar vida; uma religião que atrofia em vez de expandir a pessoa. Muitas “autoridades religiosas” se transformam em implacáveis juízes, com a lei na mão, em vez de serem bons samaritanos. Fica cada vez mais patente dois estilos de religião: a que encarcera e a que liberta.

Qual delas determina nossa vida?

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 8,27-35

Na oração:

Orar é aproximar-me da verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.

Por isso a oração cristã é também descoberta do “eu”, da minha própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa experiência divina que “descubro-me a mim mesmo”. Começo, então a descobrir o meu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulho” no misterioso relacionamento com Deus e quando permito que o “mistério experimentado” se torne fonte de minha identidade. Mais ainda, saberei melhor “quem sou eu”, esquecendo-me de mim mesmo, aceitando perder-me, deixando que o Amor me liberte de meu pequeno e atrofiado “ego”.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Abrir-se à Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 23º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar” (Mc 7,33)

 

O relato do evangelho deste domingo é como se fosse um “ritual ou sacramento de iniciação à palavra”. Para compreender a parte anterior do evangelho de Marcos e para acompanhar Jesus no seu caminho posterior, é necessário abrir os ouvidos e a língua, aprendendo a escutar e a falar.

Para aquela cultura do tempo de Jesus o fato de uma pessoa ser surda, muda ou cega, não era simplesmente uma questão de saúde, mas um problema religioso. Essa carência física era sinal de que Deus a tinha abandonada. Se Deus a abandonara, a instituição religiosa estava obrigada a fazer o mesmo. Era, portanto, marginalizada pela religião; e isto era a maior desgraça que podia acontecer a uma pessoa.

Jesus, com sua atitude e seus gestos terapêuticos, revela que Deus está mais próximo dos marginalizados, daqueles que sofrem. Ao curar, Ele os arranca de sua marginalização religiosa, demonstrando que Deus não marginaliza ninguém e que a religião não atua em seu nome.

O evangelho de João começa dizendo que “no princípio era a Palavra”, e que a Palavra era Deus, para depois acrescentar: “... e a palavra se fez carne” (Jo 1,14). Pois bem, o evangelho de Marcos continua dizendo que Jesus “veio ao mundo” precisamente para que homens e mulheres pudessem viver sua verdadeira identidade, ou seja, na sua essência, ser palavra oferecida, partilhada, escutada... Em sentido mais profundo, nascemos da palavra, nela existimos, nos movemos e somos, como seres de linguagem.

Este é o maior de todos os milagres: que homens e mulheres aprendam a escutar e responder, sendo o que são, “palavra feito carne” no tempo. Assim nos mostra o relato da cura de um surdo-mudo na região da Decápole, a quem Jesus abre os ouvidos e desata a língua para que pudesse escutar a palavra, dizê-la e dizer-se, partilhando assim sua vida com os outros.

De Jesus foi dito que “passou pela vida fazendo o bem” (At 10,38). Defendeu sempre as pessoas, frente à tirania das autoridades religiosas, das normas e tradições, apostando por sua dignidade. No encontro com Ele, muitas pessoas se sentiram reconhecidas, pois Ele sabia olhar o coração de cada uma delas; elas também se sentiram libertadas das escravidões de todo tipo e impulsionadas a viver com mais intensidade, saindo de sua situação tão desumana.

Trouxeram-lhe um homem surdo (não é capaz de escutar a palavra), que falava com dificuldade...”  (tem a língua presa). É um enfermo de comunicação: não pode falar corretamente, nem se expressar com desenvoltura, não pode escutar a voz de Deus, nem se comunicar de verdade com os outros. No fundo, é um escravo de sua própria surdez e mudez: não consegue entender o que dizem, não pode se manifestar.

O enfermo é a expressão de uma humanidade que não tem acesso à palavra: as leis religiosas lhe impedem entender e falar, fazendo-o puro espectador em um sistema onde outros pensam e decidem em seu nome, mantendo-o fechado em si mesmo.

Aqueles que trouxeram o surdo-mudo até Jesus são anônimos; não sabemos quem são, se eram familiares ou amigos, nem sequem quantos formavam o grupo. O que podemos intuir é que estas pessoas buscaram o melhor modo de ajudar a quem tinha dificuldade e foram capazes de se organizar para isso. Não pediram algo para si mesmos, mas o bem para quem estava mais ferido em sua dignidade.

O surdo-mudo deixou-se ajudar e acompanhar pelos outros. Porque, às vezes, alguém está tão bloqueado que não pode, por si mesmo, sair da situação na qual se encontra. Se o surdo foi apresentado diante de Jesus é porque também ele se deixou apresentar.

Nesta expressão encontramos o valor da amizade, a força do grupo ou da comunidade. Todos precisamos uns dos outros! Quanto bem podemos fazer uns aos outros!

Marcos supõe que este enfermo, embora tivesse amigos que o levaram ao lugar onde estava Jesus, não tinha recebido ainda uma devida atenção pessoal. Pois bem, Jesus a oferece, pela primeira vez, respondendo ao desejo daqueles que o trouxeram: o acolhe, o toma consigo e lhe trata como irmão/amigo, iniciando uma terapia de proximidade e conversação simbólica, numa linha de humanidade básica (que possa ouvir, que possa falar!). Jesus não lhe ensina nenhuma doutrina e nem lhe complica a vida com leis e normas mais pesadas. Realiza numerosos gestos significativos: tira a pessoa do entorno no qual se mantinha surda e com dificuldades para falar, afastando-a um pouco do grupo; toca-lhe os ouvidos, a língua, os órgãos do corpo onde se manifesta o bloqueio; eleva seus olhos ao céu como expressão de oração, de sintonia permanente com seu Abba.

“Ephathá!” (abre-te), é a única palavra que Jesus pronuncia neste relato. Só pronuncia uma palavra e, surpreendentemente, não é “ouve”, “escuta” ou “fala” ... É “abre-te”.

Por meio de seus gestos e palavra (por sua vida inteira) Jesus pôs em marcha um processo definitivo de comunicação, semeando “a palavra”, isto é, fazendo com que os homens e as mulheres pudessem ouvir e falar. Jesus não impõe aos surdos-mudos um tipo de palavra (não os obriga a pensar e falar de uma maneira), mas faz algo muito mais profundo: oferece a eles uma possibilidade de comunicação, para que sejam eles mesmos os que falam, os que expressam em suas ideias e sentimentos.

“Ele tem feito bem a todas as coisas”: esta é a experiência que Jesus nos oferece. Ao encontrar-nos com Ele, sua força sanadora rompe nossas ataduras e bloqueios. Assim como o homem do evangelho, também nós experimentamos nossa língua se desatar e poderemos, assim, pronunciar nossa própria palavra. Uma palavra que se multiplica no encontro com os outros.

A escassez de escuta na comunicação humana atual é talvez causa e consequência desse excesso de palavras que padecemos. Causa, porque ao não sentirmos escutados, pensamos que falando mais talvez consigamos fazer chegar algo ao nosso interlocutor. Consequência, porque frente tal torrente de palavras optamos por não escutar, já que não somos capazes de assimilar tanta informação.

Precisamos abrir o nosso mundo interior para fazer chegar aí um pouco de luz. Isso significa olhar, reconhecer, nomear e acolher tudo o que se move no campo dos sentimentos e das emoções. Implica também abri-lo para reconhecer nossa sombra e abraçá-la. Porque só o encontro com tudo isso tornará possível viver de maneira integrada, unificada, harmoniosa, serena e criativa.

É preciso ter vivido este tempo interior gratuito para saber escutar. Um trabalho para toda a vida. É quando estamos preparados para saber escutar o outro.

Mas é preciso saber ativar a capacidade de escuta. É uma atitude sábia, ou seja, escutar com atenção, seguir as razões ou a argumentação do outro. Não confundir escutar com ouvir: ouvir vozes, ouvir movimento das cordas vocais, ouvir falar… Ouvir faz referência ao ato simples, desnudo, de perceber um som; escutar é o ato reflexo, consciente, atento, desse ouvir. Acontece com frequência que escutamos sem ouvir, do mesmo modo que também ouvimos sem escutar. Chegam até nós os sons do falar alheio, ouvimos seus ruídos, mas não suas palavras. As palavras só se abrem para a escuta. Saber escutar é saborear o que o outro diz; e isto pede, em primeiro lugar, ter aprendido a escutar-se a si mesmo.


Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 7,31-37

Na oração:

Em nosso contexto, há uma doentia “surdez” generalizada, alimentada pelas “redes sociais”; escuta-se atentamente os aparelhos eletrônicos, mas não as pessoas; escasseia-se uma atitude de escuta das carências e das palavras dos outros; atrofia-se a capacidade de escuta dos sofrimentos e dos sentimentos dos demais; distancia-se da escuta da Palavra de Deus. É por isso que, vivendo numa sociedade da comunicação, nos sentimos incomunicáveis; numa sociedade de ruídos, e vivemos todos sem nos escutar.

- Na cultura do ruído e do palavreado crônico como a nossa, o silêncio nos aterroriza, porque o confundimos com o mutismo. Ouvidos saturados de ruídos não podem perceber o som do Silêncio.

- O que está surdo e mudo em você? Como se manifesta?

- Você vive em atitude de abertura e sensibilidade diante daqueles que não tem voz nem vez?