Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 5º Domingo da Páscoa (2024).
“Permanecei em
mim e eu permanecerei em vós” (Jo 15,4)
No Evangelho de João encontramos expressões com
as quais estamos acostumados e que, infelizmente, escutamos ou lemos de modo
superficial. Na verdade, quando as lemos ou escutamos como palavras do
Ressuscitado vivo, do Senhor no meio de sua comunidade, é que nos sentimos
capacitados a acolhê-las como palavras de verdade e de vida. Estamos
vivendo o tempo pascal e o tema “vida” perpassa todo esse tempo
litúrgico.
O relato deste domingo é tirado dos
chamados “discursos de despedida” (cf. Jo 13, 31-16,33), palavras
que o Ressuscitado glorioso e vivo dirige à sua Igreja. Jesus afirma: “Eu sou a
videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Para um judeu piedoso, a videira
era uma planta familiar, que, junto com o trigo e a oliveira, marcava a terra
de Israel; é a planta da qual se extrai “o vinho que alegra o coração humano” (Sl 104, 15); é a planta cultivada
desde sempre na terra da Palestina, símbolo de uma vida fecunda que brota de um
chão árido e pedregoso, símbolo da vida abundante e alegre.
A imagem da videira também já tinha sido
assumida pelos profetas como imagem do povo de Israel, da comunidade do Senhor:
videira escolhida, arrancada do Egito e transplantada na terra prometida pelo
próprio Deus, cultivada com cuidado e amor pelo Senhor, que dela esperava
frutos. Deus é o vinhateiro que ama a sua vinha, mas fica frustrado com ela; Ele
é o vinhateiro que chora pela sua vinha, outrora exuberante, mas agora queimada
e desolada; Deus é o vinhateiro invocado em socorro da sua vinha devastada e
cortada.
Mas o que é radicalmente novidade com relação ao
AT é que Jesus se apresenta a si mesmo como a “Videira verdadeira”.
Ele é a Vinha que recapitula em si toda a história do povo de Deus, assumindo
seus fracassos, suas quedas e seus sofrimentos. Ele é, ao mesmo tempo, a
testemunha do amor fiel de Deus que, na sua misericórdia inesgotável, renova a
aliança com o seu povo.
Já não se trata somente de um povo
a quem Deus consola e assiste. Deus mesmo, em Jesus, é a “seiva”
que corre por esta comunidade-videira. Cada um, nesta comunidade, é como o
sarmento, ramo nascente, destinado a dar fruto; mas a planta da videira é
sempre uma, e uma só seiva a faz viver!
Toda a videira é um ser vivo: raiz,
cepa e ramos estão atravessados pela mesma vida; mas, para manter a
vida e produzir frutos, é preciso dos três elementos. O agricultor experiente
sabe que, se os ramos
não são podados, eles podem bloquear a transmissão da seiva e não dar fruto.
Por isso, é necessário que sejam regularmente podados. Sem poda não há
criatividade, nem fruto e nem futuro.
Quando
é podada, a videira é despojada de todos os ramos; só fica um
tronco áspero e escuro, sem uma única folha verde. Quem não sabe de podas dirá
que a videira está absolutamente morta, em pleno inverno. Só ficam presos ao
tronco uns centímetros de alguns ramos que deram fruto em outro tempo e que
agora parecem “cotocos” sem futuro
Na videira, não só são podados os
ramos que foram férteis; também são cortados aqueles que não dão fruto, aqueles
que crescem muito, chamam a atenção porque são brilhantes e ostentosos, exibem
protagonismo, ocupam espaço ao sol, absorvem a seira que sobe pelo tronco, mas
são estéreis.
Jesus nos diz na parábola que o Pai é o
agricultor, que realiza a poda para que a videira tenha mais vida; só
Ele pode transformar a destruição de uma poda em uma nova videira que dará
melhores frutos. Ele pode orientar para a vida um golpe dirigido para a morte.
Ele é o agricultor que ama sua vinha e que sempre trabalha no fundo do húmus da
realidade com criatividade infinita.
A parábola de Jesus é completamente
atual. A poda sempre será necessária em nossa vida. Todo o “novo” que
assumimos, com o tempo esvazia-se, porque os “ramos existenciais” trazem dentro
de si uma dose de ambiguidade e, aos poucos, vão acumulando “excessos” que
exigem um consumo muito grande de seiva; na realidade, em vez de produzir
frutos, se revelam infecundos e estéreis. Então, faz-se necessária uma poda
para eliminar os “pesos”.
De fato, levamos “cargas pesadas” em nosso
interior, e são justamente elas que dificultam nossa caminhada pela vida; é
preciso desfazer-nos de cargas incômodas para andar com maior desenvoltura e
alegria pela vida.
O medo de perder “algo” no futuro
atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos
em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...!
O apego às coisas, bens, lugares, títulos,
pessoas... impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o
impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
A fidelidade ao Deus da Vida fica
interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
Quando o agricultor faz uma poda na videira,
continuam saindo pelos cortes pequenas gotas de seiva como se ela
chorasse a perda, buscando desorientada o mesmo caminho de sempre que já não
existe mais.
O importante é acolher a poda, viver o luto,
despedir-se do que foi perdido, e não se trancar numa queixa obsessiva que gira
sobre si mesmo, paralisando o futuro. Quando não se faz o luto e não se assume
a perda, as feridas se prolongam no tempo e deixam uma esteira de dor que nunca
cicatriza.
Durante semanas, na vinha
podada não acontece nada por fora, mas por dentro, célula por célula,
vai sendo gestada a primavera com processos diminutos e invisíveis. A vida nova
se revela no escondimento da interioridade. O ritmo é lento e não responde às
impaciências do agricultor nem à hostilidade do clima que a cerca. Todo o
trabalho é interior e silencioso. São as ressonâncias bíblicas do “pequeno
resto de Israel”, que em tantas ocasiões foi o começo de movimentos
radicalmente novos como surpresas de Deus.
Quando chega a primavera, a casca
ressequida e endurecida da videira começa a abrir-se a partir de dentro pela
fortaleza da vida que cresceu em seu interior. O rigor do frio vai se afastando
de seu entorno. Aparecem os brotos, os ramos, as folhas e os cachos de uvas. É
tempo de surpresa, um despertar da consciência de uma vitalidade assombrosa em
sua pequenez e vulnerabilidade, que já é impossível de esconder e deter debaixo
da casca.
Uma palavra se repete várias vezes na parábola tão breve
deste domingo: “permanecer”. É como uma obsessão que tece todo o texto,
a chave que tudo explica. Nas podas, o importante é “permanecer” conectado ao
tronco de onde nos chega a vida, embora tudo parece morto.
Este relato evangélico nos revela uma relação
muito poderosa, sem a qual, continuamos desconectados, secos, como mortos. É
uma vinculação profunda com Jesus, fonte de vida e de ação. “Sem mim nada
podeis fazer”.
Nossas atitudes e especialmente a fecundidade das ações mais simples dependem
desta vinculação profunda com Jesus. Do contrário, aquilo que fazemos
“separados” ou por nossa conta, será caduco, nos faltará profundidade e
sentido. O
“nada” do ramo cortado e destinado ao fogo se opõe ao “muito fruto” duradouro
daquele que permanece no amor criador; a seiva nunca deixará de chegar, vindo
do próprio Jesus, ao lado das mesmas cicatrizes da poda.
Somos fecundos na humildade de Deus quando temos nossas raízes bem plantadas na realidade onde Ele está oculto e de onde tudo refaz; seu amor ao mundo e sua imaginação criativa abrem na história possibilidades sempre novas, atualizadas em cada circunstância. Nosso futuro só é possível se estiver enraizado na humildade de Deus, que é o mais profundo de seus mistérios. A humildade fecunda de Deus se oculta na longa história que vai desde a dor da poda, até o sabor do vinho da nova colheita que compartilhamos.
Texto bíblico: Evangelho segundo João 15,1-8
Na oração:
“Eu
canto por ser ramo, unido à Videira.
Sou
ramo que se alarga, ampliando a
minha vida. Eu deixo vida feita
folha verde e cachos de uvas. Sou ramo e
jorro minha vida feito vinho
saboroso. Sou ramo desde a origem.
Sou ramo ligado à Videira. Sou ramo alimentado pelo vigor incontido da
seiva. Alguém vive em mim no silêncio. Alguém que conhece o bem, a verdade, a liberdade.
Sua
Vida é minha vida. Seu viver é
meu viver. Para mim, a vida é
sua Vida. Sou ramo.
Sou
ramo e quero gritar bem alto. Sou ramo e vivo. Amo minha vida e não quero abafá-la. Amo minha
vida e não quero morrer sufocado, desconectado da Videira. Grito a ti Videira,
Fonte de minha vida!”