Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo da Quaresma (2024).
“...espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (Jo 2,15)
O simbólico ataque frontal ao Templo foi determinante para
Jesus ser considerado como um subversivo e um blasfemo pelo sistema religioso e
político de seu tempo. Os quatro evangelhos fazem referência a esse fato, o que
mostra como indubitável e decisivo.
Jesus foi
um profeta que viveu de tal maneira que quando começou a atuar e falar em
público, entrou em conflito com os responsáveis da religião e os mais estritos
observantes.
Jesus oferecia uma visão diferente
daquela visão oficial do Templo; Ele olhava o mundo a partir de baixo, um olhar
rente ao chão capaz de provocar uma reviravolta em tudo o que existe; Ele não
se submeteu aos ditames das hierarquias políticas e religiosas de seu tempo.
Jesus foi o profeta da liberdade.
Cumpriu perfeitamente a profecia de Isaías de proclamar a liberdade aos cativos
da lei religiosa, e a liberdade aos oprimidos pelo sistema. Pensou e atuou
completamente independente, à margem da mentalidade oficial imposta pela
religião estabelecida e pela política do império.
Ao “virar
as mesas e espalhar as moedas”, Jesus estava atacando diretamente o tributo ao
Templo e, com ele, ao sistema econômico religioso dominante. O Templo era, para
Jesus, uma empresa que explorava economicamente o povo. De fato, o culto
proporcionava enormes riquezas à cidade e aos comerciantes, sustentava a
nobreza sacerdotal, o clero e os empregados. A ação de Jesus atingiu, portanto,
um ponto nevrálgico: o sistema econômico e ideológico que o Templo representava
em Israel.
O Templo era “casa do mercado”, e
ali o “deus” era o dinheiro. Ao chamar a Deus “meu Pai”, Jesus não o identifica
com o sistema religioso do Templo. A relação com Deus não é “religiosa”, mas
familiar, está no âmbito da casa familiar. A relação se dessacraliza e se
familiariza. Na “casa do Pai” já não pode haver comércio nem exploração, sendo
casa-família que acolhe a quem necessite amor, intimidade, confiança, afeto.
Jesus derrubou as mesas dos
cambistas e jogou as moedas ao chão, para dizer que a vida não se faz de
moedas, mas de intercambio direto de vida. Jesus está supondo aqui que pode
haver um mundo sem bancos, um mundo de encontros pessoais... Um mundo onde o valor
supremo é o corpo e a palavra...
Jesus, na
sua vida pública, nos revelou que Deus não é propriedade de nenhuma
religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque
Ele revela seu rosto naqueles que vivem no amor mútuo e na entrega da própria
vida. Ao mesmo tempo, Jesus denunciou o “deus” manipulado pelos
representantes religiosos e que justificavam os seus poderes sobre as
consciências das pessoas.
A
espiritualidade de Jesus planta suas raízes fora do Templo, em um território “profano”;
é, pois, uma espiritualidade laica. Jesus de Nazaré se retira ao deserto para
orar e a outros lugares não oficiais, e não é membro da comunidade dos
essênios. Sente profundamente sua religação com o Pai, dialoga com Ele, se
alimenta interiormente dessa relação íntima, mas retorna ao mundo, à história
na qual se encarnou.
Os
fariseus e sacerdotes, por sua vez, queriam um Deus e um céu que não se
contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de
pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o
sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos
impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos,
cegos e coxos...
O Templo, como não pode ser
o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.
O lugar da Presença que alimentava
as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser
gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus.
Tal
denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição
sacerdotal se sustentava.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus
e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação
sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua
consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em
Deus.
O conflito de Jesus foi o
conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder
religioso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento
dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que
legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo,
o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os
dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição
social.
Jesus desmontou o “seu deus” e
atirou por terra “seus podres poderes”. Ainda hoje, de acordo com o Deus
em quem
se crê, justifica-se o poder daqueles que socialmente aparecem como seus
representantes.
De fato,
o “poder religioso” é o mais nefasto e desumanizador.
Aquele “dia
de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus
transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E
essa foi a “sua hora”: desmascarar
a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso exercia sobre o
povo oprimido.
Quando os
chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder
estabelecido, Ele respon-de: “Destruí este Templo e em três dias o
reedificarei”. E
o evangelista acrescenta: “Ele se referia à
própria
pessoa”.
O lugar do verdadeiro culto é a
Pessoa mesma de Jesus; culto que se expressa na identificação e no seguimento
d’Aquele que se revelou radicalmente livre perante todas as instituições
religiosas.
O templo e a lei
devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este
não pode ser objeto de nenhuma manipulação.
Jesus diz que o autêntico templo
de Deus é cada pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o
ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei
e o Templo são meios para facilitar a humanização; e a vida humana está
revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os
costumes antigos.
Em outro relato (Jo 4, 23) Jesus afirmara que o Pai não é
adorado em nenhum templo, mas em “espírito
e em
verdade”. Ali onde há “espírito”, ali onde há “verdade”,
ali está Deus. Este mundo não precisa de templos, mas “espírito e verdade”. O
ruído das ruas é também “eco de Deus” como o silêncio dos mosteiros. Pretender
expulsar Deus de nossa realidade é pretender o impossível. São nossos olhos que
estão cegos e que não consegue ver a Deus presente nela.
A grande tragédia é que aqueles que
se consideram pessoas de fé tampouco O veem, ou melhor, não querem ver a
presença de Deus em tantos lugares “profanos”. Aqueles que se consideram
“religiosos” parece que só querem ver a Deus em determinados espaços, em seus
templos e em seus ritualismos.
Mas Deus se revela presente em
tantas pessoas pobres, necessitadas, nas realidades profanas nas quais há amor,
embora talvez não haja ritos ou manifestações piedosas. Muitas vezes, os ritos
religiosos não modificam nossas condutas, mas, o efeito que produzem é tranquilizar
nossas consciências.
Chega-se ao extremo de harmonizar tanta fidelidade religiosa com tanta infidelidade ética ou simplesmente com tanta desumanização.
Texto bíblico: Evangelho segundo João 2,13-25
Na
oração:
Há um tipo de
“templo” que está caindo também hoje. Que faremos? Chorar sua queda?
Contemplá-lo indiferentes? Ajudar a derrubá-lo? Se não começamos a destruir
nossos “templos sagrados” não faremos o caminho do Reino.
A ação profética de
Jesus nos obriga a revisar nossa visão de “templo”. Todo ser humano é “templo
de Deus”. O tema da CF deste ano – “Fraternidade
e amizade social” - deve despertar em nós uma nova sensibilidade para
alargar nosso círculo de amizade e nos aproximar daqueles que são “os amigos do
Rei Eterno”, ou seja, os pobres e excluídos.
- Você consegue
discernir a presença de Deus nas realidades “mundanas”: na vida
concreta, no ambiente familiar e de trabalho, no protesto dos excluídos, na
sensibilidade ecológica de muitos, nas buscas sinceras de muitas pessoas, nas
diferentes expressões de amor daqueles que são considerados “ateus” ...?
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