Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 20º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Eu vim para lançar fogo sobre
a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49)
À primeira vista, o evangelho deste domingo pode provocar
um certo mal-estar e nos deixar com um sabor amargo; dá a sensação de que Jesus
veio para trazer fogo (um incêndio provocado) e divisão. Isto seria incoerente
com seu modo de viver e sua mensagem.
Em primeiro lugar, é preciso nos conectar com o
evangelho do domingo anterior onde Jesus afirmava que “foi do agrado do Pai nos confiar
o Reino”.
Se compreendemos bem tal afirmação, que implicações e exigências têm para nós,
seus(suas) seguidores(as)?
Fazer caminho com Jesus não é para as pessoas
“frias” ou “mornas” em seu modo de viver. Seguimento implica calor humano,
paixão, emoção...;
seguir é ser fogo, reavivar o fogo interior, iluminar, dar calor...
Jesus não veio provocar um incêndio destruidor. Ele
nos fala da imagem do fogo como elemento que limpa e purifica, usado tanto
pelos camponeses (“limpará
completamente sua eira; recolherá seu trigo no celeiro,
mas queimará a palha em fogo inextinguível” – Mt 3,12), como por aquele que busca purificar o ouro, “que é provado no fogo” (1 Pd 1,7). Em qualquer caso, a imagem do fogo
era muito eloquente para os primeiros cristãos, também provados no fogo da
perseguição, que deixava a descoberto a pureza e solidez de sua fé.
João Batista também fala de Jesus como aquele que “batizará com Espírito Santo e
fogo” (Mt 3,11). E esta promessa se
cumpre em Pentecostes: “Apareceram
línguas como de fogo... Todos ficaram cheios do Espírito
Santo” (At 2,3). Também os discípulos
de Emaús sentiram arder seus corações quando escutavam as palavras do
Ressuscitado, que caminhava junto deles.
Santa Teresa de Jesus entendeu isso bem quando fala da
“alma” como uma mariposa que se aproxima do Fogo, até ficar transformada, ela
mesma, em fogo.
A imagem do “fogo” nos desafia a nos
aproximar da pessoa de Jesus e viver o seguimento de maneira mais ardente e
apaixonada. Pois seguir Jesus não é questão de razão, mas de afeto, de
atração, de sedução...
O fogo que ardia no interior de Jesus era a
paixão pelo Reinado do Pai e a compaixão pelos que sofriam. Jamais poderá ser
des-velado esse amor insondável que o animava e o fazia arder em seu
compromisso com a vida. O mistério de sua vida nunca poderá ficar contido em
fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios teólogos. Jesus atraia e queimava,
perturbava e purificava. Ninguém podia segui-lo com o coração apagado ou com
uma piedade estéril.
Sua palavra, sua liberdade, seu estilo de vida... fez
arder os corações de todos aqueles que dele se aproximaram: revelou sua
presença amistosa junto aos mais excluídos, despertou a esperança e a confiança
nos pecadores mais desprezados, lutou contra tudo aquilo que violentava o ser
humano, combateu os formalismos religiosos, os rigorismos desumanos e as
interpretações estreitas da lei. Nada e nem ninguém podia bloquear sua
liberdade e impedi-lo de fazer o bem.
Nunca poderemos segui-lo vivendo na rotina das
práticas religiosas ou no convencionalismo do “politicamente correto”. Nenhuma
religião nos protegerá de seu olhar provocante. Nenhuma doutrina nos livrará de
seu desafio. Jesus está nos chamando a viver na verdade e amar sem reservas.
Isso queima!
A maneira livre de Jesus viver, junto com a
fidelidade à missão confiada pelo Pai, fez com que sua vida se tornasse
questionadora, e inclusive provocativa, para aqueles que se encontravam
instalados em posições de poder e que não estavam dispostos a modificar. Por
este motivo, a atitude e o comportamento de Jesus sempre foi fonte de tensão,
conflito ou divisão. E assim deve ser entendida toda sua vida.
Jesus, com o seu modo original de ser e viver,
acendia os conflitos, não os apagava. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas
tensões, enfrentamentos e divisões. Na realidade, Ele introduziu o conflito no
próprio coração do ser humano. E isso comprometia inclusive a vida e a unidade
das famílias. Até ali chegou a radicalidade da mensagem de Jesus, pois Ele
mesmo foi incompreendido pelos seus próprios familiares, foi desprezado, traído
e crucificado pelo seu povo.
Há um traço na personalidade de Jesus que os
Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Sua transgressão
decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade
e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do
lado das vítimas.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão
que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes
com o conteúdo do seu Evangelho.
Jesus não buscou o conflito (já que trazia uma mensagem de amor e fraternidade),
mas conheceu uma das experiências conflitivas mais dramáticas da história
humana.
Falar em conflito
na missão de Jesus é o mesmo que falar da sua fidelidade.
O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão
conflitiva da fidelidade de Jesus é
o resultado do confronto entre sua missão
(que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
A conflituosidade na vida de Jesus
proveio do choque entre as exigências do Amor
e a realidade injusta e pecadora.
Jesus não cria conflitos; Ele os
constata ao dar testemunho das exigências do Amor.
Evidentemente, as palavras e a vida de Jesus nos
mostram que Ele foi portador de paz, mas não uma paz sem conflito.
Muitas vezes, Ele nos recorda que trabalhar pelo Reino é um processo
transformador que exige passar pela porta estreita, deixar-nos refazer até
nascer de novo; neste caso, a paz não é comodidade, não é deixar as coisas
como estão, mas viver um processo de transformação profunda, que costuma
incluir despojamento e sofrimento.
O conflito também perpassa nossa vida
pessoal, familiar e comunitária; não é acidente de percurso, é permanente: conflitos
no interior da Igreja, no interior das comunidades; conflitos de origem social,
cultural e político; conflitos gerados pela missão entre os pobres e pela
defesa de seus direitos; conflitos de consciência, de lealdade; conflitos que
se originam da missão profética da Igreja...
Mas, o que move a pessoa sábia não é o conflito
por si mesmo, e sim o “fogo” interior que a habita. Um fogo que a torna
firme e flexível ao mesmo tempo, respeitosa e apaixonada, amorosa e sagaz.
Esse “fogo” não é outra coisa que a expressão da Vida
em nós. Se não lhe prestamos atenção e vivemos à margem dele, fica como
apagado e morto. Nossa existência permanecerá marcada pela resignação e pelo
conformismo. Quando, pelo contrário, mantemos a conexão consciente com a Vida
que somos, o fogo se desperta até consumir-nos por completo. A partir daí, já
não vive o eu, mas a Vida mesma em nós.
Texto bíblico: Lc. 12,49-53
Na oração:
No
contexto atual, a vivência cristã parece esvaziar-se, mas o fogo trazido por
Jesus ao mundo continua ardendo debaixo das cinzas. Não podemos deixar que se
apague. Sem fogo no coração não é possível segui-lo.
Assumir a causa de Jesus gera conflitos; mas o conflito é um “ensaio da esperança”,
uma certeza de que o Espírito renova todas as coisas sobre a face da terra. O conflito é certeza da “novidade” que vem; por isso exige um discernimento permanente.
- Como crescer e amadurecer no conflito? Como viver o Evangelho no
conflito? Como ser fiel à missão em meio aos conflitos?
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