Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 22º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (Lc 14,13)
Jesus é um profundo conhecedor da interioridade
humana. Sabe que ali dois dinamismos estão em contínuo conflito: de um lado, o ego
farisaico, que aproveita todas as ocasiões para brilhar diante dos outros
(cultura da aparência), ser o centro, chamar a atenção sobre si...; do outro, o
eu profundo, sábio que, na sua liberdade e espontaneidade, deixa
transparecer sua luz no encontro com o diferente.
As imagens e as palavras de Jesus
no evangelho deste domingo são tremendas. A motivação daqueles que buscam ocupar
os “primeiros lugares” é expressão de uma interioridade vazia e estéril; ela é
reveladora de uma das necessidades características do ego, que busca “aparecer”
diante dos outros, como um modo de auto-afirmar-se, de se sentir superior aos
outros, humilhando-os e desprezando-os.
Quando uma pessoa é escrava de seu
próprio ego, não lhe importa que o outro desapareça ou se sinta marginalizado e
privado de seus direitos. Vive tão a fundo sua “auto-idolatria” que até lhe
parece normal continuar agindo assim.
A pessoa sábia, no entanto, compreende que
tudo o que os outros pensam ou digam a respeito dela não lhe acrescenta nem lhe
tira nada de seu valor. Ela não se move a partir da necessidade de agradar ou
de “ficar bem” diante dos outros. Vive, simplesmente, na coerência com o que é
mais verdadeiro em seu interior, onde o ego não tem predomínio. Da mesma
maneira que não busca reconhecimentos nem bajulações, tampouco lhe interessa
perseguir os primeiros lugares. Vive com liberdade interior, a partir de sua
própria consciência de plenitude. Flui em cada momento com o que é em sua
essência; fluidez que brota da compreensão de si mesma, aquela que lhe faz
consciente de sua “irmandade” com todos os humanos e todos os seres.
Portanto, o sábio não atende aos
necessitados – “pobres, aleijados, coxos e cegos” – para receber uma
“retribuição” futura, senão porque sabe que são de sua mesma “família”. O
comportamento dele – como foi do próprio Jesus – se caracteriza pela
gratuidade. Não busca alimentar o interesse egóico, porque não se deixa
determinar pela carência. Sua ação é fim em si mesma, porque nasce de uma
consciência de plenitude que se transborda.
O evangelho deste domingo nos convida a estar com
Jesus numa refeição em casa de um dos chefes dos fariseus; Ele era consciente
de que muitos desse grupo religioso estavam contrariados com sua forma de
proceder e vigiavam seu modo de falar e agir. Por isso, ali, nessa refeição,
Jesus não se sentia à vontade, pois faltava a presença de seus amigos
prediletos: os pobres, aleijados, coxos, cegos...
A conduta dos convidados e do chefe
fariseu são, para Jesus, uma ocasião privilegiada para propor os valores do
Reino. Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas
acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra
não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e
hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual
todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos
se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
O relato deste dia não só recorda o
modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para
que seja comunidade inclusiva e aberta, na qual se respeite as diferenças, se
construa espaços de igualdade, onde se proclame um Deus gratuito e cheio de
amor e perdão. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá
primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos
perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro,
alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria,
tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo
em nós, ou alguém fora de nós.
Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa “cristificamos” e
“sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos
fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados
de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa
e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar
para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de
reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da
memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres
diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o
“dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos
o mesmo sonho, a mesma missão...Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida
do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Podemos ler o evangelho deste domingo também em
chave de interioridade: no nosso eu mais profundo há uma mesa pronta
para a refeição; geralmente é o “fariseu” que nos habita o controlador desta
mesa; é o nosso ego inflado, perfeccionista, legalista, dominador que não
admite a presença de nossos pobres, aleijados, coxos, cegos, enfim, todas as
dimensões de nossa vida que foram excluídas, reprimidas e marginalizadas. O
evangelho nos revela que em nossa interioridade há muitas vivências,
experiências, feridas, fragilidades, fracassos, crises..., que não foram
acolhidas, nem integradas, e que clamam por um lugar à mesa do coração; “multidões”
nos habitam e querem compartilhar a mesa da vida.
O nosso fariseu interior também
convida Jesus para participar da sua ceia; e Jesus é aquele que acolhe o
convite, mas não se sente bem à mesa do fariseu pois nota a falta dos seus
amigos pobres. Ele tem liberdade de transitar pelo nosso interior e de acolher
tudo o que foi reprimido e excluído. São justamente nossas feridas as portas e
janelas abertas por onde entra a mensagem inovadora de Jesus. O “fariseu” já
está formatado, petrificado, refratário à proposta de vida apresentada
por Jesus.
Também a gratuidade só pode ser vivida quando a
identificação com o nosso ego cai. Então, emerge uma nova consciência que se
revela no acolhimento de nós mesmos, no deslocar-nos entre os “últimos”, no
sentir-nos em comunhão com aquelas dimensões da vida que são excluídas e que
não tem nada a retribuir a não ser sua própria fragilidade. Mas, sabemos pela
revelação bíblica, que Deus tem mais facilidade de “entrar” em nossas vidas
pelas fendas das feridas, dos fracassos, das derrotas...
“Os pobres, os
aleijados, os coxos, os cegos” sou
eu mesmo, sou o outro eu que se
des-vela no encontro com tantos “eus”
diferentes. Aqui descubro a bem-aventurança como minha verdadeira identidade,
ou seja, aquela na qual tudo está interligado, como numa imensa rede, onde nada
é descartado.
Justamente os aspectos pobres e
aleijados, os aspectos cegos e coxos podem me levar ao caminho da completude.
Tudo, e principalmente aquilo que eu considero feio em mim mesmo, deve ser
incluído e acolhido na completude com Deus. Posso tornar-me completo em Deus
apenas se eu lhe oferecer minhas fraquezas, feridas e fracassos... A “descida”
à minha mesa interior vai, aos poucos, despertando uma sensibilidade para
também “descer” ao mundo do outro; o
encontro com minha própria humanidade ativa um deslocamento em direção à
humanidade do outro.
Aquele(a) que “desce” às margens de
sua interioridade, também se aproxima da terra privilegiada do encontro com
Deus, que se manifestou em Jesus de Nazaré, o amigo dos pobres e pecadores.
Textos bíblicos: Lc 14,1.7-14
Na oração:
É
no mais íntimo que se reza ao Senhor.
É no mais profundo da interioridade
que se escuta o Senhor.
-
Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade
interior, onde uma multidão de “pobres,
coxos, paralíticos, cegos”
deseja ser iluminada pela vida d’Aquele que “armou
sua tenda entre nós”.
-
Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e
valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os
rastros da Graça. Viva a gratuidade na mesa da vida!