Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho festa da Ascensão do Senhor (2022 - Ano C).
Jesus levou-os
para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os” (Lc 24,50)
Segundo o
relato de Lucas, na Ascenção, Jesus “desaparece” em Deus; Ele não
se afasta da humanidade, mas continua presente de uma outra maneira: junto com
o Pai e o Espírito faz sua “morada” no interior de cada pessoa.
Por isso, Jesus
não deixa uma estrutura religiosa organizada (com sua hierarquia, seus ritos, leis,
doutrinas...); Ele deixa na terra “testemunhas”, ou seja, aqueles(as) que
comunicam a sua experiência de um Deus de bondade e contagiam com seu estilo de
vida centrado no modo de agir e viver do próprio Jesus. Serão testemunhas
cristificadas, trabalhando por um mundo mais justo e humano.
Mas Jesus conhece bem os seus
discípulos; sabe que eles são frágeis e medrosos. Onde encontrarão a audácia
para serem testemunhas de alguém que foi crucificado pelo representante do
Império e pelos dirigentes do Templo? Jesus tranquiliza-os: “Eu enviarei a vós aquele que Pai prometeu”. Não lhes vai faltar a “força do
alto”. O Espírito de Deus os defenderá.
A “ausência
física” de Jesus revelar-se-á, então, como oportunidade para fazer crescer a maturidade
de seus seguidores. Ele lhes deixa o dom de seu Espírito que promoverá o
crescimento responsável e adulto dos seus. É inspirador recordar isso nesse
momento em que parece crescer entre nós o medo à criatividade, a tentação do
imobilismo, a petrificação no ritualismo e na doutrina, ou a saudade de um
cristianismo pensado para outros tempos e outra cultura.
A festa da Ascenção do Senhor
nos recorda que, terminada a presença história de Jesus, vivemos “o tempo do
Espírito”, tempo de criatividade e de crescimento responsável no seguimento de
Jesus. O Espírito não nos oferece “receitas eternas”. Ele nos dá luz e alento
para ir buscando caminhos sempre novos e alternativos para atualizar hoje o
modo de ser e agir de Jesus. Assim Ele nos conduz para a verdade completa d’Aquele
que sempre se revelou verdadeiro.
Para
expressar graficamente o último desejo de Jesus, o evangelista Lucas descreve a
sua partida deste mundo de forma surpreendente: Jesus volta ao Pai levantando
as suas mãos e abençoando os seus discípulos. É o seu último
gesto. Jesus entra no mistério insondável de Deus e sobre o mundo faz descer a
sua bênção.
Seus
seguidores começam sua peregrinação pelo mundo protegidos por aquela benção com
a qual Jesus curava os enfermos, perdoava os pecadores, abençoava e acariciava
as crianças...
A Bênção atravessa toda a
Bíblia, e quer atravessar também nossas vidas. Ela brota do olhar primeiro e amoroso
de Deus que, admirado, viu que toda Criação era boa e preciosa.
Também nossa missão, confiada pelo
Ressuscitado, consiste em recuperar este olhar, esta benção original, sobre nós
e sobre a terra; uma bênção que desperta admiração e assombro ao perceber a
bondade e beleza no interior daqueles que não são considerados bons e dignos de
beleza.
A palavra “bênção”
tem um sentido amplo e direto; procede do termo latino “benedictio”
e significa “dizer bem”. Mas, determinados pelo nosso contexto
social e político que preza pelo ódio, preconceito, maledicência, “fake
news”..., a sensação que temos é que há uma curiosidade viral, uma excitação,
um prazer mórbido em “dizer mal”, destruir reputações, emitir juízos
moralistas, ferir e excluir o outro que pensa, sente e ama de maneira
diferente. Há uma “maledictio” (“mal-dizer”) que paira em todos
os meios de comunicação e redes sociais, envenenando relações, rompendo
vínculos, criando divisões. E tudo isso emerge da interioridade petrificada das
pessoas, alimentando um fúnebre processo de desumanização. O trágico é que
essas manifestações de maldição são expressas por quem se confessa seguidor(a)
d’Aquele que sempre foi presença visível da Verdade e fonte de perene Benção.
Quanta incoerência no seguimento de Jesus Cristo!
“Não há pior
patologia que essa dissipação da alma, esse olhar cheio de pré-juizos que nos
torna pequenos e amargos, esse juízo que se deixa escravizar pelo defeito e
pelo peso da imperfeição e depois não nos deixa sair até que ignoramos a
liberdade. Não há exercício mais esterilizante que essa espécie de ressentimento
expresso como anátema em relação com a vida, esse totalitarismo da queixa que,
sem nos dar conta, nos asfixia, essa incapacidade de romper com a engrenagem da
maldição sobre todos e sobre tudo, da qual nem nós mesmos escapamos”
(Cardeal Tolentino).
Somos herdeiros(as) de uma benção,
herdeiros(as) da doação e da esperança de tantos homens e mulheres que, ao
longo da história, aliviaram sofrimento, recobraram dignidades e ajudaram a
viver.
Agora, somos nós a geração
portadora dessa benção. Presente, passado e futuro.
Como seguidores(as), esquecemo-nos que somos portadores(as)
da bênção de Jesus. A nossa primeira tarefa é ser testemunha da Bondade
de Deus, manter viva a esperança, não nos rendermos diante do “maledictio”.
Na Igreja
de Jesus, temos esquecido que a primeira coisa a se fazer é promover uma
“pastoral da bênção”. Temos de nos sentir testemunhas e profetas desse Jesus
que passou a sua vida semeando gestos e palavras de bênção, de bondade e de
misericórdia. Assim, despertou nas pessoas da Galileia a esperança no Deus
Salvador, abriu um horizonte de sentido. Jesus era uma bênção visível e as
pessoas reconheciam isso.
Somos chamados a ser presença de
“bênção”. Que todos aqueles que vivem situações de desamparo, de miséria, de desamor,
de indefesa, de maldição... possam sentir em nós o prolongamento da Benção do
Ressuscitado; possam sentir-se bem acolhidos, bem nomeados, bem olhados, bem-amados.
“Dizer bem”, “bendizer”,
“abençoar”, é
nossa vocação primordial, porque só isso desperta a consciência de que cada um
de nós é portador(a) autorizado(a) de uma indestrutível benção, e esse é o modo
de fazer justiça ao maravilhoso milagre que é estar vivos. “Dizer bem” é
conectar-nos com aquela verdade mais profunda, que é o puro vínculo na ordem do
ser. Sem essa ancoragem compassiva na raiz do nosso ser e no nosso modo
cristificado de viver, não chegaremos a compreender verdadeiramente o enorme e
misterioso pulsar da própria existência.
Cada um de nós depende – porque a vida é dom e confirmação
reiterada do dom – daquilo que a benção desencadeia. Somos um elo na longa
corrente de bênçãos; são inúmeras as pessoas que deixaram impregnadas em nosso
coração a marca da bênção oblativa, aberta e desafiadora. Crescemos e
amadurecemos sob o impulso da “benedictio” daqueles(as) que conviveram ou
convivem conosco.
E, por isso, é tão importante buscar a benção, colocar-nos
de seu lado luminoso, ativá-la e exercitá-la ao nosso redor. O tempo se ilumina
quando nos deslocamos da sombra da “maledictio” e nos re-situamos na órbita da “benedictio”.
Assim se expressa a maravilhosa e
antiga bênção irlandesa: “Que o
caminho seja brando a teus pés,/
que o vento sopre leve em teus ombros./
Que o sol brilhe em teu rosto sem ferir-te,/ e as chuvas caiam serenas em teus
campos./ E até que eu de novo te veja,/ Deus te guarde cada dia na palma de Sua
mão”.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração:
Todo(a) seguidor(a)
de Jesus é “canal” e transmissão de Sua bênção que salva, eleva, exalta
a dignidade de cada pessoa.
- Sua presença
cotidiana é reveladora de “benedictio” ou “maledictio”, de elogio ou de maledicência,
de vibração diante da nobreza do outro ou de queixa amarga?...