Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma (2022).
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
O primeiro domingo da Quaresma sempre
apresenta o relato das tentações de Jesus no deserto, que
ajuda a desvelar o sentido de sua missão, seu caminho, seu destino. É relevante
o fato de que se vincule a ida de Jesus ao deserto após o batismo, sendo
conduzido pelo Espírito.
O deslocamento de Jesus ao deserto está em
profunda sintonia com a experiência vivida pelo povo judeu.
Foi no deserto que Israel aprendeu a descobrir e a confiar em Deus. Longe
da segurança do Egito, emergiu o que havia no fundo do seu coração. Os profetas
cantaram o tempo do deserto como
tempo das obras maravilhosas de
Deus. Foi no deserto que o povo de
Israel sentiu profundamente sua pequenez e total dependência de Deus.
Não existiam caminhos prontos. Era preciso discutir, planejar, rezar, lutar e
sonhar para fortalecer a caminhada. No fundo, o Êxodo foi um profundo tempo de discernimento coletivo, que
desembocou numa radical opção pela liberdade, porque um povo só é livre
quando pode decidir o rumo de seu caminhar:
Deserto: lugar da Aliança, escola da intimidade com
o Senhor; expressão que, mais do que um determinado lugar, indica uma experiência forte de Deus.
Jesus, como todos os profetas, antes de assumir sua
missão, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Frequentemente Ele recorria a esta experiência em meio à sua vida ativa:
afastava-se para lugares solitários, confrontava
a sua missão com a Vontade do Pai.
Todos os
personagens bíblicos, todos os(as) santos(as) passaram pela experiência de deserto: peregrinação interior,
confronto com a própria vida, comunhão com o Senhor, descoberta da própria
missão...
“Eu o(a) levarei ao deserto e
falar-lhe-ei ao coração” (Os. 2,16).
Segundo os evangelhos, as tentações experimentadas por Jesus no deserto não são
propriamente de ordem moral. Não se trata de uma eleição entre o bem e o mal.
São tentações que apresentam maneiras falsas de entender e viver sua missão. O
tempo do deserto foi, para Jesus, um tempo de discernimento sobre os melhores “meios” para viver seu messianismo. As tentações não
diziam respeito ao “ser Messias” de Jesus; isto estava claro e fora confirmado
pela experiência do seu batismo: “Tu és o meu filho amado”.
As tentações de Jesus aconteceram no campo das
mediações: entre pensar em seu próprio interesse ou deixar-se
conduzir pela vontade do Pai; entre impor seu poder como Messias ou colocar-se
a serviço daqueles que mais precisam; entre buscar a própria glória e prestígio
ou manifestar a compaixão de Deus para com aqueles que sofrem; entre evitar
riscos para fugir da perseguição ou entregar-se fielmente à sua missão,
confiando somente no Pai.
De fato, os meios apresentados
pelo “tentador”, humanamente falando, são os meios mais eficazes que ninguém
poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio
indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para
culminar, todo o mundo a seus pés.
Quem resiste a um homem com tais meios?
Todos seriam atraídos porque, em
definitiva, teria entre suas mãos o poder total e o domínio absoluto.
Eis aqui a intuição e a genial
proposta do tentador: salvar e libertar toda a humanidade, mas mediante o poder,
o prestígio e a dominação. O tentador não pretende que Jesus se
afaste de seu fim, senão que procure atingir esse fim, usando os meios
que são exatamente o oposto da solidariedade.
Para a
Liturgia, parece ser de uma evidência fundamental que a pedagogia quaresmal
devesse começar por des-velar (tirar o véu) a desordem na afetividade. No caminho da vivência cristã, percebemos uma “aderência
afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, poder,
prestígio, status, ídolos, dependências.... que somada a outras, passa a
constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordenados”), esvaziando ou atrofiando o seguimento de Jesus
A Quaresma, nesse sentido, apresenta-se como
uma pedagogia para aprender a ordenar nossos afetos”, libertar-nos dos afetos desordenados e assim percorrer o caminho do desejo mais profundo: estratégia
centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura...
O
desejo de poder, de
possuir, de ser o centro (ego inflado) confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma
lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico e espiritual
que se dá em nós pelo fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a
consequente perda de liberdade e o perigo da dependência
que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com
facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do
movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos,
e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
É
necessário introduzir um princípio “ordenador” em nossa vida, que inspire
todo o nosso ser e o nosso agir, até que a “afeição” se converta em
identificação existencial com Jesus Cristo.
Esse novo objeto deve ter uma repercussão
decisiva na configuração da vida. Isto é, somos chamados a modificar
profundamente o mundo de valores, pensamentos,
condutas...
É
necessário, ao iniciar o percurso quaresmal, detectar os condicionamentos afetivos (amarras) que de fato limitam a nossa liberdade, bloqueando-nos diante da
proposta de vida que Jesus nos apresenta.
O
que está em jogo no “deserto quaresmal” é chegar a conhecer-se profundamente, encontrando a raiz do próprio ser nos afetos desordenados.
Esse
conhecimento interior, profundo, é condição indispensável para poder dispor de
si, em maturidade de liberdade. Sem ordenar
os afetos
o ser humano não é verdadeiramente livre. A “desordem” nos afetos
produz em sua liberdade uma essencial falsificação: faz tomar como absolutos o que são coisas relativas.
Só ordenando
os afetos a pessoa se situa diante
de Deus, reconhecendo-O como Absoluto.
Há afetos organizados negativamente por
acúmulo de “experiências negativas”. Para atingi-los, a pedagogia quaresmal
coloca “cargas afetivas opostas” (pessoa de Jesus, sua missão, o
Reino, ...)
Sabemos que não se
pode suprimir (matar) os afetos; o
que se pode fazer é mudar a orientação (“ordenar”) dos afetos, ou seja, re-orientar as “aderências afetivas” de
certos objetos ou pessoas para um horizonte de sentido: amor a Jesus Cristo e a
seu Reino.
Nesse sentido, nossa quaresma
torna-se um “estar com Jesus” no deserto, para, como Ele, dar a Deus o
lugar central de nossa vida.
A quaresma é um
tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço,
alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos (conversão), de retomada da opção
fundamental por Deus e pelo seu Reino
(maior serviço, mais compaixão, mais solidariedade...).
Nossos “apegos” se
assemelham às construções à beira do rio que nos fixam num determinado lugar
que nos parece confortável, desejável e seguro. Mas, se assim agirmos,
afastamo-nos da correnteza da vida e não vai fluir em nós nem crescimento e nem
progresso rumo à liberdade dos filhos de Deus.
A experiência de deserto passa a ser “tempo
e lugar” de decisão, de orientação decisiva da vida, de enraizamento de
nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa
missão... O mestre do deserto é o silêncio;
o deserto tem valor porque
revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela
Deus e a nós mesmos.
O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. O decisivo é “deixar-nos conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração:
Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos ser Vontade de Deus; na realidade
é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
O desafio permanente
é este: examinar as “coisas” que estão ocupando por completo nossa
existência e “tomando conta de nós” a ponto de bloquear o fluxo da graça e da
vida.
- Quais “tentações” estão travando sua
vida, impedindo-o de seguir a Jesus mais livremente?
- Rezar suas “pulsões desordenadas” que atrofiam
sua sintonia com Deus e sua abertura aos outros.
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