quinta-feira, 24 de março de 2022

Misericórdia Reconstrutora

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Quaresma (2022).

“...este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32) 

Lucas, o poeta da misericórdia, soube pintar com palavras a parábola de Jesus que tanto nos comove.

Por que a parábola do “Pai Misericordioso” nos comove e provoca tanta ressonância em nosso interior?

Evidentemente, a parábola fala dos nossos anseios mais profundos: de retornar de terras estranhas para nosso lar, de sair da insignificância para encontrar nossa essência, de deixar a morte para trás e voltar à vida. É o desejo que nos diz que, independentemente da situação em que nos encontremos e de quão perdidos estejamos, sempre é possível mudar a direção de nossa vida perdida, retornar e encontrar nosso verdadeiro lar.

Na realidade, a parábola deixa claro o que nos distancia e nos aproxima do nosso ser essencial.

Toda a parábola do “Pai Misericordioso” acontece entre dois polos: distanciamento e proximidade.

Quando Lucas escreve que o filho mais novo “partiu para uma região longínqua”, ele se refere a uma quebra drástica da maneira de viver, pensar e agir que ele recebeu como um legado sagrado através das gerações, e uma traição aos valores cultuados pela família e pela comunidade.

O “país distante”  é o mundo no qual não se respeita o que em casa é considerado sagrado.

As consequências da ruptura com o pai serão a miséria extrema e a degradação máxima. Quando atravessou o limiar da casa paterna e deu as costas ao pai, o filho estava partindo para a solidão, para a alienação, para a perdição.

No início, parece que só o filho mais novo estava longe do pai e da sua casa: lá, numa situação de extrema miséria e morte, ele sente saudades da casa do pai e da presença do amor e da vida que ali reinava.

Mas, a volta do filho “distante” ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o perfeito”, que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante.

O “filho mais velho” apresenta uma aparência de perfeição que camufla um medo de viver, uma falsa submissão, uma rejeição do outro, uma incapacidade para receber os dons do pai. Ele ignora que, para entrar na festa, é insuficiente não transgredir as leis, mas ter uma outra disposição do coração. Não é criativo, não assume nenhum risco. Percebe-se que ele não é feliz naquilo que vive: o peso da lei o torna uma pessoa amarga, cheia de ressentimentos, de julgamentos, de indiferença...

Por outro lado, o “retorno” do filho mais jovem deixa também transparecer a grandeza de um coração transbordante, quase inimaginável, de um pai absolutamente “surpreendente” e, “incompreensível”, no seu modo de lidar com os fracassos e limitações dos seus filhos.

Enquanto os filhos demonstram todo o seu “distanciamento”, o pai se aproxima, sempre mais, fazendo-os descobrir não só o fato de serem filhos, mas também de irmãos.

Para ambos os filhos, torna-se necessário percorrer a estrada do “retorno reconstrutor”, não só para a redescoberta do próprio pai, mas também, da própria dignidade e da verdade sobre si mesmos.

O filho mais novo, decidido a uma realização pessoal e autônoma, distancia-se daquela casa, onde tudo parecia ser muito tranquilo e monótono. No entanto, quando se encontra em estado de completo abandono, com a ameaça da morte diante dele, volta, em seu coração, a lembrança de casa e a saudade da segurança, que lá podia encontrar com abundância. Enquanto estava mergulhado nas trevas da morte, a luz da vida, finalmente encontra espaço nele.

Então a lembrança se torna decisão; a decisão... caminho, retorno... aproximação. No momento de maior distanciamento e solidão, esse filho se dá conta, em seu íntimo, da proximidade da ternura e do amor do pai. A centelha que ilumina o caminho, que conduz à liberdade e à vida, se manifesta precisamente nas trevas da derrota, da morte, da falência, da miséria...

A lembrança e a saudade da casa do pai se tornam caminho no coração do filho distante, exatamente no pior momento da sua existência: ele não tinha mais nada, nem dignidade e nem comida para sobreviver.

O fracasso, a impotência, a limitação... podem se tornar momento regenerador e inédito: o encontro do caminho da liberdade e da vida. À luz da misericórdia, o fracasso, a derrota, a ferida... se revelam como bênção e uma ocasião privilegiada para a quebra do “ego inflado e autossuficiente”.

Na solidão e na indigência, o filho, que estava “perdido”, contemplou o rosto amoroso de seu pai e encontrou a força para levantar-se e ir bater à porta de casa.

Aquele filho que antes era “pedra de tropeço” agora se torna “pedra angular”, sobre a qual se derrama a misericórdia gratuita do pai e sobre a qual se constrói uma história nova, que envolve todos os que vivem naquela casa.

Os dois filhos, apresentados a nós nessa parábola, têm trajetos fundamentalmente distintos; contudo, possuem em comum o fato de não conhecerem de verdade o Pai e o fato de não terem nenhuma consciência das consequências de suas rupturas. Um, está seguro de saber o que quer: partir, estar em outro lugar. O outro, tem a certeza de estar no caminho certo: o dever.

Ambos perderam o caminho do coração. Um, esqueceu-o; o outro, endureceu-o.

Nenhum deles tinha vivido uma relação sadia com o pai: nem aquele que partiu, nem aquele que permaneceu a seu lado. Ambos perderam a sua fonte e não recebiam mais a água do amor. Não eram mais iluminados a partir do coração; tornaram-se cegos. Caminhando dia e noite, vão tropeçar: um, na desordem; o outro, no excesso de ordem.

O fracasso do filho mais novo e sua volta imprevista abalarão a ambos; um será sacudido pela tristeza, pelo fracasso, pela humilhação; o outro, pela revolta, pela explosão de uma raiva reprimida há muito tempo. O retorno foi um acontecimento revelador, para os dois, de um possível ponto de partida para uma nova vida, de uma ocasião oferecida para a recuperação da dignidade de filhos.

“E foi ao encontro de seu pai”. O filho mais novo muda de direção. Vira-se, dá meia-volta, abandona o caminho de morte e decide não cuidar mais dos porcos. A memória da misericórdia do pai o torna capaz de colocar-se a caminho. Não se imobiliza mais na infelicidade, no vitimismo, na culpabilidade estéril: é o tempo da determinação, da opção em favor da vida e da comunhão.

O filho pródigo reencontra o movimento da vida. Sabe tirar proveito de um acontecimento catastrófico. Decide retomar o caminho de casa a partir do estado em que se encontra, mesmo não tendo uma clara compreensão de tudo, mesmo quando sua preocupação primordial é a sobrevivência. Está pronto para assumir esse retorno sem glória, pois agora é livre. É iluminado por um desejo encontrado no fundo de si mesmo: “levantar-me-ei e irei ter com meu pai”. Renuncia às antigas vestes, entra numa vida renovada, pois percebe a possibilidade de dar um passo em direção à vida.

É então que vai viver, nos braços do pai, o encontro que irá fazer dele um filho. Quebra-se o seu coração autossuficiente, e ele está pronto a deixar-se moldar. A misericórdia do pai o reconstruirá como filho.

Segundo o texto evangélico, o pai não diz uma única palavra ao filho no momento em que o acolhe.

Ele deixa transparecer seus sentimentos através dos gestos: corre ao seu encontro, abraça-o e cobre-o de beijos. Não há aqui o menor sinal de rejeição ou repreensão. Antes que o filho diga algo, o pai é acolhida total, compaixão visceral, perdão incondicional.

O relato evangélico acentua, em primeiro lugar, a compaixão e a ternura sentidas pelo pai.

Ele viu o filho no caminho de volta para casa “quando estava ainda longe”. Na verdade, não tinha deixado de esperá-lo, com o coração e com os olhos, desde o dia inesquecível em que o filho saíra de casa. Este tinha, sim, partido; mas nunca tinha se afastado do afeto, do amor sofrido do pai, que contemplava todos os dias, com sua vista cansada e com os olhos do coração, o caminho percorrido pelo filho, na esperança de vê-lo voltar.

Texto bíblicoLc 15,1-3.11-32

Na oração:

Diante do Pai Misericordioso, perguntar a si mesmo:

- o que em mim está “perdido”, “distante”, “isolado”...?

- o que em mim é “dever”, “ressentimento”, “legalista”...?

- o que em mim é acolhida, compaixão, proximidade...?

quinta-feira, 17 de março de 2022

Raízes que nos sustentam

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Quaresma (2022).

“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc 13,8)

 

Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?

Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.

“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos mais nobres e assim experimentar a transformação.

O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.

Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.

Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos “sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro; petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...

Desenraizar-se é desumanizar-se.

A “nova radicalidade” é a maneira original de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.

Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.

Superfície significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior, desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso, paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada.

Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas.

No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).

A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de “levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.

Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de quem é e como quer viver...

Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.

A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido: abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.

Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do encontro com nossa verdade pessoal.

A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando frutos.

Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.

Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como adubo.

Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a faz florescer.

A questão está em como cavar, que adubo depositar e que frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.

Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se empobrecerá.

É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências asfixiantes e atrofiantes...  que limitam a liberdade de Deus em atuar em nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior, reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que está situada nossa “figueira”.

Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus” estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de nossa terra interior.

Texto bíblico: Lc 13,1-9

 

Na oração:

Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente.

Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação.

Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.

- O que está “estéril” em sua vida?

- Quais são e onde estão as raízes onde seu coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que deem frutos?

sábado, 12 de março de 2022

A Oração nos Trans-Figura

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Quaresma (2022).

“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência...” (Lc 9,29)

 

Para viver com mais intensidade o caminho quaresmal, a liturgia deste domingo nos apresenta o relato evangélico que nos dá uma luz para continuar avançando bem orientados. Caminhamos para a vida, para a essência de nosso ser, para a comunhão com tudo e com todos. Precisamos, de tempos em tempos, de um “Tabor”, como parada estratégica, para “sentir e saborear” a presença próxima e amorosa de Deus Pai que nos transforma, nos transfigura e deixa ressoar em nós sua instigante voz: “este(a) é o(a) meu(minha) filho(a), o(a) Eleito(a)”.

Voz que nos desperta e nos faz tomar consciência de que há possibilidade de “ir mais além”, ao essencial de nosso ser. A experiência da Tabor nos arranca do caminho rotineiro e nos abre para um horizonte maior. Podemos reconhecer que a nós também nos foi dado o “gene” da transfiguração, que é força que nos move continuamente a não nos deixar determinar pela nossa auto-imagem, pela aparência, e sim, centrar nosso olhar n’Aquele que é pura transparência do Pai.

Trata-se de eleger entre continuar cuidando do exterior (as roupagens, os aplausos momentâneos, a presença nas redes sociais, o número de seguidores que temos...) ou cuidar dessa outra “dimensão” que nos conduz ao mais profundo, que nos tira do caminho estreito e repetitivo para nos fazer descobrir Aquela presença que nos transfigura e transfigura a realidade de nosso entorno.

O relato da “transfiguração” de Jesus se situa expressamente em um contexto de oração. É ali onde, através da luminosidade do seu rosto, Ele deixa transparecer algo da sua verdadeira identidade.

Por isso, na transfiguração, a humanidade de Jesus se revela como pura transparência do Pai. Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.

A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.

Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.

A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.

A Transfiguração nos possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe se deixar impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de ficar assombrado diante do Mistério.

O Tabor não só é o lugar do encontro íntimo com o Senhor; implica também o encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); a Montanha nos “transfigura”, revelando nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber nosso verdadeiro rosto, iluminado por Aquele que se deixa “trans-parecer” em tudo. “O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior; o mistério da transfiguração nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” em nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.

Transparente é um modo de ser; a transparência faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.

A experiência orante no alto do “Tabor” é o meio privilegiado para voltarmos a mergulhar continuamente nessa Luz de onde procedemos. Entramos na corrente universal, até a Vida de Deus. Orar é deixar-nos conduzir até às profundidades trinitárias onde Deus nos forma e nos configura à sua imagem. Não devemos ficar surpreendidos se, interiormente, sentirmos uma plenitude de alegria e de superabundância.

A oração ajuda a evangelizar até as profundidades do nosso ser. Ela é o caminho interior do Tabor que nos faz chegar até nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de nós mesmos, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.

Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos originais, riquezas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...

Assim, a divina pedagogia evoca a verdade do ser humano, comporta uma pro-vocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz...

Deixar-se “iluminar” pela Luz do Tabor significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz clareza e mobilização, pede a mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...

Situados no alto do nosso Tabor atingiremos experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconheceremos, através do murmúrio dos ventos, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que darão sentido e consistência ao nosso viver.

A subida ao Tabor nos potencia, libera energias e recursos escondidos, torna-nos criativos, coloca-nos em movimento, tirando-nos de nossa acomodação...

“Subir” o Tabor é deixar-nos conduzir pela presença do Espírito de Jesus, para “descer” com mais vigor e ânimo ao vale do cotidiano e ao compromisso na prática do bem e da justiça.

Tabor significa sair de nosso pequeno e limitado mundo cotidiano, de nossa visão estreita das coisas, da vida corriqueira do vale...; significa alargar nossa visão da realidade, abrir novos horizontes...

Por isso, a transfiguração no Tabor implica ter “mais portas e janelas” em nossa vida interior.

O Monte Tabor nos oferece janelas que permitem ampliar nossa visão. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando fechados em nós mesmos. As janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a humanidade. Elas revelam aos outros algo original que é só nosso; elas apontam para a porta que se abre, para que os outros se aproximem e entrem em nossa vida.

O mergulho em nós mesmos, para além de nós mesmos, realiza a metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica.

Texto bíblico: Lc. 9,28-36

Na oração:  

Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profun-damente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais profundo de sua interioridade que você escutará o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que armou sua tenda entre nós”.

- Só há um caminho para ter acesso ao Tabor: procure entrar em seu espaço interior; investigue e examine suas raízes nos recantos mais profundos de seu coração; sinta-se convidado(a) a despojar-se de suas medidas de segurança, a desnudar-se de todos os personagens e máscaras.

- Extraia de dentro de si uma resposta profunda, um sentido novo, uma esperança ousada...

- Construa sua vida de acordo com esta descoberta.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Deserto, escola para ordenar os afetos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo da Quaresma (2022).

“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1) 

O primeiro domingo da Quaresma sempre apresenta o relato das tentações de Jesus no deserto, que ajuda a desvelar o sentido de sua missão, seu caminho, seu destino. É relevante o fato de que se vincule a ida de Jesus ao deserto após o batismo, sendo conduzido pelo Espírito.

O deslocamento de Jesus ao deserto está em profunda sintonia com a experiência vivida pelo povo judeu.

Foi no deserto que Israel aprendeu a descobrir e a confiar em Deus. Longe da segurança do Egito, emergiu o que havia no fundo do seu coração. Os profetas cantaram o tempo do deserto como tempo das obras maravilhosas de Deus. Foi no deserto que o povo de Israel sentiu profundamente sua pequenez e total dependência de Deus.

Não existiam caminhos prontos. Era preciso discutir, planejar, rezar, lutar e sonhar para fortalecer a caminhada. No fundo, o Êxodo foi um profundo tempo de discernimento coletivo, que desembocou numa radical opção pela liberdade, porque um povo só é livre quando pode decidir o rumo de seu caminhar:

Deserto: lugar da Aliança, escola da intimidade com o Senhor; expressão que, mais do que um determinado lugar, indica uma experiência forte de Deus.

Jesus, como todos os profetas, antes de assumir sua missão, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Frequentemente Ele recorria a esta experiência em meio à sua vida ativa: afastava-se para lugares solitários, confrontava a sua missão com a Vontade do Pai.

Todos os personagens bíblicos, todos os(as) santos(as) passaram pela experiência de deserto: peregrinação interior, confronto com a própria vida, comunhão com o Senhor, descoberta da própria missão...

        “Eu o(a) levarei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os. 2,16).

Segundo os evangelhos, as tentações experimentadas por Jesus no deserto não são propriamente de ordem moral. Não se trata de uma eleição entre o bem e o mal. São tentações que apresentam maneiras falsas de entender e viver sua missão. O tempo do deserto foi, para Jesus, um tempo de discernimento sobre os melhores “meios” para viver seu messianismo. As tentações não diziam respeito ao “ser Messias” de Jesus; isto estava claro e fora confirmado pela experiência do seu batismo: “Tu és o meu filho amado”.

As tentações de Jesus aconteceram no campo das mediações: entre pensar em seu próprio interesse ou deixar-se conduzir pela vontade do Pai; entre impor seu poder como Messias ou colocar-se a serviço daqueles que mais precisam; entre buscar a própria glória e prestígio ou manifestar a compaixão de Deus para com aqueles que sofrem; entre evitar riscos para fugir da perseguição ou entregar-se fielmente à sua missão, confiando somente no Pai.

De fato, os meios apresentados pelo “tentador”, humanamente falando, são os meios mais eficazes que ninguém poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para culminar, todo o mundo a seus pés.

Quem resiste a um homem com tais meios?

Todos seriam atraídos porque, em definitiva, teria entre suas mãos o poder total e o domínio absoluto.

Eis aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e libertar toda a humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O tentador não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão que procure atingir esse fim, usando os meios que são exatamente o oposto da solidariedade.

Para a Liturgia, parece ser de uma evidência fundamental que a pedagogia quaresmal devesse começar por des-velar (tirar o véu) a desordem na afetividade. No caminho da vivência cristã, percebemos uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, poder, prestígio, status, ídolos, dependências.... que somada a outras, passa a constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordenados”), esvaziando ou atrofiando o seguimento de Jesus

A Quaresma, nesse sentido, apresenta-se como uma pedagogia para aprender a ordenar nossos afetos”, libertar-nos dos afetos desordenados e assim percorrer o caminho do desejo mais profundo: estratégia centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura...

O desejo de poder, de possuir, de ser o centro (ego inflado) confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico e espiritual que se dá em nós pelo fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.

          “Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.

É necessário introduzir um princípio “ordenador” em nossa vida, que inspire todo o nosso ser e o nosso agir, até que a “afeição” se converta em identificação existencial com Jesus Cristo.

Esse novo objeto deve ter uma repercussão decisiva na configuração da vida. Isto é, somos chamados a modificar profundamente o mundo de valores, pensamentos, condutas...

É necessário, ao iniciar o percurso quaresmal, detectar os condicionamentos afetivos (amarras) que de fato limitam a nossa liberdade, bloqueando-nos diante da proposta de vida que Jesus nos apresenta.

O que está em jogo no “deserto quaresmal” é chegar a conhecer-se profundamente, encontrando a raiz do próprio ser nos afetos desordenados.

Esse conhecimento interior, profundo, é condição indispensável para poder dispor de si, em maturidade de liberdade. Sem ordenar os afetos o ser humano não é verdadeiramente livre. A “desordem” nos afetos produz em sua liberdade uma essencial falsificação: faz tomar como absolutos o que são coisas relativas.

Só ordenando os afetos a pessoa se situa diante de Deus, reconhecendo-O como Absoluto.

afetos organizados negativamente por acúmulo de “experiências negativas”. Para atingi-los, a pedagogia quaresmal coloca “cargas afetivas opostas” (pessoa de Jesus, sua missão, o Reino, ...)

Sabemos que não se pode suprimir (matar) os afetos; o que se pode fazer é mudar a orientação (“ordenar”) dos afetos, ou seja, re-orientar as “aderências afetivas” de certos objetos ou pessoas para um horizonte de sentido: amor a Jesus Cristo e a seu Reino.

Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” no deserto, para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.

A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais solidariedade...).

Nossos “apegos” se assemelham às construções à beira do rio que nos fixam num determinado lugar que nos parece confortável, desejável e seguro. Mas, se assim agirmos, afastamo-nos da correnteza da vida e não vai fluir em nós nem crescimento e nem progresso rumo à liberdade dos filhos de Deus.

A experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação decisiva da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.

O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. O decisivo é “deixar-nos conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.

Texto bíblicoLc 4,1-13

Na oração:

Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos ser Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...

O desafio permanente é este: examinar as “coisas” que estão ocupando por completo nossa existência e “tomando conta de nós” a ponto de bloquear o fluxo da graça e da vida.

- Quais “tentações” estão travando sua vida, impedindo-o de seguir a Jesus mais livremente?

- Rezar suas “pulsões desordenadas” que atrofiam sua sintonia com Deus e sua abertura aos outros.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Retiro Quaresmal 2022

O que é o Retiro Quaresmal?

Uma proposta simples de oração no dia-a-dia, buscando Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. O roteiro oferece uma forma especial de fazer o retiro em casa, no tempo da Quaresma, visando uma boa preparação para a Páscoa do Senhor. 

O material (textos e orientações) produzido pelo Pe. Luís Renato Carvalho de Oliveira, SJ estão disponíveis no link: https://ignatiana.blog/rq2022-0/


Outro subsídio disponível são os vídeos com os roteiros semanais do Retiro Quaresmal 2022,  gravados pelo Pe. Adroaldo Palaoro, SJ.

Acesse o Youtube de Edições Loyola, semanalmente, e utilize esse subsídio para ajudar você a vivenciar o seu Retiro Quaresmal.

Acesse o link: https://www.youtube.com/playlist?list=PL62MB2LMQEV50q9SC_MyhhGHkobK91srJ

Quaresma, escola de vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas, que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma.

“Fala com sabedoria, ensina com amor” (Prov 31,26)

 

Mais uma vez somos convidados a viver a Quaresma como uma escola de vida. Nestes dias, ao entrar no deserto da aprendizagem, teremos a oportunidade de experimentar um novo modo de compreender a vida: ativar os recursos, dons, capacidades… e integrar os limites, fragilidades, crises…

Ensinados por Deus, a Quaresma poderá ser uma escola inspiradora para o resto de nossas vidas.

Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2022, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, de nos deixar conduzir pelo Espírito, o Grande Mestre que “nos ensina com amor”. É preciso alargar o espaço no coração e na mente para acolher as “coisas novas” que Deus quer nos ensinar.

Em sintonia com toda as comunidades cristãs, somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de maneira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, seu ensinamento, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente.

Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico como uma celebração rotineira, algo já conhecido.

Somos todos alunos na escola do seguimento de Jesus, constituindo a grande comunidade de aprendizes.

Como alunos da “escola quaresmal” viveremos, em primeiro lugar, um deslocamento interno, mobilizando as nossas riquezas, despertando nossos desejos e reacendendo o impulso para uma identificação maior com o Mestre de Nazaré; em segundo lugar, viveremos uma travessia externa para alimentar um compromisso solidário e sermos presenças que fazem a diferença na grande escola da vida.

Tendo como inspiração o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, “fala com sabedoria, ensina com amor”, seremos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.

Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele saborear a seiva da “divina sabedoria” e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.

A pedagogia da interioridade apresenta-se como uma proposta sempre atual, que favorece a redescoberta do mundo interior, ou seja, tudo o que se refere à dimensão do coração, das intenções profundas, das decisões que partem das raízes internas. O coração de cada um é habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; ele é a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde se encontram os dinamismos do crescimento, de onde partem as aspirações e desejos fundamentais.

A pedagogia da interioridade, portanto, possibilita viver a “sabedoria do coração”.

O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus.

Tais “práticas” não são uma carga pesada sobre nossas costas, mais uma autêntica experiência de saída de nossa “ignorância existencial” para poder viver com mais sentido e inspiração.

Na escola da oração nos situamos diante do olhar compassivo do Senhor para poder nos conhecer mais em profundidade e colocar nossa vida em sintonia com o que Ele deseja para cada um de nós.

Na escola do jejum temos a oportunidade para aprender a integrá-lo, não como sacrifício vazio, mas por inspiração amorosa, ou seja, deixar o Senhor nos ensinar a jejuar de tudo aquilo que atrofia nossa vida: pré-juizos, intolerância, egoísmo, soberba, mentiras, ignorâncias...

Por fim, a escola da esmola revela-se como chamado a nos des-centrar, a fazer da nossa vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudo os mais pobres e excluídos. O exercício da “esmola” libera os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos e desolados.

Assim, o jejum, a oração e a esmola criam um clima favorável para nos “deixar educar por Deus”, para que nos tornemos mais humanos. “Educação divinizada” que se expande em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.

A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo educativo, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, onde o verdadeiro Mestre faz do nosso coração sua “sala de aula”.

Como percurso espiritual, a Quaresma nos proporciona “sentir e a saborear” o modo como Deus se deixa encontrar pelo ser humano, como Ele “conduz” cada pessoa, sua maneira original de entrar em diálogo com cada um... Essa relação “Deus – ser humano” se revela como longo processo de aprendizagem, onde Deus é o verdadeiro “pedagogo”.

“Ser educado por Deus”: o princípio da divina pedagogia perpassa todo o percurso da Quaresma.

Santo Inácio, que se deixou educar por Deus, afirma que Ele o tratava “da mesma maneira que um professor trata um aluno, ensinando-o” (Aut. 27)

A “divina pedagogia” possibilita “e-ducar”, no sentido de “e-ducere”: trazer para fora ou extrair o melhor e mais humano presente nas profundezas de cada um, a verdade e a essência de cada pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível, ativando seus recursos e potencialidades.

Na escola quaresmal, nossa atitude primeira é a de dar o maior e mais amplo espaço possível ao Mestre interior, deixando-nos conduzir por Ele em todas as circunstâncias, em todo tempo e situações da vida.

Tudo isso confirma que Deus é “o” Pedagogo. Ele nos conhece como ninguém e como ninguém sabe fazer emergir tudo aquilo que Ele colocou em nós como criatividade, imaginação, intuição, desejos...

A experiência de Deus como “o” Pedagogo não é uma experiência à margem daquilo que é a experiência da vida cotidiana. Experiência, conhecer por experiência, fazer experiência... A própria vida é uma grande experiência. E cada experiência pode ser uma experiência de Deus, um deixar-se “transbordar” e “surpreender” por Ele, de Quem provém toda iniciativa.

De fato, a experiência é a sabedoria da vida. Santo Inácio resume essa intuição numa frase: “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.

Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18

Na oração:

Deus, divino pedagogo, vem ao nosso encontro e arranca nossa vida dos limites estreitos e atrofiados, expandindo-a em direção a horizontes inspiradores;

- Quais as dimensões de sua vida que precisam se expandir, para viver com inspiração seu compromisso cristão?

- Nesse tempo quaresmal, você sente que sua vida necessita um novo salto de qualidade? Em que direção?... Qual é o seu estado de ânimo ao iniciar o percurso da Quaresma?