sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Um juiz enrustido em nosso interior

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 8º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?”

O evangelho deste domingo nos situa no mesmo cenário onde Jesus havia proclamado as bem-aventuranças. O Mestre da Galileia está ensinando a um amplo grupo de seguidores(as), buscando despertar neles(as) a radicalidade que o Reino de Deus pede, a partir de uma vida que se sabe sustentada pelas mãos providentes de Deus e aberta à bondade, ao encontro e à solidariedade.

O ensinamento de Jesus tinha começado um pouco antes com uma afirmação taxativa: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37). Depois da proclamação das bem-aventuranças e os “ais” contra aqueles que buscavam honras, riqueza e poder, Jesus vai proferindo uma série de afirmações que orientam o seu discipulado e revelam um “modo de ser e proceder” original e humano. Ele também adverte das armadilhas nas quais se pode cair quando alguém se apresenta como “juiz” que quer ser a referência para corrigir as limitações dos outros, afastando-se do bom caminho.

No discurso, encadeiam-se uma série de sentenças que alertam contra quem vive autorreferenciado e considera que só ele tem a verdade.

* Por quê somos tão rígidos, tão duros, tão insensíveis, tão julgadores...?

* O que nos faz ficar petrificados por dentro? Que forças internas nos mobilizam a ser o centro?

* Por que temos medo do desconhecido, daquele que pensa e sente de maneira diferente?

Em cada um de nós o instinto do julgamento está enraizado profundamente. Podemos dizer que todos nascemos municiados de uma cadeira de juiz. Há muitos que cultivam ardorosamente esta profissão e encontram ocasiões abundantes para praticá-la, submetendo-se, inclusive, a um horário esgotador.

Como proliferam os “tribunais ambulantes e permanentes”!

Tal atitude julgadora nos petrifica em todo o nosso ser, deixando-nos estagnados: emoção congelada, relações congeladas, imagem de Deus congelada, visões congeladas...

Somos submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso corpo, petrificados em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso espírito.

Podemos estar muito retraídos, auto-centrados, tensos... e isso nos impede viver com maior fluidez.

* Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?

* Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros e fechar-nos numa fria rigidez?

* Como reencontrar, no nosso cotidiano, a fluidez que habita em nós?

No Evangelho deste domingo encontramos algumas expressões categóricas que nos movem a abandonar este ofício julgador, bastante perigoso e rompedor de relações. Há um apelo forte que nos convida a fazer em pedaços a cadeira de juiz que todos levamos presa às nossas costas.

No entanto, em muitos seguidores e seguidoras de Jesus vai amadurecendo, ao longo da vida, a convicção de que há coisas muito mais importantes a fazer do que se dedicar ao ofício de juízes.

É preciso “cristificar” nossa visão para que ela não se deixe determinar pelas aparências ou pelas limitações do outro, mas, consiga vê-lo em profundidade, percebendo o que há de mais humano e divino em seu interior. A sabedoria de Jesus recorda algo elementar: o outro é nosso espelho, pois o cisco que vemos em seu olho nos está falando de uma “trave” que há no nosso; é preciso estar sempre com os olhos e ouvidos bem abertos para nos deixar impactar pelos dons, recursos e potencialidades humanas presentes em cada um.

“Guia cego” é aquele que, centrado na lei, se situa acima do outro, exigindo dele qualquer tipo de “submissão”. Isso acontece porque tal “guia” carece de compreensão, fala a partir da fria lei e só busca alimentar e fortalecer seu próprio ego.

O guia autêntico, pelo contrário, considera-se a si mesmo como “acompanhante”, fala a partir de sua própria experiência e remete cada pessoa a si mesma, na certeza de que o único “guia” é sempre o “Guia interior”, ou “Mestre interior”, que se expressa em cada ser humano.

Assim, enquanto o “guia cego” acaba caindo no buraco, o acompanhante autêntico oferece luz e espaço amplo para que cada qual vá encontrando seu próprio caminho.

Jesus está sempre nos chamando à autenticidade, ou seja, Ele nos provoca a descer ao mais profundo de nosso próprio ser e descobrir ali o que está de acordo com o que na realidade somos. Por isso, Ele está sempre combatendo uma acomodação externa às normas e preceitos. A única Lei definitiva é a que está escrita em nosso interior e tem a marca do amor. É preciso descer ao coração e descobri-la, para que ela inspire nosso ser e nosso proceder.

Como cristãos temos copiado a atitude dos fariseus, dando mais valor ao cumprimento de normas que à busca interior das exigências de nosso verdadeiro ser. Esta é a causa de nosso fracasso na vida espiritual.

A originalidade do Evangelho está na aventura da descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45).

É preciso ser discípulo(a) da “escola do coração” onde aprendemos a nos acolher como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu Reino.

No nosso contexto cultural, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.

Por outro lado, vivemos também um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juízos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.

O seguimento de Jesus consiste, sobretudo, em alcançar a experiência interior que Ele viveu, e deixar que nossa interioridade cristificada se manifeste. Fazer caminho com Ele nos ajuda a descobrir as enormes possibilidades em nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que se faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...

“Ter o coração nas mãos” nos capacita a olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração do Pai nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.

Humanizar nosso coração para humanizar as relações.

Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).

Texto bíblicoLc 6,39-45

Na oração:

No silêncio da oração, desça até o mais profundo de seu coração, até chegar à corrente subterrânea de água viva; aqui você experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde a transformação acontece.

A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, abra-se ao coração da realidade.

- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana? Coração oxidado ou ativado pela Misericórdia?

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

“Princípio Misericórdia”: amor em excesso

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 7º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) 

O Evangelho deste domingo nos situa diante desta convicção: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.

Em sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.

Duas razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.

Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a esvaziaram. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.

Misericórdia. É a primeira, a última, a única verdade na Igreja, em todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o “atributo primeiro” de Deus proclamado por todas as religiões e que deve inspirar o modo de proceder de todo ser humano. E, - por que não dizer? -, também no campo da política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!

A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida, tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.

Misericórdia, segundo sua etimologia, significa “entranha”, coração, ternura diante da fragilidade e miséria do outro. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus; é o mesmo que dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.

A força criativa da misericórdi de Deus põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.

Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.

A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da mesma Misericórdia.

À imagem do Deus de Misericórdia fomos criados, e somos seres capazes e necessitados de misericórdia. Uma faísca da misericórdia Deus está presente no interior de cada ser humano, pálido reflexo dessa “forma suprema de ternura” que é o Amor de Deus, que rompe as distâncias e se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa. Ou seja, se Deus não se revelasse como “misericórdia”, não poderia ser amado pela pessoa humana como se ama o pai ou a mãe.

Deus misericordioso nos educa e nos impulsiona a viver misericordiosamente. Sua misericórdia penetra até o mais profundo de nosso ser, individual e comunitário, para que pensemos, falemos, escutemos e atuemos misericordiosamente. “Oxalá vos sintais sempre misericordiados, para serdes, por sua vez, misericordiosos” (Papa Francisco).

No princípio era a Misericórdia. Por ela fomos criados. Foi um ato de Misericórdia que nos deu vida. A Misericórdia é sempre geradora de vida. A Misericórdia é o Amor que vai além da justiça, e vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de justiça.

Fomos criados por um coração misericordioso, fomos feitos por mãos misericordiosas, pensados por uma mente misericordiosa. Vivemos imersos na Misericórdia.

Se Deus não fosse misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe desde o princípio do nosso viver, ela ainda agora é fonte de vida, graça da qual temos continuamente necessidade e que constantemente está agindo em nós para alimentar o impulso da reconciliação com tudo e todos.

A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela destrava a vida, potencializa o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.

O teólogo Jon Sobrino formulou a expressão “princípio-misericórdia”, porque a misericórdia foi a que moveu toda a ação de Deus no AT e de Jesus no NT.

Jesus realizou muitas coisas e em muitos lugares (ensinou, curou, denunciou, alimentou, dialogou, etc.), mas a misericórdia foi a que inspirou e moveu tudo em sua vida e ação. Sentiu profundamente o sofrimento das pessoas, preocupando-se sempre em aliviar sua dor. Mas é preciso destacar, no entanto, que Jesus não se limitou à esfera do privado, mas estendeu a misericórdia a dimensões coletivas e públicas: repartiu o alimento a uma multidão, interpelou os ricos, pregou às massas e as alentou, denunciou os abusos das autoridades religiosas e políticas, entrou em conflito com os manipuladores da religião do Templo... 

De acordo com o Evangelho deste domingo, só quem entra no fluxo do “princípio Misericórdia”, será capaz de amar até os inimigos, de quebrar o círculo de toda violência, de bem-dizer quem amaldiçoa e rezar pelos que caluniam. Assim, a misericórdia, recebida e experimentada, é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de partilha e solidariedade.

“Ser humano” é, para Jesus, agir com misericórdia; do contrário, fica viciada na raiz a essência do humano, como acontece com aqueles que fazem da lei e da doutrina o centro de suas vidas, “passando do outro lado” da dor e da exclusão do outro.

A misericórdia, como estilo-de-vida cristã, é força oblativa que rompe distâncias e faz “morada no outro”.

Ela se constitui como uma “caridade-em-ação” perante o sofrimento alheio, numa atitude fundamental de solidariedade. É a ternura que se traduz em atos em favor da vida e não da morte.

Ela nos descentraliza e nos coloca no caminho do co-irmão, sobretudo daquele mais fragilizado e excluído.

É a misericórdia que desperta em nós uma nova sensibilidade a partir do outro, almejando com todas as forças aquilo que é o melhor para ele.

Trata-se de uma “escuta existencial” feita de profundo respeito pela alteridade do irmão. Não pretende que o outro se amolde à nossa maneira de ver ou sentir, mas deixa o outro ser profundamente ele mesmo.

Assim lançamos a base para um autêntico encontro fraterno, inspirando-nos na própria atitude de Jesus para com as pessoas. Abrimo-nos por dentro para captar o diferente do outro e acolhê-lo com o coração.

Texto bíblico: Lc 6,27-38

Na oração:

A experiência da oração implica escancarar as portas de nossa interioridade, abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com liberdade pelos recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando dinamismos e recursos que ainda não tiveram oportunidade de se expressar.

- O atual contexto social-político-cultural-religioso revela sua terrível face desumanizadora, através da cultura do ódio, da intolerância, das mentiras... Como você, seguidor(a) de Jesus, tem reagido diante disso? Sua presença tem a marca da misericórdia ou da indiferença? Está a serviço da vida ou da morte?...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

As bem-aventuranças quebram o círculo do ódio

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Bem-aventurados, sereis, quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22). 

Estamos vivendo uma nova e preocupante situação nas relações entre as pessoas, entre as diferentes denominações religiosas, entre as diferentes ideologias políticas. Há uma aliança entre a extrema direita ultra-neoliberal, homófoga, sexista, racista, xenófoba, machista, moralista, anti-ecológica, negacionista da ciência e da mudança climática... e as organizações “cristãs” conservadoras de caráter fundamentalista. Situação que se manifesta como a mais grosseira manipulação do cristianismo e a perversão do sagrado, pois se apoia nos discursos e nas práticas de ódio dos partidos e dos grupos neo-fascistas de todo o mundo.

Tal perversão religiosa se alimenta do ódio, cria divisões, espalha mentiras e difamações, fomenta a violência entre seus seguidores...; tudo isso tem um forte impacto negativo, pois se espalha muito rápido em toda a sociedade, usando, sobretudo as plataformas de mídia e redes de internet. Revela-se aqui a face mais triste do processo de profunda desumanização que vivemos.

Muitos analistas do atual contexto afirmam que está nascendo uma “nova religião”, talvez a mais perversa, a mais destruidora do planeta e da humanidade: “a religião do ódio”.

Parafraseando o filósofo Descarte, muitas pessoas afirmam tranquilamente: “Eu odeio, logo eu sou”; ou “eu odeio, logo existo”. O ódio passa a ser a auto-afirmação e a auto-constituição por meio da negação e da aniquilação do outro, sobretudo do outro que sente, pensa e ama de maneira diferente.

Em outras palavras, através do ódio aos outros, da eliminação das pessoas e dos coletivos odiados (negros, indígenas, homoafetivos, imigrantes...), aquele que odeia confirma sua própria existência através deste argumento de morte: o outro não existe, logo eu existo como o único que resta. Além disso, a aniquilação do outro através do ódio produz prazer. Por exemplo, o torturador desfruta de prazer na hora de torturar. “Ódio e prazer acabam sendo uma só coisa” (Anders). Quanto mais se espalha e mais vezes se repete o ato da aniquilação, mais tende a se espalhar o prazer do ódio e o prazer de ser a si mesmo.

O ódio não surge do nada: tem um contexto histórico-cultural-religioso-político específico. Existem causas, motivos, razões que se apresentam como oportunidades para ativar a faísca da explosão do ódio e da intolerância. São práticas e convicções friamente calculadas, largamente cultivadas e transmitidas pelas redes sociais, alimentadas por foros de debate, publicações, meios de comunicação, discursos...

Mas, no fundo, tudo tem sua origem no coração do ser humano, pois este é capaz do “pior” e do “melhor”; ele carrega em seu interior tanto as “bem-aventuranças” como as “mal-aventuranças”.

Quando o ser humano mata sua sensibilidade e seu espírito de compaixão, quando atrofia sua capacidade de discernimento, quando não reconhece no outro seus valores, suas qualidades, sua cultura..., temos aí o cultivo do “caldo venenoso” do fanatismo que alimenta a cultura da morte.

Tal modo de proceder implica uma nítida contradição com os princípios próprios do cristianismo, centrados no perdão, no amor ao próximo, no espírito das bem-aventuranças. É uma tremenda incoerência afirmar ser seguidor(a) de Jesus e deixar-se dominar pelo instinto da vingança (“olho por olho e dente por dente”), pelo prazer em disseminar mentiras e expressar ódio, por emitir julgamentos preconceituosos e intolerantes, etc.

É em meio a este mundo marcado pela exclusão, violência, fanatismo... que devemos abrir nossos ouvidos para escutar a proclamação das “bem-aventuranças”, feita por Jesus.  Elas não são leis que se impõem a partir de fora, mas dinamismos de vida que já estão presentes no mais profundo do ser humano. Elas manifestam aquilo que é mais divino e humano no interior de cada um. Pulsa em todos nós um desejo latente de felicidade descentrada, de relações sadias, de convivência harmoniosa, de sensibilidade solidária...

É preciso favorecer ambientes humanizadores para que as bem-aventuranças aflorem com toda intensidade.

Qualquer tentativa de aclarar racionalmente o sentido das bem-aventuranças está fadada ao fracasso. Sem uma experiência profunda do humano, as bem-aventuranças são um sarcasmo. Só a partir do mais profundo sentido espiritual elas podem ser compreendidas e assumidas como um modo humano de viver.

É o texto mais comentado de todo o evangelho, mas é também o mais difícil. Inverte radicalmente nossa escala de valores. Pode ser feliz o pobre, o que chora, o que passa fome, o oprimido?

Proclama-se ditoso o pobre, não a pobreza; ditoso, não por ser pobre, mas porque ele não é causa de que outro sofra. Ditoso porque, apesar de tudo, ele pode destravar(expandir) sua humanidade. As bem-aventuranças não são um sim de Deus à pobreza, nem ao sofrimento, mas um rotundo não de Deus às situações de injustiça. Sempre que agimos a partir do egoísmo, há injustiça. Sempre que impedimos que o outro cresça, há injustiça.

O evangelho não incentiva valorizar a pobreza em si mesma, mas instiga-nos a não ser causa do sofrimento do outro. A pobreza evangélica sempre faz referência ao outro.

Assim, ditoso o pobre, não por ser pobre, mas por não causar pobreza; ditoso o que chora, não porque é sensível, mas por não causar dor aos outros, fazendo-os chorar; ditoso o que passa fome, não porque não tenha nada que comer, mas porque vive a espírito de partilha e não suporta vendo os outros com fome; ditoso aquele que é odiado e sofre perseguição, não por ser incompreendido, mas por sua atitude profética em favor dos injustiçados e excluídos. Esta é a profunda mensagem das bem-aventuranças.

Ser ditoso é ser livre de toda atadura que nos impede expandir nossa humanidade.

Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus está revelando que seu Pai e nosso Pai não é o Deus que vem complicar nossa vida com cobranças, ritos, penitências, mortificações, leis que alimentam culpa... O Deus de Jesus é o “Deus da felicidade” e Ele quer que todos os seus filhos e filhas vivam intensamente a felicidade. Felicidade como integração interior, harmonia nas relações com os outros, sintonia com a criação e abertura filial a Deus.

Em grego, felicidade é “eudaimonia”. A ideia de “eudaimonia” é a de alguém que é impulsionado de dentro para fora. No latim, a expressão correspondente é “felicitas,atis”. Fertilidade e felicidade têm raízes comuns. Somos felizes quando somos fecundos. Não devemos nos afastar da noção de felicidade como fertilidade. O fértil é aquele que mantém a vida. É a marca da bio-proteção, da capacidade de gerar e defender a vida. Sem a possibilidade da felicidade, sem a proteção vital, sem o arremessar para adiante, a gente não se move (em hebraico, felicidade é “mahala”: andar para a frente). A felicidade é um sentimento descentrado, pois perfuma e transforma o ambiente, carregado de tristeza e morte.

É preciso recordar que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, caminho sem acidentes, trabalhos sem cansaço, relações sem decepções...

Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nos desafios, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter alegria com os aplausos, mas ter alegria no anonimato.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz não é uma conquista, mas uma atitude de quem sabe viajar para dentro de seu próprio ser e mobilizar seus recursos oblativos. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se ator da própria história.

Texto bíblicoLc 6,17.20-26

Na oração:

Repassar, sentindo e saboreando, o significado de cada uma das bem-aventuranças, deixando-as ressoar no coração e deixando que o próprio coração revele sua fome e sede de ser bem-aventurado.

- Diante da cultura do ódio que impera em nossa sociedade, como você reage? Você é canal de transmissão de mentiras, julgamentos, preconceitos... ou presença humanizadora, expandindo seus recursos bem-aventurados?

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O dom de tornar os outros melhores

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 5º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador do humano” (Lc 5,10)

 

O relato do evangelho deste domingo começa situando Jesus como um grande pregador-mestre, um guia capaz de congregar muitas pessoas para escutar a “palavra de Deus”. Sua liderança, no meio do povo, parece já em processo de consolidação.

Até esse momento, Jesus não tinha seguidores, mas somente ouvintes curiosos. Com este relato, Jesus mostra seu desejo de reunir em torno a si um grupo de cooperadores que prolonguem o movimento messiânico iniciado por Ele: movimento de vida, de novas relações, de esperança alvissareira...

Jesus, o homem integrado, sempre teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir ricas possibilidades, criatividades, inspirações... Seu modo de ser e viver revelou o “novo” presente nas profundezas do seu próprio coração: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...

Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Jesus despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas que ia encontrando, potencializando-o.

Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior. Jesus os desafiou a serem mais humanos: “Farei de vós pescadores do humano”.

“Pescar o humano” é des-velar (tirar o véu) o que é mais nobre e divino em cada pessoa; é ajudá-la a viver com sentido, com paixão, tornando-a melhor, mais humana.

Jesus, com sua presença inspiradora, revelou o dom de despertar e extrair o “melhor” no interior das pessoas: seus recursos, seus desejos nobres, seus sonhos ousados...  Sua sensibilidade “tocava” e mobilizava o que que havia de mais sagrado no interior do coração humano, alimentando uma nova esperança e abrindo um horizonte de sentido para todos.

Quando nos deixamos “tocar” por Deus naquilo que mais amamos, brotam os sentimentos oceânicos, a criatividade, o impulso para a comunhão, a integração e a abertura para com a realidade que nos cerca.

Também carregamos em nossa “memória agradecida” uma multidão de pessoas especiais às quais poderíamos dizer com ternura: “tu me fizeste melhor do que eu era..., porque acreditaste em mim de uma maneira que ninguém fazia, porque foste capaz de olhar em mim mais além daquilo que eu via, porque me ajudaste a avançar muito mais do que eu jamais poderia imaginar”.

Aqui também podemos contemplar cada uma destas presenças que nos curam, que nos impulsionam para o novo, que nos fazem mais criativos, que nos abrem um horizonte de sentido, enfim, que geram vida ao estilo de Jesus que passou pela vida tornando melhores as pessoas que encontrava.

Também hoje, Ele continua fazendo com que sejamos cada vez melhores, através de infinitas presenças de pessoas especiais. Sintamos e manifestemos gratidão por cada uma destas presenças inspiradoras em nossas vidas que nos fazem ir além de nós mesmos, nos acompanham, nos dão vida!

Assim como inúmeras pessoas nos tornaram melhores, também nós somos chamados a ser “presenças humanizadoras”, mobilizando a criatividade, a inspiração, a compaixão..., faíscas do divino no coração de cada um(a). Crescer em nosso verdadeiro ser é o melhor que podemos fazer pelos outros e pela criação inteira. A primeira e nobre missão de todo ser humano está dentro dele mesmo, nunca fora. Deus só quer que sejamos autênticos, ou seja, que sejamos o que devemos ser.

Há uma “profissão” (modo de viver, ofício) que é irrenunciável para todos que queremos ter uma existência plena. Podemos chamá-la “expert em humanidade”. Uma especialidade que todos deveríamos ir alimentando ao longo da vida. O “expert em humanidade” é aquele que revela uma sensibilidade para saber ler e vislumbrar o mais profundo e original nas pessoas com as quais compartilha a vida, seja no nível que for: família, amigos, companheiros de trabalho, ministérios, contatos ocasionais...; é aquele que sabe empatizar, escutar, compreender, alegrar; é aquele que está mais descentrado, atento ao que acontece com o outro; é aquele que sabe ajudar de mil maneiras, falando, calando ou servindo; é aquele que sabe estar com crianças, jovens ou idosos e ter uma palavra para cada um; é aquele que sabe fazer com que o outro se sinta único e importante; é aquele que ajuda a extrair o melhor do outro.

Esta “profissão” só se alcança com muita atenção, contemplação e encontro com o outro. Nossa inspiração é Jesus de Nazaré, um “expert em humanidade”; nele podemos contemplar como se exerce este ofício que, sem dúvida, é o mais importante de todos aqueles que a vida nos encarrega. Tudo isso tem a ver com a expressão “vinde comigo e farei de vós pescadores do humano”.

Uma chave importante para a compreensão do evangelho deste domingo está na expressão “remar mar adentro”. Jesus convida os discípulos a lançarem as redes de novo, mas não no mesmo lugar onde sempre

faziam, mas nas águas mais profundas. É muito importante esta indicação porque nos revela algo tão sensato e básico: se queremos obter resultados diferentes, não podemos fazer sempre o mesmo. É preciso ousar, criar, fazer diferente... A mudança de posição frente à vida já não é buscar no mesmo lugar, mas mudar de plano e conectar com as correntes mais profundas que nos trazem uma mensagem de “abundância”.

O olhar para a fonte daquilo que somos nos faz viver numa consciência de super-abundância e não de carência; uma super-abundância de sentido, de inspiração, de criatividade e não de vida “normótica” (normalidade doentia); uma super-abundância que nos situa no milagre de uma nova visão da nossa vida e das nossas relações. O seguimento de Jesus é uma experiência vital de abundância que mobiliza a partilhar, não o que nos sobra, mas o que somos em essência.

À luz do “remar mar adentro”, é preciso romper com o tradicional, quebrar estruturas, revolver consciências, mudar vidas... Isso exige decisão corajosa e iniciativa criadora para gerar outra história, outra maneira de viver, outra esperança...

O ser humano sempre é chamado a re-inventar-se, a aventurar-se por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...

Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.

Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. Há que ousar para não perecer. Há que aventurar-se e arriscar o primeiro passo. Há que peregrinar infatigavelmente e originar nova humanidade. Há que ser nômade seduzido por novos horizontes.

Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está.

Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado.

Ousar é buscar o novo.

A novidade do texto de Lucas está no fato de que Jesus pede a Pedro que volte a pescar em um mar mais profundo, mais distante da margem. Pedro e seus parceiros sempre trabalharam perto da costa; e Jesus os desafia a irem mais além, a serem mais ousados.

Este Pedro, o “aventado e ousado”, que vai pescar mais distante da margem com seus companheiros, é a imagem de uma Igreja que deve se aventurar e romper os moldes antigos, a missão já fixada, a repetição estéril... É evidente que há o risco de fracassar e de se afundar, mas se permanece na margem onde não há ondas, nem desafios... o fracasso já é garantido. Este é o Pedro da Igreja (cada um de nós) que deve encontrar, neste mar-mundo do nosso tempo, o impulso para uma nova criatividade.

Há muito trabalho a ser feito fora dos mares tranquilos das sacristias, que cheiram a mofo.

Texto bíblico: Lc 5,1-11

Na oração:

O ser humano é contraditório: pode avançar ou recuar, arriscar-se ou amoitar-se, aventurar-se ou acovardar-se, fazer a travessia ou acomodar-se...

- Qual a força predominante em você?

- O movimento humanizador”, iniciado por Jesus, causa impacto em seu interior, provocando a “travessia” do mar estreito do seu cotidiano para o vasto oceano a que Ele chama?

- Sua maneira rotineira de “pescar” (de viver, de sentir, de amar...) sente-se desafiada a uma maior amplitude diante da proposta que Jesus apresenta?

- Sua presença faz a diferença, despertando o “melhor” nas pessoas com quem convive?

- Suas atitudes são capazes de despertar o que é “mais humano” nos outros, tornando-os melhores?