Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Jesus viu uma numerosa multidão e
teve compaixão (...)começou a ensinar-lhes muitas coisas”
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus
os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou
para descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar
distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento
dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência
permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem
para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz
o texto de Marcos que saíram “de todos os
povoados”
e foram “correndo”, com pressa, com expectativa
e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as
entranhas, porque “andava como
ovelhas sem pastor”,
com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo
difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes
longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se
darem conta.
Jesus não só transmite um
ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros,
segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu
inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal
maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria
história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus revela-se,
antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas
as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de
si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em
rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana,
onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo ensinamento
de Jesus tem a marca da “compaixão”.
Um dos
sintomas de desumanização, que está
revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar
com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns
frente aos outros..., ou seja, incapacitar-nos para a compaixão.
A compaixão
está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro
diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade
de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto social onde
somos ameaçados por uma forma sutil de “a-patia”. Aqui a compaixão
se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em “sem-paixão”.
Com isso, nossas relações se desumanizam.
Tal “sem-compaixão” é uma enfermidade
social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo
que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com
quem faz parte do seu “gueto”.
Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia
nossa capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o
coração frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder
“não há nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem
a alteridade. Qualquer implicação com o outro implica suspeita,
frieza, distancia, preconceito...
Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos
indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão
rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem
pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A “privatização da
vida”, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância
midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa
paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e
escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos
uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha
vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença
(transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos,
modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos
produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc...
Quem olha para as manchetes de
notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que
a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais
nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se “pobres”
de atitudes compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo;
Jesus não passa “friamente” por nada. Ele não passa
indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte..., não passa
friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está sempre engajado: Ele é
o homem da prontidão de sentimentos, que deixa transparecer uma profunda
sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e miséria.
E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua
empatia e simpatia extravasam-se em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu
coração.
Os Evangelhos destacam os profundos
sentimentos de humanidade, compaixão, empatia,
ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus.
Muitas vezes é mencionado que o
Senhor foi “comovido até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”;
trata-se de sentimento eminentemente
humano.
Até podemos fazer referência origem
etimológica da palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o
apelo ao vocábulo latino “cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo.
Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às
disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão”
e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida,
envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao
aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com
expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou
impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o
anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é
preciso ativar a compaixão, que
começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juizos,
ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas
preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar
logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas
histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão
permite que do coração humano brote a “ex-centricidade”.
A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação do “amor próprio, querer e interesse”; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável auto-afirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades ex-cêntricas, livres do domínio despótico do “ego”.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração:
Ser compassivo implica buscar e ativar uma
disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos
familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as
pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria,
dor e exclusão.
- Compaixão ou indiferença? Eis o
desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?
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