Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
Áudio do texto: https://open.spotify.com/episode/5s9atuecNultbnDXPC5UEc?si=o-7pwTdASf-U5213rQN3qg
“Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27)
Depois do chamado dos primeiros seguidores de
Jesus, junto ao lago, o evangelho deste domingo nos leva com eles à sinagoga,
que era a escola e casa de oração dos judeus.
Fazendo com que falem mais os fatos que as
palavras, Marcos nos quer ajudar a ver, como através da atuação de Jesus, o
Reino de Deus se faz presente.
Não por casualidade, o evangelista situa a cura
do homem possuído por “espíritos maus” em Cafarnaum (centro da atividade de
Jesus), na sinagoga (espaço da religião), no sábado (dia de culto e oração) e
entre mestres da lei, que tinham poder sobre a assembleia e sobre a
interpretação da Palavra. Mas, aqueles que tinham “poder” não curaram o homem
de seu espírito imundo.
“Espírito
mau” significa tudo o que bloqueia a
relação com Deus e a comunhão com os outros; representa o que há de mais
contrário a Deus e a possibilidade de uma convivência sadia com aqueles que o
rodeavam; é o símbolo de tudo aquilo que no ser humano está em radical oposição
ao Pai.
A presença de Jesus desata,
liberta, purifica o ser humano que se encontrava oprimido dentro de uma
sinagoga. Frente à exclusão nesse espaço comunitário, Jesus profere sua palavra
que cura e liberta o enfermo/oprimido de sua situação desumanizadora.
O relato deste domingo não fala da enfermidade que o oprimido padecia. Diz simplesmente que era “impuro”, alguém que era considerado “manchado”, dominado por um espírito anti-humano e que Jesus desmascara, para que pudesse falar e agir com autonomia.
Jesus, na sinagoga, não discute sobre Deus de
forma abstrata; não propõe teorias sobre pureza mais intensa, sobre ritos e
alimentos; também não oferece uma doutrina sapiencial de tipo moralista; não apresenta
uma doutrina melhor sobre leis ou normas de conduta; não é o rabino mais sábio,
nem o escriba mais agudo. Tudo isso é secundário para Marcos. O ensinamento
novo de Jesus se identifica com sua autoridade humana, com sua
capacidade de destravar a vida dos enfermos na sinagoga.
Por isso, seu “ensinar com
autoridade era novo”; não era o ensino que repetia o que outros diziam ou aquilo
que se lê nos livros; não era um ensinamento aprendido na escola de um
professor especializado.
Tratava-se de um ensinar novo,
diferente dos mestres da lei; a verdadeira autoridade de Jesus residia em sua
pessoa, em sua vida. Seus pensamentos eram expressão de sua vida, era expressão
do que fazia; e o que fazia era expressão de seu pensamento.
Seu ensinar é novo porque Jesus não
é o “profissional das ideias”, mas o “profissional da vida”, o profissional do
coração, o profissional que ensina vida, o profissional que sara os corações.
Nosso contexto, social e religioso, também precisa de “profissionais” que nos deem razões para viver, nos deem razões para a esperança, para amar, nos deem razões para aprender a sermos pessoas, livres e criativas; precisamos de “profissionais” que nos mobilizem a viver uma vida plena, sem esses “maus espíritos” que nos atormentam cada dia e nos fazem viver uma vida medíocre.
Jesus fala e atua com “autoridade”; mas sua
autoridade é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem
outra fonte. Está cheia do Espírito vivificador de Deus.
Jesus não tem “autoridade do poder”, mas o “poder
de sua autoridade moral”; não tem a autoridade da força que domina, se impõe e
arrasta. Jesus tem o poder da autoridade que brota de seu interior, de seus
valores, de sua liberdade. Autoridade que o des-centra e o mobiliza a ser
presença provocativa frente a todo poder que exclui. Não é o mesmo “poder”
e “autoridade”.
O poder é exterior, vem de fora. Uma pessoa tem poder porque lhe foi
dado nas urnas, porque foi instituído a partir de “fora” em uma presidência, em
uma instituição, em uma empresa... Pode-se ter, pois, poder: títulos, cargos,
prestígio... Mas poder não confere autoridade.
A autoridade, pelo contrário, é interna à pessoa, e não consiste em
ter títulos, nomeações; é a qualidade daquelas pessoas que tem o carisma de
suportar as cargas e aliviar o sofrimento dos outros; pessoas que deixam
emergir de seu interior a bondade, o alívio, a competência, a liderança
solidária...
A pessoa pode ter poder, e poder
legítimo, mas pode ser que não tenha a mínima autoridade. É muito perigosa uma
pessoa que atua com poder, mas sem autoridade.
Pelo contrário, há pessoa que não
tem poder na sociedade ou na igreja, mas tem autoridade. Jesus mesmo não tinha
nenhum poder no templo, na lei, diante dos escribas, fariseus, sacerdotes...
Mas Jesus tinha autoridade: falava e atuava com autoridade.
O poder não torna as pessoas boas, nem quem ostenta o poder e nem sobre quem recai o poder.
Sabemos e sentimos que o poder exerce um grande atrativo; ele é sedutor: “quem é que não foi
picado pela mosca azul do poder?” É a paixão mais forte do ser humano; este
pode até “perder a cabeça” por umas migalhas de poder político, econômico,
religioso ou mesmo na família, nas empresas, etc.
Atrás de toda busca de poder, ou das atitudes de
poder, se esconde uma ansiedade de domínio, de prepotência, de ego inflado; ao
mesmo tempo, uma pessoa fanática por poder revela um intenso medo, uma angústia
profunda de perder prestígio, um pânico diante da possibilidade de ficar sem pedestal,
sem cátedra, sem a atenção dos outros...
Nestes casos, o poder acaba se descambando
para o fundamentalismo fanático. Uma pessoa fanática é alguém cuja mente é
rígida, esclerosada, bloqueada pelo medo e pânico visceral frente à verdade,
das pessoas e dos fatos. Por isso, o fanatismo se identifica com o pensamento
dogmático mais intransigente.
Em alguns cargos políticos e em
algumas posições religiosas se dá uma atitude de poder despótico, agressivo,
violento, porque o poder fanático não é capaz de pensar, de dialogar, somente agride.
A autoridade faz bem; o poder se impõe; a autoridade acompanha. O poder dispõe, a autoridade liberta. O poder crucifica, a autoridade está crucificada ou ao pé da cruz.
Só a autoridade traz a paz, ilumina e faz crescer;
o poder, pelo contrário,
gera ansiedade, medo e faz o outro se sentir inferior. Quem tem autoridade,
inspira e motiva as outras pessoas a fazerem as coisas com boa vontade e ânimo;
o poder, no entanto, as
obriga, por causa de sua posição de força.
Por seu caráter impositivo, o poder deteriora
relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da
suspeita, da intriga, da violência. A autoridade, por sua vez, não
tem nenhuma relação direta com a obediência: repousa, isto sim, sobre o
reconhecimento da riqueza e da possibilidade do outro. Ela anima, sustenta,
desafia e toca aquilo que cada um tem de melhor em seu interior.
A cultura do poder suga o
“espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando
seus laços de convivência. Quem tem poder não age, dá ordens; jamais suja as
próprias mãos; é impune e não deixa impressões digitais.
O poder não constrói comunidade, pois a pessoa se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na
oração:
Todos
nós somos habitados por dois dinamismos internos: um, que nos impulsiona para o
bem, a verdade, a comunhão...nos descentra; outro, que nos fecha, nos faz
auto-referentes, prepotentes, violentos...
- Qual dos dois dinamismos se faz visível no seu agir e falar cotidianos?