“Maria sentou-se aos pés do Senhor, e
escutava sua palavra” (Lc 10,39)
Neste domingo, a liturgia nos desloca até Betânia, a viver Betânia, a ser
Betânia, lugar de acolhida e hospitalidade; ali somos convidados a entrar em
casa de Marta e Maria, junto com Jesus, para deixar-nos impactar por tudo o que
acontece nesse ambiente tão familiar e humano.
Betania, “casa do pão”, simboliza um lugar de
nutrientes, de alimento em sentido amplo: afeto, distensão, sensibilidade,
cuidados, atenção, presença e ternura.
Para Jesus, Betânia é um lugar de intimidade e de
descobertas; busca acolhida na casa das duas irmãs, nesse anseio tão humano de
companhia, hospitalidade e contato. É frente às suas amigas de Betânia que
Jesus deixa transparecer, de um modo mais explícito, a dimensão feminina de sua
vida.
Quando Jesus passa e se permite o encontro, as
pessoas são transformadas. Ao hospedar-se na casa de Marta e Maria surge a
novidade: uma mulher senta-se aos pés do mestre em horário dos trabalhos domésticos.
As palavras de Jesus embelezam o coração mediante os ouvidos atentos de Maria.
Ela bebe do poço profundo do “novo” ensinamento. A Jesus também não lhe
interessa outra coisa que não seja formar mais uma discípula.
À luz deste relato, abre-se uma
nova perspectiva para a mulher. Maria, é acolhida por Jesus como interlocutora
privilegiada. Talvez seja o relato mais subversivo do evangelho. “Sentada aos pés de Jesus, escutava sua palavra”. Maria está ali como discípula. A
parte essencial, que não lhe será tirada, é a marca dessa experiência aos pés
de Jesus.
Isto desloca toda uma concepção machista
da época que não permitia às mulheres serem discípulas de um mestre. Mas, para
Jesus, a mulher também precisa desenvolver sua interioridade, precisa ativar
seus recursos internos para o seu enriquecimento como pessoa humana. Quando se
elimina a gratuidade do encontro e da acolhida, a vida pode perder seu sabor e
seu sentido.
Na atitude de Maria, Jesus convida
todas as mulheres a desenvolver seus valores espirituais; Maria, por sua vez,
oferece a ocasião para Jesus des-velar tudo isso.
Se queremos compreender mais profundamente o
verdadeiro sentido do texto deste domingo, não devemos esquecer o contexto do
evangelho de Lucas. Situado dentro da viagem a Jerusalém, este relato procura
revelar o perfil daqueles(as) que querem seguir Jesus. Durante essa subida, Ele
vai formando os(as) seus(suas) discípulos(as).
Lucas é o único que relata este episódio em
Betânia e não é casualidade que, uma vez mais, se sinta interessado em destacar
a importância das mulheres na vida pública de Jesus.
Não tem nenhum sentido extrair deste relato uma
distinção ou uma oposição entre a vida
contemplativa e a vida ativa; tampouco
deixa transparecer a pretendida superioridade de uma sobre outra.
Não é correto interpretar este evangelho como
proclamação de dois tipos de cristãos: uns que se dedicam à vida ativa e outros
à contemplativa.
Poderíamos dizer que esta imagem caseira do
encontro amistoso entre Jesus e as irmãs revela uma atitude sensata na vida, de
acordo com a tradição sapiencial: “Tudo tem sem
momento, e cada coisa seu tempo”
(Ecle 3,1). Jesus não censura Marta por trabalhar; o que Ele censura é a sua inquietação, a sua
preocupação, o fato de andar agitada no seu “tarefismo”, “com um olhar
atravessado” para sua irmã, a quem se queixa e clama uma intervenção de Jesus.
Jesus chamará Marta por duas vezes, como Moisés
foi chamado por Deus diante da sarça ardente, porque o lugar que ela pisa, sua
própria casa, é sagrado e há nela um fogo que não se consome. Ele a chama para
que não se identifique com sua função, nem com seus afazeres, mas que vá
progredindo em direção ao seu “eu profundo”, que saia da dinâmica das
comparações e se atreva a ser “Marta completa”.
O que Jesus censura em Marta é,
sobretudo, o seu estrabismo. Dois olhos que olham, cada um para uma direção
diferente. No entanto, “uma única coisa
é necessária”. Com
efeito, Marta tenta olhar, ao mesmo
tempo, para Jesus e para a irmã; dessa forma, não consegue enxergar o único Bem-Amado.
Compara-se com a irmã, está
possuída pelo que os antigos chamavam o “demônio da comparação”.
Trata-se de uma tendência, presente
em todos nós, de nos comparar, nos avaliar, viver incessantemente
equiparando-nos aos outros. Esse “demônio”
é sempre atual e acaba por envenenar múltiplas relações.
Quando comparamos, passamos ao
largo do único necessário. A comparação faz com que nós não
percebamos “a
única coisa necessária”.
A “melhor
parte” não é somente a contemplação, é não ver Je-
sus. A melhor parte é olhar em direção a Ele, é termos o desejo orientado para o Senhor.
E se nosso desejo é orientado para o Senhor, nós podemos ter momentos de contemplação e momentos de ação.
Não são momentos opostos. A não-dualidade entre ação e contemplação,
trabalho e repouso, encontra-se nessa unificação ou nesse despertar do olhar em
direção ao Único.
A qualidade da ação e da contemplação
depende da orientação do coração e da inteligência em direção Àquele que mantém
unidas todas as coisas.
A cena de
Betânia nos está dizendo: todos somos, ao mesmo tempo, Marta e Maria. Todos nos
sentimos, com frequência, ansiosos, angustiados, dispersos e tentados a fazer
da eficácia nossa principal preocupação. Mas, vivemos também a experiência do
sossego e da unificação, que nos faz ordenar nossas prioridades e viver
centrados no essencial. E, uma vez mais, somos convidados a saborear a Palavra
que, no mais profundo de nós mesmos, se converte em uma fonte de assombro e de
prazer e nos re-envia a um serviço mais generoso e mais livre.
Marta representa um lado nosso que calcula, que
mede e que compara. É preciso reencontrar Marta
em união com Maria. Não é nada fácil manter o
equilíbrio, integrando-as. Marta e Maria são como os dois olhos de um
olhar, ou as duas faces do mesmo
rosto. Os dois olhando em direção ao
Único. Significa unir em nós, Marta
e Maria, a contemplação e a ação, o silêncio e a palavra.
A “melhor parte” está por
todo lado: é o Senhor que deve ser acolhido em nossa ação e em nossa contemplação,
no trabalho e no descanso.
Ser humano é ser capaz de ação e ser capaz de contemplação.
Mas o único necessário nesta ação ou nesta contemplação, no trabalho ou
no repouso, é amar o Senhor.
Em cada momento devemos buscar
alcançar nosso “eu profundo” – exatamente
onde jorra a vida – e formar uma só coisa com essa Vida que atua incessantemente no nosso interior. Estar centrado na Fonte: eis a melhor parte.
Texto bíblico: Lc
10,38-42
Na
oração:
Entre
em sua “Betânia interior”: verifique se ela é lugar de integração, unidade e
pacificação. Ou, pelo contrário, espaço de divisão, ruídos, ansiedade e
preocupação.
-
“Betânia interior” se projeta na “Betânia exterior”: peça a Deus a graça
de poder transformar a sua casa em nova Betânia: casa da acolhida, da
amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...
Nenhum comentário:
Postar um comentário