“...e naquela noite não apanharam
nada” (Jo
21,3)
Estamos desfrutando do tempo Pascal no qual tudo na vida dos cristãos (a liturgia, os
símbolos, as leituras da Palavra de Deus, as flores, o branco litúrgico, e
inclusive, em algumas partes do mundo, o tempo meteorológico) nos fala da
vitória da vida. É, sem dúvida, um tempo precioso no qual ressoa o Aleluia da noite de Páscoa e se
prolonga na liturgia, na vida e nos corações.
O Evangelho deste domingo nos
conduz até à “praia pascal” da Galileia. Depois dos terríveis capítulos
anteriores (gritos, sangue, cruz, violência, tortura, morte...), os apóstolos
se encontram de novo na Galileia, numa paisagem quase idílica, dedicados outra
vez à pesca, como se nada tivesse acontecido. O texto está cheio de
simbolismos, de significados insinuados e de sugestões, mas basta recordar que
tudo acontece no alvorecer, nessa hora tão charmosa na qual vemos ainda com
dificuldade.
O encontro com o Ressuscitado nas praias da Galileia nos motiva a buscar um novo sentido e uma nova
inspiração para o cotidiano de nossas vidas. De fato, nem todos os dias são
iluminados pelos êxitos; tampouco as noites. Há dias que anoitecem e há noites
que amanhecem em meio a muitos fracassos. Nem todas as manhãs nossos pescadores
chegam ao porto com suas barcas carregadas de peixes.
A vida tem seus êxitos e seus triunfos. Mas também suas derrotas e
fracassos. É preciso saber acolher os triunfos sem que a fumaça do ego cubra
nosso coração. E é preciso saber assumir a desilusão do fracasso, sem por isso
sentir-nos derrotados. Os triunfos podem alimentar ilusões; os fracassos põem à
prova nossa resistência e nossa constância.
Os discípulos, naquela noite não
tinham pescado nada, além do cansaço e do frio do lago. Mas não tinham perdido
a esperança. A pesca tinha sido um fracasso e, a partir da margem, um estranho
personagem lhes sugere que lançassem as redes do outro lado do barco, como se
eles não soubessem onde deveriam lançá-las; surpreendentemente eles têm grande
êxito na pescaria. Nesse momento, o discípulo amado diz a Pedro: “É o Senhor!”
Adiantou-se a todos sem mover-se do
lugar; olhou para frente sem soltar a ferramenta de trabalho; não gritou sua
descoberta; simplesmente sussurrou, mas entre admiração e comoção: “É o Senhor!”
Voltou a sentir a água caindo sobre
seus pés e o pulsar de um coração na noite do Serviço e do Amor; suas mãos não
deixaram a rede de lado, mas seu olhar foi mais além: “É o Senhor!”
E, como sempre, Jesus se encanta
com os encontros em torno ao fogo e à refeição. Ele se manifesta nas coisas
simples da vida. Não foi preciso palavras. Um coro de silêncios interiores
proclamava: “É o
Senhor!”, enquanto se espalhava no ar um
agradável odor a peixe recém assado.
Podemos
considerar que a exclamação do discípulo amado – “É o Senhor”! –
mostra o que significa ser contemplativo.
O verdadeiro contemplativo pascal olha ao seu redor, à realidade mesma, à vida
em sua contradição, com suas obscuridades e suas claridades, com suas grandezas
e suas misérias, com seus êxitos e seus fracassos..., e descobre nela os sinais
pequenos, frágeis, vulneráveis e, às vezes, aparentemente contraditórios da
presença do Ressuscitado em nossas vidas.
Talvez seja este um dos desafios mais
importantes da vida cristã neste nosso mundo tão cheio de mensagens, de bombardeio
de notícias, de imediatismo e rapidez, de encontros e desencontros.
Nós, seguidores(as) do
Ressuscitado neste século XXI, do mundo digital, da pós-modernidade ou da arqui-pós-modernidade,
da “cultura líquida” e dos “não-lugares”, deste mundo complexo e fascinante no
qual nos toca viver e ao qual devemos amar, podemos ser esses humildes contemplativos
que, em meio aos afazeres cotidianos, sussurram com emoção –
“É o Senhor!” – e
apontam para o Ressuscitado, presente nas penumbras da vida.
Essa é talvez a missão central da
nossa vida cristã hoje: captar com emoção a luz que abre passagem entre as
folhas da densa floresta, contemplá-la com gratuidade, indicá-la com humildade
e anunciá-la com amor. E, mais ainda, devemos nos sentir chamados a deixar
transparecer a luz da ressurreição na própria realidade interior, para poder
ser presença iluminante no contexto tão obscuro no qual vivemos.
É a vida
inteira que deve ser iluminada pelo acontecimento pascal. Viver, para o cristão,
é acolher sua vida, com suas luzes e sombras, à luz do Ressuscitado que, embora
não o veja de maneira transparente, continua se fazendo presente nas praias da
nossa existência.
Não há
obscuridade que não possa ser iluminada; não há situações, por mais difíceis
que sejam, que não possam ser revertidas pela presença d’Aquele que está no
meio de nós.
Gastamos energia em dissimular nossas falhas e fracassos quando, afinal,
é pela sua aceitação que a porta poderá abrir-se para esse Outro que, por sua vez, nos ama incondicionalmente. No segredo do coração podemos pressentir que estes fracassos, estas
dificuldades são, talvez, a nossa maior sorte. Porque através deles nos
libertamos de nossas ilusões sobre nós mesmos. Eles tendem a nos deprimir, mas
também podem ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes. Acolher o fracasso
é retirar nossas couraças, revelar-nos abertos, tolerantes e compassivos.
Segundo um místico “felizmente
Deus criou falhas em nós; caso contrário, não vejo por onde Ele poderia entrar
em nossa vida!”.
Nossa
vivência da fé pascal também nos revela que Deus tem mais facilidade de entrar
na nossa vida pela porta dos fracassos, das feridas, das crises... Aqui é onde
nos sentimos mais desarmados, mais abertos e mais sensíveis à acolhida do Deus
surpreendente que sempre vem ao nosso encontro. Por outro lado, Deus encontra
muito mais resistência de se fazer presente em nossa vida quando nos centramos
na busca da perfeição, das virtudes... Aqui estamos “formatados”, fechados em
nossa autossuficiência.
Através
dos fracassos nos aproximamos de nosso ser essencial e da fonte de recursos que
transforma estes fracassos em caminhos de realização.
O Pe. Adolfo Nicolás (ex-superior geral dos Jesuítas)
afirmou certa vez: “é preciso
celebrar nossos
fracassos”. Causa estranheza ao
ouvir tal afirmação, pois vivemos em um mundo onde somente os êxitos e vitórias
são celebrados. Mas, o certo é que, quando compartilhamos e acolhemos nossos
fracassos, derrotas e quedas, surge uma corrente de comunhão especial, nos
sentimos mais autênticos e vivemos tais situações duras como parte de uma vida
que, ao mesmo tempo, é difícil e preciosa, que desafia e recompensa, que
golpeia e abraça. Assim, podemos crescer na consciência de que esses momentos
também são constitutivos de nossa identidade; eles se revelam como ocasião
privilegiada para ativar outros recursos e possibilidades que certamente não
brotariam em tempos tranquilos.
Texto bíblico:
Jo 21,1-19
Na
oração:
Percorrendo
o capítulo 21 do Evangelho de João captamos a profundidade da contemplação
inserida na vida ativa.
-
Não coloquemos fronteiras ao Espírito que irá moldando nossa visão e nossa
escuta e, como João, nos fará proclamar: “É o Senhor!”, sem soltar a ferramenta, nem o
computador, nem o carro, nem o bisturi, nem o livro, nem o pincel, nem o
microfone, nem a vassoura...
Nenhum comentário:
Postar um comentário