“As
palavras sempre rompem alguma coisa” (M. Yourcenar)
“As palavras que vos falei são
espírito e vida”
(Jo 6,63)
Estamos no final do cap. 6 do evangelho de João.
Chega a hora do desenlace; a alternativa é clara: abrir-se à verdadeira Vida ou
permanecer enredados numa vida atrofiada. Não há neutralidade; no
mundo de hoje “tomam-se mais
decisões por não tomá-las (que já é uma decisão) do que por tomá-las”,
por acomodação, por medo de mudança, por inércia, por deixar
que as coisas sigam seu curso...
Quê resultado teve a
oferta de Jesus? Suas palavras
entraram em choque com a mentalidade vigente; era inadmissível que uma pessoa
pudesse comunicar uma mensagem tão exigente e tão libertadora. Suas palavras
romperam visões distorcidas, mentalidades fechadas, modos arcaicos de viver,
conservadorismo...
Também hoje corremos o risco de
“adocicar” as palavras de Jesus para que não firam nossos pré-juizos. Com
frequência, queremos transformar Suas Palavras
de Vida em um conjunto de ritos, doutrinas, normas... para serem
manipuladas segundo nossos critérios e nosso modo de viver. Mas, a Palavra de
Jesus nos desestabiliza, nos desequilibra e questiona a normalidade doentia de
nossa vida cotidiana. Às vezes, como os discípulos, também dizemos: “Esta palavra
é dura. Quem consegue escutá-la?”
No entanto, se queremos seguir Jesus,
a única resposta possível deve ser um “sim” profundo, um “amém” decidido e
generoso. Desejamos segui-lo e queremos ser como Ele; queremos abrir nossa vida
à Palavra de Vida que nos sustenta e nos inspira; sentimos o forte impulso de
caminhar com o Nazareno pela difícil e tortuosa estrada do povo de Deus na
história.
A “palavra
dura” de Jesus, no evangelho deste domingo, deve nos inspirar a uma
tomada de consciência do lugar e do valor das palavras em nosso cotidiano.
Quantas palavras temos dito ou escrito hoje?
Temos consciência do peso, da força que elas carregam?
Vivemos saturados de palavras; elas nos assaltam
através das canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma
conversações cotidianas. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos...
E de tanto usá-las, talvez elas acabem perdendo o
sentido. Começamos a considerá-las de um modo tão natural que não nos damos
conta do quanto elas significam. Então falamos, mas não vivemos. Palavreado
crônico, desconectado da vida.
O desenlace do cap. 6 de S. João torna-se
uma ocasião privilegiada de calar, de silenciar o palavreado, de deixar de
abusar das expressões gastas... para retomar a palavra sincera, para recordar
que a vida não é uma brincadeira, para que, quando voltemos a pronunciar, com
delicadeza, palavras carregadas de sentido e de vida, possamos nos fazer
conscientes da beleza, profundidade, promessa e compromisso que está por detrás
de cada uma delas. Nesse sentido, para crer em Jesus é preciso ter fome: fome
de vida e de justiça, que não fica satisfeita com palavras vãs, ocas e
desprovidas de sentido.
Professamos que Jesus é a Palavra de Deus, uma Palavra sem a
marca da falsidade ou do vazio, uma Palavra viva e vivida; Palavra autêntica,
de amor e paixão pela humanidade.
Pois, através da identificação com
Jesus, também nós podemos ser palavra
do mesmo Deus neste mundo. Uma palavra de amor, de sustento, de presença
solidária... E eu, que palavra sou?
Sabemos que a palavra é uma das realidades humanas mais profundas: elas podem
embalar ou golpear, ferir ou acariciar e curar. Sinceras ou falsas, pensadas ou
espontâneas... são um de nossos maiores tesouros. Dizemos, escrevemos, lemos e
compartilhamos palavras carregadas de vida ou de morte.
A palavra, escrita ou falada, é a
expressão mais perfeita de nosso pensamento, revela-nos ao mundo exterior e é
traço de união de nossos recíprocos relacionamentos.
A palavra, no dizer de um pensador, é uma
poderosa soberana que realiza feitos admiráveis. Pode expulsar o temor,
suprimir a tristeza, infundir alegria, dilatar a compaixão. A palavra é fundamento de todo relacionamento
humano. Serve para comunicar o que queremos, expressar sentimentos, argumentar,
despertar... O mutismo e a negação da palavra constituem terras de desolação. Aprendemos com as
palavras emprestadas de outros ou, quem sabe, também nós chegamos a dizer algo
que fez a diferença para alguém.
Falamos, e na fala-escuta, nós nos encontramos e
revelamos nossa identidade.
A palavra é meio divino para o encontro com todo o humano, e é sinal
humano para acariciar e sonhar o divino. A palavra é lugar de encontro, de
compromisso, de descanso, de ajuda, de luta, de consolo e de silêncio. Na
palavra podemos chegar a ser tudo o que somos, ou podemos nos evaporar como o
alento.
Melhor falar com palavras que
estendem pontes, encurtam distâncias e entrelaçam vidas. Melhor falar a partir
do carinho, da ternura e do amor, aprendendo a reconhecer tanta bondade ao
nosso entorno.
Com as palavras podemos sacudir as
consciências, animar, levantar, entusiasmar, despertar desejos de ar-
riscar-nos a viver a fundo; ou
podemos desanimar, atrofiar, destruir, seduzir para fazer da vida um
acontecimento trivial e sem sentido. É melhor calar aquilo que levanta muros e
gera desconfiança e fraturas; é melhor calar o que envenena os sonhos e atrofia
as vidas.
“As palavras que vos falei são Espírito e são
vida”
(Jo 6,63)
Para nós cristãos, trata-se de algo definitivo: a
Palavra
se fez carne. E compartilhou nossos caminhos, sentou-se em nossas mesas
para revelar-se, para dar-se a conhecer, para despertar vida... Jesus foi o
homem que movia com suas palavras vivas. É no
encontro com a Palavra encarnada que
brotam em nós palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido.
As palavras nos tocam e nos constituem.
Fora do
percurso da palavra encarnada, vivemos
intoxicados de palavras, ou seja, um amontoado de palavras mortas, sem carne,
sem entranha, sem verdade, modelando seres adoecidos e desencarnados.
A palavra tem um peso, porque sua
ressonância permanece. Em tempos de “sociedade líquida”, também nossa palavra
pode escorrer e evaporar-se.
Hoje, muita gente prefere Snapchat
a WhatsApp ou outras redes sociais porque o conteúdo se evapora em poucos
minutos. É a volatilidade das palavras que desemboca na volatilidade da
comunicação e da relação. Por isso, precisamos de um novo Pentecostes, ser
penetrados pelo Espírito que nos leve a nos entender, apesar de falar línguas
diferentes.
É curioso: o evangelho diz com palavras muito
simples e cotidianas as coisas mais profundas. Nós, com palavras complicadas e
com jargões, que só os iniciados entendem, ou não dizemos nada significativo ou
cobrimos o fato de não ter nada que dizer. No
entanto, em nossa cotidianidade, são as simples palavras que nos ajudam a
assumir os desafios da nossa existência. Não é que as outras grandes palavras
sobrem. Mas é que essas palavras pequenas e simples são as que nos fazem sentir
e saber-nos em caminho de Evangelho, de Reino de Deus.
Que nossas palavras sejam sempre
vivas! ...e a serviço da vida!
Texto bíblico:
Jo
6,60-69
Na oração:
As
palavras, para que tenham
sentido e função, para
que não se tornem falsas nem dolorosas, deveriam passar pelo filtro da mente e
do coração. Seguindo o conselho de S. Agostinho, as palavras deveriam antes
passar pela lima que pela língua, para que cheguem à boca polidas pela
inteligência e pelo amor.
-
Considere sua história de vida e tente recolher delas as palavras que,
espalhadas no chão de sua existência,
foram criadoras de possibilidades e abertura sem limites.
-
Quê palavras estão em excesso em seu falar? Quê seria melhor calar? Em quê seu
falar é bem-dizer? Em quê circunstâncias da vida suas palavras são carícia,
bálsamo, consolo?