quinta-feira, 31 de maio de 2018

CORPUS CHRISTI: comunhão com Cristo, comunhão com o universo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.

“Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo” (Mc 14,22)

Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “ a carne de Cristo”. Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os corpos desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, por todos os lados. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco)
É esse o sentido que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus.
Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação.
Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.

“Corpus Christi” também nos motiva a perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa corporalidade?
Jesus não compactuou com a visão dualista do ser humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus, revelação do Reino, história de salvação...
Jesus escandalizou a muitos proclamando que o “puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas...; a “pureza” está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta, invejoso ou violento...
Jesus levou muito a sério a questão do corpo, o seu e o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres, algumas delas malvistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração... Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar...

Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que suas palavras (“isto é o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão) constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a verdade central do Evangelho.
Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos... Não são necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festo do Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus fez.
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza.
Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo.
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.

O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de

Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.
O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide...
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do próprio corpo, com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus, com seu Espírito, anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.

Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus revela seu rosto compassivo.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega... Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.

Texto bíblico: Mc. 14,12-16.22-26

Corpo de Cristo
Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo… Corpo nosso.       (José María Olaizola, SJ)

 “Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.

sábado, 26 de maio de 2018

Trindade: “Deus é plural”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Santíssima Trindade.


“...batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)

A Igreja celebra, neste domingo, a Festa da Trindade, cume e compêndio de todas as festas do ano: do Deus que é Pai, é Filho e é Espírito.
Assim, a festa de hoje vem plenificar o tempo pascal, como uma espécie de “síntese”. Síntese, não intelectual, mas “misterial”, ou seja, celebração de nossa participação no fluxo amoroso das pessoas divinas; pois a SS.  Trindade não é uma questão especulativa, é, sobretudo, uma experiência de um Deus amoroso.
A liturgia nos convoca a viver a experiência do Deus “comunhão de Pessoas”; para isso, ela nos convida a fazer uma viagem ao interior de Deus, como vida de amor que se revela na história da humanidade, vida entendida como Pai, Filho e Espírito Santo.
A imensa maioria dos cristãos não sabe que, ao adorar a Deus como Trindade, está confessando que Deus, em sua intimidade mais profunda, é só amor, acolhida, ternura, misericórdia.
Essa viagem ao coração da Trindade culmina na grande comunhão humana, pois o Deus Pai, Filho e Espírito integra no amor todos os povos da terra. Dessa forma, a viagem ao interior de Deus se converte em movimento ao exterior, no encontro expansivo com todos os homens e mulheres.
Quanto mais mergulhemos em Deus, comunidade de Amor, mais poderemos expandir-nos em solidarieda-de, amor e justiça para com todas as pessoas, porque o interior de Deus é princípio de reconciliação e unidade (na diversidade) de todos os povos e raças do mundo.

Foi-nos dito que o dogma da Trindade é o mais importante de nossa fé católica; no entanto, a imensa maioria dos cristãos não consegue compreender o que ele quer dizer. Com a Trindade, nós cristãos não queremos “multiplicar” Deus. O que queremos é expressar a experiência singular de que Deus é comunhão e não solidão. “No princípio está a comunhão dos TRÊS e não a solidão do UM” (L. Boff).
Aproximar-nos do Deus de Jesus é descobrir a Trindade. E em cada um de nós a Trindade deixa-se refletir. Nossa vida deveria ser um espelho que em todo momento refletisse o mistério da Trindade. O grande ensinamento da Trindade é que só vivemos, se convivemos.
Viver a experiência do Deus Trino implica saber com-viver; fomos feitos para o encontro e a comunicação. Estamos, portanto, falando de uma única realidade que é relação.
Deus-Trindade é a relacionalidade por excelência; Deus só existe como ser em relação; Deus é só relação, porque Deus é so amor. “No princípio está a relação” (G. Bachelard).
E sendo Deus essencialmente relação, não poderia permanecer fechado n’Ele mesmo;  num gesto de pura gratuidade,  essa relação se manifesta como transbordamento de vida, chamando toda a Criação à existência   e convidando a  humunidade a entrar no fluxo dessa relação trinitária.

Mas, para nos aproximar do Deus comunhão de Pessoas, temos de superar o ídolo ao qual nos apegamos. Sim, o “falso deus” identificado com um ser poderoso que se manifesta como um déspota, um tirano destruidor, um ditador arbitrário; um ser onipotente que ameaça nossa pequena e limitada liberdade. É muito difícil abandonar-nos a alguém infinitamente poderoso. Parece mais fácil desconfiar, ser cautelosos e salvaguardar nossa independência.
Mas Deus Trindade é um mistério de Amor. E sua onipotência é a onipotência de quem só é amor, ternura insondável e infinita. É o amor de Deus que é onipotente. E sempre que esquecemos isso e saímos do fluxo do amor, nós fabricamos um Deus falso, uma espécie de ídolo que não existe.
A Trindade não é uma verdade para crer mas uma presença a ser acolhida, uma experiência a ser vivida. Uma profunda experiência da mensagem cristã será sempre uma aproximação ao mistério Trinitário.
A festa da Trindade deve nos libertar do “Deus Ser todo poderoso” e empapar-nos do Deus Ágape que nos identifica com Ele. A imagem do “Deus todo poderoso” não expressa bem a experiência do “Deus trino”. Deus é amor e só amor. Só na medida que amemos, poderemos conhecer a Deus.
Esta é talvez a conversão que muitos cristãos mais precisam: fazer a passagem de um Deus considerado como Poder a um Deus adorado alegremente como Amor.

Felizes aqueles que descobrem que a Trindade não é um mistério incompreensível, mas a cotidiana experiência do Amor, a partir de uma vida encarnada em nossa história, com um respiro, um ânimo e uma paixão especial por continuar vivendo cada dia com os mesmos sentimentos de Jesus, junto a tantas pessoas que trabalham por outro mundo mais fraterno, justo e solidário. A Trindade é o espelho que nos mostra como devemos ser e viver à luz da “melhor Comunidade”.

Ora, tal Mistério fonte de todo ser, constitui o modelo ideal de todo e qualquer convívio humano. Somos feitos à “imagem e semelhança da Trindade”.  Trazemos em nós impulsos de comunhão.
Sempre que construirmos relações pessoais e sociais que facilitem a circulação da vida, a comunhão de diferentes à base da igualdade, estaremos tornando visível um pouco do mistério íntimo de Deus.
Deus quer inserir-nos nesta sua comunhão eterna, como no-lo disse Jesus: “Que todos sejam um como Tu, Pai, estás em mim, e eu em Ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que Tu me enviaste”  (Jo. 17,21).

Portanto, Trindade é a glória de Deus que se expressa na vida da humanidade; é o Amor mútuo, a comunhão pessoal, de Palavra (Filho) e de Afeto (Espírito Santo) que sustenta as relações entre os seres humanos. Assim é a Trindade na terra: quando todos compartilham a vida e se amam.
Não crê na Trindade quem simplesmente professa que há “em Deus três pessoas”, ou quem faz mecanicamente o sinal da Cruz, mas aquele que vive o impulso e a expansão do Amor Redentor, que se expressa como compaixão, reconciliação e compromisso. Crer na Trindade é amar de um modo ativo, como dizia S. Agostinho. Contempla-se a Trindade ali onde nos amamos e nos comprometemos com a libertação do próximo. Estamos envolvidos pelo mesmo movimento do Amor sem fim que parte do Pai, passa pelo filho e se consuma no Espírito.
Só quem tem coração solidário adora um Deus Trinitário, pois no compromisso libertador torna-se visível a presença trinitária.

Texto bíblicoMt 28,16-20
Na oração:
Como homem e como mulher trazemos uma força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão.
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas. (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade.
- Em quê aspectos concretos de sua vida se manifesta o mistério do Deus trinitário como amor e vida?
- Como poderia abrir-se mais à ação do Espírito da Verdade em sua vida, para que o(a) leve a um conhecimento existencial e atualizado do Evangelho de Jesus?
- Com quais iniciativas concretas você poderia contar para que sua comunidade cristã seja cada dia mais imagem da comunidade de amor infinito que é a Trindade divina?
- Quais diferenças estão criando divisões e intolerâncias em sua comunidade? Quais elementos da vida comunitária são fatores de união, fazendo-os crescer como irmãos(ãs) e fortalecendo a missão evangelizadora?
- Sua comunidade é sinal e instrumento de salvação de Deus Trindade, através da iniciativa do amor (Pai), da entrega radical (Filho) e da abertura à novidade dos caminhos de Deus (Espírito)?

sexta-feira, 18 de maio de 2018

O “sopro” do Ressuscitado nas raízes de nossa existência

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa de Pentecostes.

“...soprou sobre eles e disse: ’Recebei o Espírito Santo’” (Jo20,22)

Pentecostes é uma festa eminentemente pascal. Sem a presença do Espírito, a experiência pascal não teria sido possível. Ressurreição, ascensão, irrupção do Espírito e missão eclesial aparecem aqui intimamente articuladas. Não são momentos isolados, mas simultâneos, progressivos e dinamizadores na comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus.
O Ressuscitado, através da eficácia do sopro do Espírito, reconstrói as relações rompidas, afasta o medo, abre o horizonte da missão... Com a força do Espírito, a vida se torna profecia de ressurreição.
O sopro incontrolável do vento revela a liberdade de ação de quem é movido pelo Espírito. Como não se pode segurar, determinar o rumo, exercer controle sobre o vento, o mesmo se dá com a pessoa que recebe o sopro do Espírito. Sua capacidade de fazer o bem torna-se ilimitada. Nada a detém quando se trata de demonstrar, com gestos concretos, o amor ao semelhante; esse amor que ela traz dentro de si permite-lhe expressar, de maneira criativa, sua solidariedade e sua presença inspiradora. Tudo, em sua vida, torna-se novo, pois o Espírito não lhe permite cair na rotina e na inatividade, características de quem perdeu a razão de viver.
O Espírito que nos habita não é um Espírito de medo que recusaria a novidade; é um Espírito que nos torna capazes de inventar, criar, decifrar, abrir novos caminhos, a fim de permitir às mulheres e aos homens de hoje encontrar e reconhecer o Cristo sempre vivo através dos seus discípulos.

A festa de Pentecostes é uma ocasião privilegiada para nos aproximar do mistério do Espírito através de imagens que tem muita relação com nossas experiências vitais.
Quê sentimos quando parece que nos afogamos, porque nos falta ar, e de repente podemos respirar a ar fresco a pleno pulmão? E quando temos muita sede e alguém nos oferece água? Ou quando estamos muito cansados e alguém se aproxima para nos ajudar e nos animar? Quê sentimos quando uma pessoa está ao nosso lado e nos ajuda nos momentos de enfermidade e de medo?
A palavra “Espírito” é um termo latino, e seu uso se generalizou. Em hebraico se fala “ruah”, termo feminino, que indica vento, ar, alento, vida, amplitude, espaço ilimitado... Tem conotações muito mais ricas e vitais que o termo “espírito”. A totalidade de nosso ser está empapada do Ruah de Deus.
O termo “ruah” evoca também o sopro do vento, a brisa fresca que traz a chuva, considerada como uma benção. Evoca também o mistério e a presença de Deus, similar ao vento, porque se nota sua presença, mas não se pode vê-lo.
A ação da “ruah” nos seres humanos refere-se, portanto ao alento de vida de Deus que há em cada um, à abundância de Vida divina que está presente no interior de cada homem e cada mulher e na história.
As angústias e os sofrimentos mais radicais do ser humano são acolhidos e transformados pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte.

O Espírito é sopro, hálito, vento que gera vida, que move, impulsiona e sopra onde quer. De onde vem e para onde vai não é fácil dizer. No entanto, está presente, se faz sentir, age. Sopra, despoja, subverte, separa, varre, empurra, levanta, expande, toca de leve...  Aparecem e permanecem os sinais da sua passagem.
É um vento leve, refrescante, novo, penetrante, inovador, cambiante; um sopro sutil, interior, profundo; um sopro que não pode ser detido, sufocado.
Ao mesmo tempo é um vento impetuoso, desafiador e perigoso, pois pode conduzir a direções inimagináveis. Envolve, mas não invade. Interroga, mas não condena. Arrasta, mas não constrange. Oferece, mas não impõe. Presente, vital, essencial, livre, libertador. Pode ser acolhido e tudo se torna novo.
Por isso, quem se deixa mover pelo Sopro sente sua força e reconhece sua ação. E, sem perder o chão da realidade e da história, aspira por algo mais alto, mais profundo, mais bonito e transcendente.
Quem se deixa mover pelo Espírito é imprevisível e não se deixa enquadrar pelas ideias cristalizadas e nem se fecha em atitudes petrificadas. Quem se deixa conduzir pelo Espírito não se contenta com a superficialidade e a mediocridade: abre espaço para a força do “mais”. Deseja voar mais alto e mergulhar o mais profundo, busca novidades, é dinâmico, muda de paradigmas e desfruta do presente, sem se desconectar do passado e do futuro. Quem assim o faz renasce sempre, a mudança é seu hábito de vida.

É preciso resgatar, no dinamismo do seguimento de Jesus, a força, a beleza e a fecundidade da dimensão espiritual de todo ser humano. Ao referir-nos à espiritualidade cristã, estamos situados frente uma “vida segundo o Espírito” (Rom. 8,9), uma vida nascida, orientada e alimentada pelo Espírito Santo; estamos, pois, frente à experiência original que torna cristã uma pessoa: ser habitada pelo mesmo Espírito que habitou Jesus de Nazaré.
Espiritualidade vem de “spiritus” e tem a ver com respiração, um alento que vem de dentro, um fogo e um calor, uma energia e força que brotam e sustentam o íntimo da pessoa espiritual.
Espiritualidade é a arte de respirar corretamente, cada vez de forma integral, atenta e concentrada, a partir do âmago, da profundidade, mas também de maneira natural e leve. Quem cultiva essa respiração integral, esse alento e fôlego do espírito dentro de si, consegue caminhar mais longe, ir mais adiante, ser mais criativo e intuitivo, não desanima ou esmorece quando muitos já estão com a língua de fora.
Espiritualidade significa, antes de mais nada, não perder o fôlego interior em qualquer circunstância da nossa vida. Somos “pessoas espirituais” quando exercitamos tão bem a arte e o alento do espírito que, mesmo nas situações mais difíceis da vida e do caminho, não perdemos a energia, o fôlego, a consistência. A força do espírito nos conduz sempre adiante.
Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver pelo Sopro e escutar aquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.

“Espiritual” é alguém que cultiva e cuida da respiração interior do seu ser com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra e a plantação. Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às raízes da vida, conseguem manter também esta postura totalmente radical, a “humilitas” que vem de húmus, o chão escuro, úmido e fértil da terra.
Esta radical humildade, que vem da proximidade do chão e da comunhão com a terra, desperta piedade, respeito, cuidado, atenção, sensibilidade, misericórdia e, sobretudo, coragem e compaixão.
Nesse sentido, a busca pela espiritualidade vem de baixo, das raízes do humano, ela salta das profundezas da alma humana, não vem de cima, do além. A busca da espiritualidade nasce do ímpeto interior do ser humano por ser livre, por superar-se e poder crescer integralmente.
Espiritual é, portanto, a pessoa humilde, que vive da força que vem das raízes, que tem suas raízes fincadas profundamente no chão da vida, como uma árvore.


Texto bíblico: Jo 20,19-23

Na oração:
- Deixe que o Sopro liberte seu corpo de todas as memórias negativas que o entulham, devolvendo ao seu espírito sua inocência, sua disponibilidade, sua energia...
- Acolha simplesmente o Sopro em seu interior. Deixe que o Espírito desça ao mais profundo de você mesmo.
- Acolha-o com gratidão, simplesmente expirando e inspirando. Por alguns instantes, seja um com o Sopro.
- O Sopro que respira em você é o mesmo que respira em todo o Universo.
- Deixe o Ser respirar em você, sendo inspirado e expirado. Respire em Sua presença para o seu bem-estar e

  para o bem-estar de todos. Viva conscientemente o Sopro presente em você!

sábado, 12 de maio de 2018

ASCENSÃO: ampliar nossos atrofiados horizontes

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Celebração da Ascensão do Senhor.

“Os discípulos saíram e pregaram por toda parte” (Mc 16,20)

Na dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus”, como o Cristo da Ascensão “desapareceu em Deus”.
Depois da Ressurreição, Jesus “ascendeu”. E fez isso abertamente. Os discípulos, atordoados, permaneceram olhando para o alto enquanto Jesus partia. Ele deixou claro que começava uma nova maneira de se fazer presente junto aos seus seguidores. De fato, Ele insistiu que os estaria acompanhando todos os dias até o fim do mundo. Portanto, nada de ruptura, mas de uma mudança qualitativa em sua presença, e assim impulsionar um novo vínculo com Ele.
Mas, em que sentido Jesus “foi levado ao céu”? Jesus não se “elevou ao céu” no sentido estrito, senão que “desceu” ao mais profundo de nossa existência, para dentro da nossa história, pois Ele continua “nos ajudando e confirmando sua palavra por meio dos sinais”.
Esta nova presença é algo tão misterioso que não é possível defini-la, pois ela não está mais restrita aos limites do espaço e do tempo. Transcende o que se pode ver e tocar. A realidade pascal é muito mais ampla que aquilo que nossos sentidos podem abarcar.
Naqueles Onze apóstolos primeiros, “catequizados” pelas mulheres que fizeram a primeira experiência de encontro com o Ressuscitado, junto ao sepulcro, nos encontramos refletidos todos os cristãos.
A terra inteira é campo de Páscoa de Jesus, espaço onde se expressa seu mistério de Vida plena.
Este é o Cristo pascal da montanha da Galileia, que continua se fazendo presente no transcurso dos tempos, no mesmo caminho da história, no processo de missão que dura até o final do mundo.

Jesus não “subiu” para fugir dos problemas deste mundo, senão que, destruindo a morte, fortaleceu o vínculo que nos une, para continuar atuando em nosso favor de um modo diferente. Por isso, quis deixar claro que a ressurreição não supõe “ir mais além”, para viver comodamente e desfrutar de um merecido descanso depois de tanto sofrimento. Com sua presença nova mostrou que ressuscitar significa viver mais, amar mais, compartilhar em plenitude. Uma injeção de ânimo para vacilantes e temerosos.
Dessa forma, o ensinamento pascal se traduz como experiência de gratuidade e doação de vida. Ali onde as pessoas se ajudam a viver gratuitamente uns aos outros, em solidariedade e entrega radical, podem confessar que Jesus ressuscitou e continua presente, animando e inspirando a todos.
Assim, quando perguntem onde estão os sinais de que o Cristo triunfou da morte, devemos responder: vejam como creem e atuam os cristãos! Suas obras de amor são reflexo da vida de Jesus, são expressão intensa de sua Páscoa.
Pode-se reconhecer o Senhor ressuscita nos sinais quase imperceptíveis que revelam que de verdade Ele não nos abandonou: pessoas que atualizam seus mesmos gestos, que pronunciam com autenticidade suas palavras, que são como um prolongamento de seu ser. Talvez por isso animou seus discípulos a guardar e propagar tudo o que lhes havia ensinado, para que outros reconhecessem Sua presença neles e acreditassem que o amor e a vida não tem “data de vencimento”.

Portanto, para nós seguidores(as) de Jesus, a Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre ao longo da existência.
A festa da Ascensão nos revela que vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade, de ousadia, de novidade... O Espírito não proporciona aos seguidores de Jesus “receitas eternas”. Por isso, não podemos ficar olhando para cima. O Espírito nos dá luz e inspiração para contemplar a realidade, buscando caminhos sempre novos para prolongar hoje a mesma missão de Jesus.
Torna-se necessário descruzar os braços, deixar de olhar passivamente para o céu e, com os pés plantados no chão, ser “presença cristificada” que fermenta e transforma a realidade.
O mistério da Ascensão nos sensibiliza e nos capacita para ir ao encontro do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade. Como contemplativos, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é.
Ascensão nos convida a olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem nele; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.

A Ascensão de Jesus significa tomar consciência de que Seu tempo se completou e começa o tempo da nova comunidade dos seus(suas) seguidores(as). Trata-se de um “mistério” que revela uma nova pedagogia de Jesus, qual seja, saber “retirar-se a tempo”. E retirar-se a tempo para que os discípulos cresçam, para que os discípulos amadureçam. Porque, enquanto Jesus estava entre eles e com eles, os discípulos viviam como os pintinhos debaixo das asas da galinha.
Saber retirar-se a tempo implica uma grande sabedoria. Os pais, nem sempre sabem retirar-se a tempo; creem que precisam envelhecer sem passar as responsabilidades aos filhos. Os mestres creem que seus alunos ainda não sabem o que eles sabem. Os sacerdotes não sabem abrir passagem para os leigos; consideram que ainda não estão preparados.
Jesus soube retirar-se a tempo; era consciente de que os seus discípulos não estavam plenamente maduros e preparados para a missão. O Evangelho reconhece que “alguns vacilavam”. E no entanto, Jesus confiou a eles sua própria missão: “ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura”. Não pediu que primeiro se doutorassem, nem que fizessem uma pós-graduação. Enviou-os assim como estavam, com suas dúvidas no coração. Também eles aprenderão fazendo; também eles aprenderão equivocando-se.
Portanto, a Ascensão de Jesus marca o início de nossa missão, ou seja, um novo modo de presença no mundo. Viver com os olhos voltados para o Senhor glorioso não nos dispensa de estar com os dois pés no chão, plantados na terra da história.

Enfim, a celebração do mistério da Ascensão nos impulsiona, ao mesmo tempo, para Deus e para o mundo. Paixão por Deus e paixão pelo mundo. Podemos assim estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos no coração do mundo. O cristão é tão familiar com Deus que admira e se encanta com a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda sua complexidade. Ao mesmo tempo, é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus que trabalha em todos os lugares e da maneira mais inesperada. “Fora do mundo não há salvação” (E. Eschillebeeckx).
Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”. Descobri-lo dentro de si mesmo, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar olhando para o céu... e não sentir-nos implicados naquilo que está acontecendo ao nosso redor. A Ascensão de Jesus nos desafia a romper a estreiteza de nossa vida para expandi-la a horizontes mais inspiradores.


Textos bíblicos:  Mc. 16,15-20 

Na oração:  

Que nossa ascensão seja: romper as cadeias de injustiça e morte; derrubar toda parede e muro; ir pela vida como samaritanos; mostrar os caminhos de vida plena; oferecer razões de esperança; despertar o instinto criativo; interpretar os sinais dos tempos; pôr o coração nas estrelas...


terça-feira, 8 de maio de 2018

MEDITAÇÃO: Esta sede de nada que nos faz adoecer

Compartilhamos a Meditação "Esta sede de nada que nos faz adoecer" proposta pelo Pe. José Tolentino Mendonça, durante os Exercícios espirituais do Papa Francisco,  em fev. 2018 na Casa Divino Mestre - Ariccia.


O contrário da sede é a preguiça – disse o sacerdote. Quando perdemos a curiosidade e nos fechamos ao inédito ficamos apáticos e começamos a ver a vida com indiferença. Por sua vez, a sede nos ensina a arte de procurar, de aprender, colaborar, a paixão de servir.
Existem muitos sofrimentos escondidos cujas origens devemos descobrir e que segundo o pregador, se escondem no mistério da solidão humana.
Quando nos sentimos em ‘burnout’
Um dos problemas mais comuns hoje é o chamado ‘burnout’: sentir-se em curto-circuito, esvaziado de energias físicas e mentais. Este esgotamento emocional é definido por alguns como ‘síndrome do bom samaritano desiludido’ e atinge muitas pessoas que fazem da ajuda e da cura do próximo sua ocupação principal. Como os sacerdotes.
Pe. Tolentino mencionou uma pesquisa realizada entre o clero da Diocese de Pádua (Itália), que apontou que os sacerdotes com maior risco de burnout são os jovens (25-29 anos) e os mais idosos, com mais de 70 anos. Dentre as causas deste mal-estar, estão o peso excessivo das expectativas (pessoais e dos outros), a ausência de uma vida espiritual, o temor do juízo, a exposição demasiada a situações humanas difíceis, pouca solidariedade entre os sacerdotes, incapacidade de se comunicar...
Quando nos sentimos amados como pessoas, amparados com afeto e acompanhamento, sabendo que nosso trabalho interessa, envolve e apaixona, temos a certeza de existir. Mas quando nos sentimos abandonados, incompreendidos e com o coração ferido por dores que não sabemos curar, temos a impressão de não contar nada para ninguém.
A este respeito, o padre lembrou que somos todos diferentes, cada um com sua beleza e fragilidades. A beleza humana é aceitar-se como somos; não viver nos sonhos ou ilusões, na raiva e na tristeza. Ter o direito de ser o que somos... e seremos amados por Deus e preciosos a seus olhos.
Jonas ou a necessária terapia do desejo
Recorrer à terapia do humor para satisfazer o desejo: o livro bíblico de Jonas nos faz sorrir salutarmente de nós mesmos, ao invés de dramatizar. Ele nos diz que a sabedoria está nos anunciadores de esperança e não nos apocalíticos pregadores de tragédias.
A anatomia da tristeza
‘Um dos sinônimos da preguiça, a ‘atonia’ da alma, é a tristeza’, afirmou o pregador.
Em relação à pastoral, a preguiça pode ter diferentes origens: insistir em projetos irrealizáveis; não aceitar a evolução dos processos; perder o contato real com as pessoas, não saber esperar, querer dominar o ritmo da vida... A ansiedade de obter resultados imediatos... a sensação de fracasso, de ser criticado, de cruz.
Aprendam de mim: ‘vem’

Pe. Tolentino concluiu sua meditação relacionando a nossa sede ‘de água’ com a palavra que revela a necessidade profunda, íntima e dolorosa ‘vem’, que a Igreja experimenta com a chegada no Espírito. Nesta palavra está o sinal de tudo o que precisamos, a razão de nossa esperança e ao mesmo tempo, a razão de nosso fracasso, cansaço... e a necessidade de superar tudo isso em Deus.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-02/quarta-meditacao-exercicios-espirituais.html

domingo, 6 de maio de 2018

10 anos de Comunidade

Este mês a CVX Amar e Servir está completando 10 anos de vida! Se as bodas também servem para celebrar a vida em comunidade, estamos celebrando Bodas de Estanho ou Zinco... Dois metais fortes para celebrar 10 anos de caminhada. Ontem tivemos um lindo almoço festivo, um momento de congraçamento da comunidade, de reecontrar pessoas que caminharam juntos, de celebrar a vida, o chamado, a vocação, a missão!


No encerramento tivemos uma leitura dramatizada que revelou talentos de montagem de roteiros e interpretação teatral nos membros da comunidade.

TEMPO
PERSONAGENS: ÉRIKA, GUILHERME e THAÍS

(ÉRIKA e GUILHERME estão caminhando e conversando e encontram THÁIS cabisbaixa)

ÉRIKA – O que aconteceu?
GUILHERME – Por que está tão triste?
THAÍS – Não estou triste, apenas pensativa. Ultimamente, sinto que me falta algo, mas não consigo saber exatamente o que é. (pausa) Mas também estou sem tempo para pensar nisto! (faz menção de ir embora, mas ÉRIKA e GUILHERME a detêm)
ÉRIKA – Espere! Vamos conversar um pouco sobre isto. Escute, como anda a sua vida profissional, pessoal...? Seus colegas de trabalho, sua família...está tudo certo?
THÁIS – Tudo certo!  Acho... (pausa) bom, também não tenho muito tempo para perguntar a cada pessoa que eu conheço como ela está!
GUILHERME – E a sua vida espiritual, como está?
THAÍS – Minha vida espiritual? Ora, também está ótima! Rezo todos os dias, frequento a igreja todos os domingos, sou dizimista...o que mais eu posso fazer?
ÉRIKA – Já tentou fazer os Cinco Passos Básicos dos Exercícios Espirituais?
THAÍS – Aquele baseado nos estudos de Santo Inácio? Li algo a respeito, mas sinceramente, ainda não tive tempo para saber mais sobre isto.
ÉRIKA – Pois deveria. De acordo com os Exercícios Espirituais, o Primeiro Passo é colocar-se na presença de Deus, tendo a firme convicção de que Deus está comigo, me ouvindo e me falando, relacionando-se comigo.
GUILHERME – O Segundo Passo é Pedir a Graça de Deus, dizendo o que quero e desejo, várias vezes, mas tendo a consciência de acolher, sempre, a vontade Dele.
THAÍS – (distraído) Sim, sim...interessante (afastando-se) olha, gostaria muito de escutar o resto destes exercícios, mas realmente...
(ÉRIKA e GUILHERME a detêm novamente)
GUILHERME – Espere, ainda não acabou! O Terceiro Passo é Meditar a Palava de Deus, refletindo sobre o texto bíblico, sem pressa e permitindo que a Palavra Dele faça aja em seu espírito .
ÉRIKA – o Quarto Passo é fazer um Colóquio com Deus, manifestando a Ele os seus verdadeiros sentimentos e pensamentos. E, por último...
THAÍS (murmurando) – Graças a Deus que é o último!
ÉRIKA (olhando para THAÍS) – Vou fingir que não escutei isto. Como eu estava dizendo, o Quinto e último passo é o Anotar, guardando em seu espírito as percepções mais significativas da sua oração. (pausa) E então, gostou?
THAÍS – Muito! Muito! (olhando o relógio) Bom, colegas, a conversa está boa, mas tenho que ir!
ÉRIKA e GUILHERME – Espere! Acho que sabemos qual é o seu problema!
THAÍS – Que bom! E qual é?
ÉRIKA – Falta de tempo para você! Quanto mais você se esforça para não perder tempo, mais o está perdendo! E o pior: está deixando de lado o mais importante!
THAÍS – O quê?
ÉRIKA – Os outros! Você não percebe que Deus também está nos outros? Nós somos o reflexo de Deus!
THAÍS – Mas o tempo...
ÉRIKA – O tempo está em nós, assim como está em Deus! Assim como está em algum colega de trabalho com problemas, algum membro da sua família que precisa da sua ajuda ou algum amigo seu que pode estar precisando de conselhos!
THÁIS – Eu...eu não tinha pensado nisto!
ÉRIKA e GUILHERME (juntos e rindo) – Talvez porque tenha lhe faltado tempo!
ÉRIKA – Tempo de partilhar!
GHILHERME – Tempo de viver!
ÉRIKA – Tempo de escutar!
GUILHERME – Tempo de refletir!
THAÍS – Mas como posso resolver isto então?
ÉRIKA e GUILHERME  abraçam THAÍS – Tendo uma vida em comunidade! Uma Comunidade de Vida Cristã!  
FIM

Amor Vivido na Alegria: quinta-essência da vida cristã

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 6º Domingo da Páscoa.

“Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo 15,11)

O Evangelho deste domingo é desenvolvimento do tema do domingo anterior, ou seja, a videira e os ramos. Jesus explica em que consiste essa “conexão” dos seus seguidores à Videira verdadeira.
Apresentando como inspiração sua união com o Pai, Jesus vai des-velando a essência de sua mensagem. Sem usar metáforas nem comparações, Ele nos coloca diante da realidade mais profunda da mensagem evangélica: o Amor que, vivido na alegria, é a essência divina que mais nos humaniza.
Trata-se de entrar em sintonia, de “ajustar-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, expansivo... e que se “revela mais em obras do que em palavras” (S. Inácio).
O(a) seguidor(a) de Jesus encontra-se, assim, envolvido(a) pelo Amor transbordante de Deus e, ao mesmo tempo, entra no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através dos encontros com os outros.
Portanto, o ser humano, na mística cristã, é o “ponto” no qual convergem o Amor “que desce do alto” e o Amor que flui para o outro, o Amor que vem do outro e o Amor que retorna à sua Fonte.

João põe na boca de Jesus a senha de identidade que distingue os(as) seus(suas) seguidores(as). É o mandamento novo, em oposição ao antigo, ou seja, a Lei. Fica estabelecida a diferença entre as duas alianças. Jesus não manda amar a Deus nem amar a Ele, mas amar como Ele ama.
Na realidade, o mandamento do Amor não é lei que se impõe de fora; mas emana do coração alegre de Deus e de todos nós. É dinamismo expansivo que brota de dentro e nos impulsiona em direção ao outro, sem buscar recompensa.
Não se pode impor o amor por decreto. Todos os esforços que façamos por cumprir um “mandamento” de amor, está fadado ao fracasso. A busca deve estar encaminhada a descobrir o Deus que é amor, dentro de nós. No fundo, o evangelho deste domingo está nos dizendo que, para o(a) seguidor(a) de Jesus, a primazia é a experiência de Deus. Só depois de um conhecimento intuitivo do que Deus é em nós, poderemos descobrir os motivos do verdadeiro amor.
Nosso amor será “um amor que responde ao amor de Deus”; e Jesus deixou transparecer esse amor de Deus até o extremo da doação de si. Portanto, amor de Deus é a realidade primeira e fundante: descobri-la e vivê-la, é a verdadeira identidade daquele(a) que segue Jesus.
Qualquer relação com Deus sem um amor manifestado em obras, será pura idolatria. A nova comunidade não se caracterizará por doutrinas, nem ritos, nem normas morais. O único distintivo deve ser o amor manifestado. Jesus não funda um clube cujos membros devem ajustar-se a uns estatutos, mas uma comunidade que experimenta Deus como amor e cada membro n’Ele se inspira, amando como Ele.
Nenhuma outra realidade pode substituir o essencial. Se isto falta, não pode haver comunidade cristã.

Jesus não apresenta este mandato do amor como uma lei que deve reger nossa vida, fazendo-a mais dura e pesada, mas como uma fonte de alegria. Quando entre nós falta o verdadeiro amor, cria-se um vazio que nada nem ninguém pode preencher de alegria.
A alegria é o sentimento central na experiência cristã da Páscoa. Nossa alegria é Cristo ressuscitado. Ele é a causa de nossa alegria.
A alegria na vida cristã aninha-se e cresce na vivência do mistério pascal. A ressurreição de Jesus causou uma imensa alegria na comunidade dos(as) discípulos(as). A alegria é contagiosa. Tem uma dimensão social e comunitária. Nós não estamos alegres só porque Jesus está vivo, mas porque nos fez partícipes de sua ressurreição, de sua nova vida. Assim nossa alegria é a alegria de Jesus.
A vida cristã, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança. A participação afetiva na alegria de Cristo é a forma de expressar o desejo da íntima comunhão no amor que reforça o seguimento. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Papa Francisco).

Essa alegria, da qual nos fala Jesus, não é um simples sentimento passageiro; trata-se de um estado permanente de plenitude e bem-estar por ter encontrado nosso verdadeiro ser, luminoso e indestrutível. No encontro com o Ressuscitado surgirá espontaneamente a alegria, que é nosso estado natural.
A alegria, portanto, não é um estado de ânimo, mas um estado da pessoa. Por isso, a alegria não é algo que acontece na pessoa: é a pessoa mesma acontecendo. A alegria é “gerúndia”: é a pessoa alegrando-se.
Só quando descobrimos quem realmente somos, estamos, então, em condições de viver para os demais sem limites. O verdadeiro amor é expansivo, é dom total; e a prova de fogo do amor é o amor ao inimigo. Se há um limite em nossa entrega, ainda não alcançamos o amor evangélico.
Os santos e santas, por viverem profundamente fundamentados no amor de Deus, foram testemunhas da alegria. Eles(elas) deixaram transparecer que o amor que Deus nos tem suscita a alegria e esta motiva, dá energia, gera confiança. Este amor é o que nos faz sair de nós mesmos, reencontrar-nos e entregar-nos aos demais. E aqui está o “peso” do amor, o vigor da alegria.
O amor é o princípio que ordena a vida e a alegria irradia harmonia e bem-estar àqueles que nos rodeiam. Existe, portanto, uma relação de reciprocidade entre a alegria e o amor. São como vasos comunicantes: a alegria brota do amor, o amor se expressa na alegria. É na atmosfera da alegria que o mandamento do amor revela seu pleno sentido.
Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.

A alegria que brota do amor é a experiência da vida já ressuscitada; e este amor oblativo já não busca seu próprio interesse, mas somente o serviço e a glória do Ressuscitado. O Pai, em seu amor, pronunciou a palavra definitiva de fidelidade que consola e enche de esperança. Seu amor nos inunda e ativa a alegria pascal: é preciso devolvê-lo em gratidão e em generosidade para com o próximo.
A alegria sempre indica que a vida está se expandindo, que ganhou terreno, que conseguiu ir além de si mesma. Um sinal de identidade da alegria é o olhar profundo, amplo e expansivo da vida. Mesmo em meio à dor e ao sofrimento, não faltam o bom humor e a ternura. Quem é cristãmente alegre se desgasta menos, integra melhor os acontecimentos, é feliz e faz felizes os outros.
Quem vive na alegria se sente sereno, livre, pensa positivamente, está próximo dos pobres, acolhe as adversidades, integra suas contradições, ama sem pôr condições, louva, canta e bendiz sem cessar.
De fato, a alegria experimentada não nos põe na retaguarda nem nos acomoda; pelo contrário, nos pede que sejamos mais radicais nos questionamentos e nos compromissos. Está em jogo a glória de Deus e a dignidade de seus filhos e filhas.


Texto bíblico: Jo 15,9-17

Petição: Sentir em si mesmo a alegria de Cristo; alegria que é dom do Espírito do Ressuscitado. Em Cristo, as alegrias humanas são divinizadas. Considerar na oração os diversos motivos que lhe enchem de alegria.

       “A maior prova da existência de Deus é a alegria dos pobres. Eles não tem outro motivo para se alegrar a não ser em Deus”.  (D. Luciano Mendes de Almeida).