“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
Todos nós temos consciência que a
superficialidade, o consumismo e o individualismo são as marcas de nossa
sociedade atual. Marcas que nos des-figuram e nos desumanizam. Já o grande
teólogo Paul Tillich (1886-1965) afirmava que “a
grande tragédia do homem moderno é ter perdido a dimensão de profundidade”. Nas suas obras há um insistente apelo a
re-encontrar aquilo que ele chamava “a dimensão perdida”.
Este é o contrassenso humano: por uma parte, salta
à vista a tendência a instalar-se na superficialidade (chamemos isso de
“zona de conforto” ou simplesmente “comodidade”) e, por outra, a certeza de que
somos todos habitados por um anseio que nos chama constantemente para a profundidade
(chamemos isso de “nossas raízes”, “nosso ser”..., em definitiva, “nossa casa”).
Entre esses dois extremos – superficialidade e profundidade – transcorre nossa
vida.
No fundo, a superficialidade, o
consumismo e o individualismo são tão somente tímidas compensações que tentam aliviar
o vazio de sentido que nos habita; ao mesmo tempo se apresentam como “cantos de
sereia” que nos distraem daquilo que é verdadeiramente importante: viver o que
somos.
Talvez, a chamada “dimensão perdida”
não seja outra coisa que a “trans-figuração” de nossa
verdadeira identidade. Este é o apelo do Evangelho de hoje: viver
“trans-figurados” a partir de nossa interioridade.
Estamos vivendo fora de nós mesmos,
daí que nosso mundo interno permaneça na obscuridade. Se nos voltarmos para
dentro, se nossa atenção começa a dirigir seu foco para o interior, então tudo
se ilumina.
O chamado “mistério” da “Transfiguração” poderia ter sido, em sua origem, um relato de
aparição do Ressuscitado. Posteriormente teria sido re-elaborado para
transformar-se numa declaração messiânica: Jesus, confirmado pelas Escrituras
judaicas, representadas nas figuras de Moisés (“a Lei”) e Elias (“os
profetas”), é apresentado como “Filho amado” de Deus. Todo Ele é transparência
e luminosidade.
Jesus viveu constantemente transfigurado, mas
isso não se expressava externamente com espetaculares manifestações. Sua humanidade
e sua divindade se revelavam cada vez que se aproximava de uma pessoa para
ajudá-la a ser ela mesma. A transfiguração deixa de ser um evento para
tornar-se um modo permanente de Jesus viver, pois a única luz que nele se
revela é a do amor; e só quando manifesta esse amor, ilumina. Na sua humanidade
deixa transparecer a luz de Deus.
A Transfiguração
não está só nos dizendo quem era Jesus, mas também quem somos realmente. Ela
des-vela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria
humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente
humana. Tudo o que é autenticamente humano, é transparência de Deus.
A transfiguração desencadeia um
movimento interno de busca continuada e revela que o ser humano é inquieto por
natureza, e será sempre assim, em seu afã de abrir-se a um horizonte cada vez
mais amplo. Todo o ser humano traz em seu interior uma faísca de luz que busca
expandir-se; não falta ao seu coração a sede de eternidade.
Transfiguração, portanto, é transformação do
espaço interior. Em meio às sombras profundas, marcadas pelos traumas, feridas,
experiências negativas..., encontram-se “pontos de luz”. Temos todos os recursos
necessários para ativá-los. Então, o círculo de nossa luz vai se ampliando,
começando pelo nosso eu mais profundo; ela vai se fazendo cada vez mais
extensa, iluminando toda a realidade cotidiana. Passaremos, a viver como “seres
trans-figurados”.
Cuidemos, pois, do coração, pois
dele brota a luz e a vida! Iluminemos nosso caminhar com a luz que há em nós
mesmos!
Nesse sentido, a cena da Transfiguração vem nos
recordar que, na essência, somos luminosidade; por detrás de
comportamentos com frequência sombrios, continuamos sendo transparência. Isso é o
que nós cristãos reconhecemos em Jesus: Ele é o “espelho” nítido no qual vemos
nossa identidade profunda. E essa identidade é luz e transparência.
Não é casual que, mesmo perdidos nas trevas de
nossa inconsciência, sentimos saudades da luz. Também não é casual que, mesmo
nas ações mais complicadas e questionadas, procuramos justificar nossa transparência. Uma e outra des-velam
quem somos; por isso mesmo, se tornam imprescindíveis para viver com mais
intensidade. Que impede que possamos percebê-las em nós e nos demais?
Nossa essência é luminosa, transparente, simples,
doce, verdadeira... Mas, para percebê-la, precisamos nos despertar. E isso
implica e significa, ao mesmo tempo, viver ancorados em nossa verdadeira
identidade.
Para além do “ego superficial”, a trans-figuração nos faz acessar a um
“lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde reconhecemos a presença
d’Aquele que é a Luz indizível.
Esse “lugar” é sempre luminosidade e
transparência. E a partir dele tudo fica transfigurado. Na realidade, não é que
as coisas se transfigurem, senão que, mais exatamente, vemos em tudo a Verdade,
a Bondade e a Beleza daquilo que é.
Se soubéssemos olhar com os olhos transfigurados
veríamos que por detrás das pobres aparências se escondem muitos sentimentos de
bondade, de generosidade, de fidelidade e amor.
A transfiguração nos fala da
verdade que levamos dentro de nós, mas também dos novos olhos que precisamos
para ver. Se soubéssemos olhar com os olhos do coração, veríamos a luz
maravilhosa escondida no interior de cada pessoa.
Conhecemos as pessoas por fora.
Quem as conhece por dentro?
Debaixo das aparências de
vulgaridade, pode se esconder um grande coração.
Texto bíblico: Mc
9,2-10
Na
oração:
Transparente é um modo de ser e de agir; é a
condição para que possamos viver em chave pascal, para poder ver Deus presente
e atuante em tudo e em todos.
O grande
desafio para viver a transparência é facilitar, no meio de nossa cultura
acelerada e carregada de imagens, espaços sossegados para perceber o que o
Espírito vai fazendo em nós. Se não sabemos o que nos acon-tece por dentro, dificilmente
poderemos ser presença iluminadora junto aos outros.
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Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados a ser cúmplices do Espírito, abrindo-nos
totalmente à sua ação e deixando-nos trans-figurar por Ele.
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Como isso pode se fazer presente no seu ritmo cotidiano de trabalho, nas relações,
no compromisso...?