sábado, 17 de junho de 2017

A Compaixão como Fonte do Chamado

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 11º Domingo do Tempo Comum - Ano A.

“Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas...; chamou os doze discípulos” (Mateus 9,36)

Uma pessoa que se define tem força para despertar, para arrastar, para mobilizar os outros...
Jesus é o homem que se definiu. Por isso, Ele nos inspira e nos impulsiona. Inspirar e impulsionar, impulsionar a partir da inspiração: isso é seduzir no melhor sentido da palavra.
Jesus não nos seduz simplesmente para provar sua condição divina ou a veracidade de sua mensagem. Ele nos seduz porque foi um homem de carne e osso como nós, e porque alcançou um grau de humanidade, de compaixão e liberdade, de sensibilidade e compromisso..., que está em nossas mãos alcançar.

A grande novidade e originalidade de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem, coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.
Os olhos de Jesus viram muita dor, miséria, violência..., e suas entranhas se comoveram. Viu o seu povo despojado da terra, dos direitos mais elementares... Jesus viu e se compadeceu; compadeceu-se e indignou-se; indignou-se e se comprometeu na transformação daquela realidade dolente; comprometeu-se porque seus olhos viram mais a fundo, mais além, outro mundo possível.
Na raiz de sua atividade terapêutica e inspirando toda sua atuação junto aos enfermos está sempre seu amor compassivo. Jesus se aproxima dos que sofrem, alivia sua dor, toca os leprosos, liberta os possuídos por espíritos malignos, os resgata da marginalização e os devolve à convivência.

O que move a vida de Jesus é a compaixão e a compaixão é expansiva, tem impacto profundo naqueles (as) que estão ao seu redor. Compaixão desperta compaixão pois ela é mobilizadora dos sentimentos mais nobres presentes no interior de cada um. No calor da compaixão ativada brota o chamado de Jesus e a resposta dos seus (suas) seguidores (as). Sem compaixão, a resposta ao chamado se esvazia, o serviço se burocratiza, o seguimento vira lei. 
Jesus não nos chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e nos convoca a segui-Lo, ou seja, identificar-nos com Ele e com sua proposta de vida.
O horizonte do chamado e do envio não é outro que o compromisso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados (as) em favor da Vida, seus(suas) seguidores(as) sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravando os medos, contagiando confiança em Deus.

A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
O (a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos (as) de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados (as) por Deus, apaixonam-se pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... lhes fala e lhe revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossas vidas.
Jesus não fundou o clero nem quis instituir um corpo ou estamento de “homens sagrados”, uma espécie de funcionários do templo, constituindo-se numa “classe superior”. O que Jesus quis foi “discípulos/as” que lhe “seguissem”, ou seja, que vivessem como Ele viveu: dedicados a curar enfermidades, aliviar sofrimentos, acolher as pessoas mais perdidas e extraviadas. Assim nasceu o “movimento de Jesus”.

Jesus, o “rosto misericordioso do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir o Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que estão nos impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes?
Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados(as) de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, nem sempre temos adotado o estilo itinerante que Jesus propõe. Nosso caminhar torna-se lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?

Para Jesus, o ideal de sua mística é “viver com um pé levantado”, isto é, sempre pronto para responder às oportunidades que são oferecidas pela vida.
O(a) seguidor(a) de Jesus vive a aventura enquanto capacidade de estar “na frente” de situações desafiantes, superando o medo de romper paradigmas, potencializando talentos e fomentando a criatividade...
Tem a ousadia de inovar, a coragem de arriscar e a vontade de realizar mudanças importantes.
Para isso é preciso despojar-nos de hábitos arraigados, pré-juizos, ideias fixas, modos fechados de viver e abandonar a atitude do “sempre fizemos assim”. Estes são os vícios que impedem uma resposta diferente e sedutora num mundo em transformação.
A compaixão deve configurar tudo o que constitui nossa vida: nossa maneira de olhar as pessoas e de ver o mundo; nossa maneira de nos relacionar e de estar na sociedade, nossa maneira de entender e de viver a fé cristã...

Texto bíblicoMateus 9,36-10,8

Na oração: 
Jesus, foi o homem que se definiu, tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende o que de mais nobre há em cada um (a) e amplia nosso horizonte de vida.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-nos con-figurar”, isto é, movimento pelo qual vamos sendo modelados (as) à imagem de Jesus Cristo.

- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o (a) projetam em direção aos mais sofredores?

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Corpus Christi: festa do corpo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da celebração de Corpus Christi.

“E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (João 6,51)

O corpo humano está no centro da revelação cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.

Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi Aquele que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio corpo. Ele não tinha uma mentalidade dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber, dormir, descansar, desfrutar dos sentidos... a vista, o sabor, o olfato, o tato.
Nem ele nem seus discípulos guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.

Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem medos nem tabus: tocou e se deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou os seus discípulos desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que derramou sobre Ele um caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e marcada somente pelo desejo de compartilhar amor e gratidão.
Olhou o corpo das mulheres de um modo muito diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos, famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos...; além disso, deixou claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar no Reino: passar pela vida como terapeuta/sanador e não como juiz que acusa; abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente distância do corpo vulnerado de Jesus.
E, se com sua vida não tivesse ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.

Na festa de “Corpus Christi” fazemos memória deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a nos oferecer. Esse Corpo que era sua própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora. Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade e no mais íntimo contato.
De agora em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam, onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que não deixa lugar a dúvidas: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia desvinculado da realidade de sua Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez corpo, viveu intensamente seu ser corporal e comprometeu-se com os corpos desfigurados e sofredores dos outros, recriando-os e impulsionando-os a uma vida mais plena.


Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o universo do imensamente pequeno.

Sempre foi verdade a afirmação de que “somos corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade, considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu..., a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e silenciada.
Atualmente caímos no perigo extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em extensão da imagem de nosso ego, ao invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à plenitude de Deus.
Desconectado de sua intimidade, o corpo vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e se tecnifica como se fosse uma mercadoria.
“Somos corpo” em relação com tudo o que é. Somos nuvem, água, ar, terra. Carregamos todo o universo dentro de nós. Somos Terra que sente, canta, pensa, ama. Somos partículas de matéria aberta, fonte inesgotável de possibilidades. Somos corpo, somos espírito, somos alma, somos afeto, somos relação… Somos milagre.

Celebremos o Corpus Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos.
Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem apropriar-nos dele.
Sintamos como próprio o corpo do faminto, do excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança abandonada...
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.


Texto bíblicoJoão 6,51-58

Na oração:
Seu corpo, que é você mesmo, tão efêmero mas habitado pelo Infinito, o Eterno. Você também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, é “corpo de Deus”. O Infinito se manifesta e emerge de seu interior. Acolha seu mistério, deixe-se acolher pelo Infinito em você, deixe que suba desde o mais profundo de você a Voz que lhe diz: “Isto é o meu corpo”.

- Que a festa de “Corpus Christi” anime você a viver sua vida cotidiana buscando fazer de seu corpo um lugar de encontro, de vida, de amor, sem medos nem tabus. Você será mais feliz e, ao mesmo tempo, será agente de felicidade em seu entorno.

domingo, 11 de junho de 2017

TRINDADE: do Triângulo ao Ícone

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da celebração da Santíssima Trindade.
A proposta para oração é contemplar o ícone de Rublev para viver o mistério da Trindade.


A festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus Comunhão de Pessoas, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na vida, habita decididamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
A Trindade “des-vela” a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade. Deus é Amor e só amor.
Diante da presença e da ação do Deus Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e morrem as especulações. Só nos restam o silêncio, a adoração e a contemplação.
Para facilitar tal atitude, vamos ativar nossos sentidos interiores para que se deixem impactar pelo Ícone de Rublev: da Trindade pensada à Trindade adorada.

A Trindade não é fácil de ser representada. Aqui o artista representou-a na figura de três anjos peregrinos, assentados à mesa de Abraão.
O quê vemos neste ícone? Três anjos, reconhecidos por suas asas, estão assentados em torno de uma mesa. Os três sustentam um cajado na mão (Trindade Peregrina).
Trata-se de uma representação do relato da hospitalidade de Abraão, que se encontra em Gen. 18, quando o Senhor apareceu ao patriarca na planície de Mambré, sob a forma de três jovens.
Abraão os convidou a descansar e lhes ofereceu uma refeição. A tradição patrística viu nesses visitantes uma figura das três pessoas divinas.
Podemos nos aproximar do ícone a partir da beleza; num primeiro olhar, a divindade aparece revelando-se como uma grande luz que atrai e purifica.
A ausência de sombras no ícone quer fazer refletir a luz divina em tudo, situa-nos diante da santidade de Deus e nos convida a participar da luz da vida trinitária.
Tudo está no mesmo plano, o plano celestial; e, num olhar de fé, detrás da beleza de sua realidade sensível, o ícone nos remete mais além do visível, para a beleza das realidades divinas que representa e transmite; a razão emudece, o coração admira. Ou seja, não é a imagem em si mesma que nos eleva pelo que representa, mas aquilo para o qual ela aponta: o mistério trinitário ou o “excesso de Deus”.

Observe, em primeiro lugar, o ritmo ou movimento circular que parece invadir todos os elementos do ícone, convidando-nos a entrar no mistério de Deus.
O movimento que, partindo do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito, é um movimento de amor sem fim. Aqui, o ícone deixa transparecer o amor que une às três Pessoas divinas. Trindade é mistério de comunhão. É uma comunidade perfeita.
O ícone, através da reciprocidade dos olhares, evoca o eterno movimento de amor que une as três Pessoas divinas, no sentido de que nenhuma delas esgota em si mesma a existência, nem vive por si mesma, senão que subsiste num mistério de total compenetração que ao mesmo tempo as une e as diferencia.
Isso é sugerido também pelo movimento circular do rosto inclinado dos 3 anjos, eternamente jovens, sentados à mesa do universo, em torno ao alimento divino; rostos que são semelhantes sem ser realmente idênticos. A linha triangular dos rostos e o círculo dos corpos estilizados indicam um mistério de diversidade na unidade.  Fundidos num êxtase que fala de unidade e de harmonia, os três rostos já dizem tudo.
Pouco importa se o Pai é sugerido pelo anjo do centro ou se, antes, há um movimento que vai da esquerda à direita: o personagem da esquerda indica ser o Pai; o do centro, o Filho; e o da direita, o Espírito Santo. As figuras do centro e da direita olham com rosto respeitoso e humilde para a da esquerda, que se mantém mais erguida que as outras duas, posto que o Pai é origem e princípio de tudo.
Os três, com efeito, tem a mesma atitude de abertura, de respeito, de súplica e de invocação.
Deles emana um mistério de eternidade, de amor, de quietude, de paz, de serenidade.

Esse movimento se manifesta igualmente ao fundo do quadro. A árvore se inclina para a esquerda do orante como se fosse submetida ao sopro de um vento forte. Ainda à esquerda se inclinam os planos cortados do teto do edifício. Tudo está em movimento, porque a vida é sair de si mesmo, é doar-se.
Esse ritmo exprime a circulação e a comunhão da mesma Vida divina entre as Três pessoas.
Mas a Trindade não se fecha em si mesma. O movimento expansivo expressa adoção, efusão, dom, generosidade e  graça, que admite, convida o ser humano ao círculo divino.
Tudo se orienta, na fé, para o mistério, para o encontro D’Aquele que vem. Curvando a árvore, o movimento circular da vida divina atinge a natureza. Inclinando o teto do edifício, atinge a humanidade orante, a humanidade no que ela tem de mais elevado. O mundo todo constitui, de certo modo, a periferia; as Três Pessoas divinas permanecem no centro.

Fixemo-nos, agora, nos traços das três pessoas. Elas não tem idade e, no entanto, transmitem uma impressão de juventude. Elas não tem gênero, no entanto elas unem o vigor à graciosidade. As fisionomias e os gestos não foram “construídos” em vista do charme e, no entanto o charme que se desprende é imenso.
Rublev soube expressar de uma maneira única a eterna juventude e a eterna beleza das três pessoas.
Cada um dos três anjos leva nas mãos um cajado alongado e muito fino. É que cada pessoa divina é um viajante, um peregrino. O quadro ressalta a participação de toda a Santíssima Trindade no mistério da salvação. Os três cajados constituem uma declaração e uma promessa. Eles declaram que os três já vieram fazer morada na humanidade. Eles prometem que os três continuam, através da presença expansiva, a conduzir tudo para a plenitude. O quadro evoca, pois, o conselho das Três Pessoas divinas em vista da redenção do gênero humano.

O artista, com sua obra, não pretendia sugerir pensamentos, mas uma oração. A perspectiva do ícone é orante, pois nos predispõe para “entrar” no mistério de Deus; também nos convida a abandonar a lógica cotidiana do útil, para poder entrar na lógica da gratuidade, do espaço místico e cultual, do diálogo com Deus, até os cumes da adoração.
O ícone da Trindade de Rublev nos recorda que não se trata de entender, ou de pensar e estudar o Mistério da Santa Trindade. O decisivo é viver o mistério a partir da adoração e da partilha fraterna.
É Deus quem toma a iniciativa de se aproximar dos seres humanos. Como foram até Abraão, a Trindade quer se aproximar também de cada um de nós. Dentro de nós habitam um Abraão e uma Sara.

Que a contemplação deste quadro nos coloque em contato mais profundo com as Três pessoas divinas para poder repetir, prostrados, as palavras de Abraão aos divinos visitantes na planície de Mambré:
                 “Meu Senhor, se mereci teu favor, peço-te, não prossigas viagem sem parar junto a mim, teu servo”.
E se acolhermos as Três pessoas de todo coração, poderemos, como Abraão, receber de sua boca a certeza de que essa experiência abençoada, longe de ser um episódio isolado, nos será concedida de novo: “passarei de novo pela tua casa”. Só assim sentiremos Vida brotar em nossas vidas, como irrompeu no seio de Sara. Não mais seremos velhos, estéreis e infecundos. A fé faz rejuvenescer.
Que a contemplação do belo e do Santo faça brotar em nós a imagem de Deus que é Pai-Filho-Espírito.

Amem!

sábado, 3 de junho de 2017

Vem, Espírito de Deus

Neste tempo de Pentecostes, partilhamos orações ao Espírito Santo que costumamos rezar em nossas reuniões de CVX para pedir o auxílio e os dons daquele que é Consolador e não nos deixa órfãos.


Vem, Espírito de Deus

Vem, Espírito Divino, de Jesus, vida e alento

Vem, sopro eterno do Pai, que crias o ser humano novo

Vem, intimidade de Cristo, que dás seiva aos ramos

Vem, energia divina, tempestade de Deus e vento

Que abres as portas, que tiras todos os medos,

Que liberta o escravo, que rompes todas as cadeias.

Desce, fogueira trinitária, batiza-nos com teu fogo

Somos carvão apagado, tudo obscuridade e inverno

Acende-nos em amores, converte-nos em luzeiros

Abre-te, fonte ditosa, água que mana do céu

Que limpa as impurezas, que regas todos os hortos

Sacia nossa sede profunda, faça sincero nosso amor

Vem, conselheiro e amigo, vem defensor e Mestre

Vem, tesouro inesgotável, pleno de todos os dons

Intimidade misteriosa, nosso eu mais verdadeiro

Amém!


Oração ao Divino Espírito Santo

Neste tempo de Pentecostes, partilhamos orações ao Espírito Santo que costumamos rezar em nossas reuniões de CVX para pedir o auxílio e os dons daquele que é Consolador e não nos deixa órfãos.

Oração ao Divino Espírito Santo

Oh Espírito Santo, amor do Pai e do Filho, inspirai-me sempre o que devo pensar, o que devo dizer, como devo dizê-lo, o que devo calar, o que devo escrever, como devo agir, o que devo fazer para procurar vossa glória, o bem das almas e minha própria santificação. Oh Espírito Santo, ajudai-me a ser bom e fiel à graça de Deus neste dia e inflamar no fogo do vosso amor o mundo que se materializa. 
Amém. 


“Santa Ruah”: o sopro que nos une

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da celebração de Pentecostes.

 “Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)

De Jesus e do Pai fazemos muitas representações; do Espírito, muito mais que falar dele, invocamos a relação com Ele: “vem!”. Invocamos para vir Aquele que já está presente, o Realizador das transformações, o Possibilitador de toda relação, o Aumentador da vida.
O fogo, o vento, a água viva, são os símbolos mais potentes com os quais a Bíblia tenta dizer algo dessa Presença Possibilitadora de tudo o que vive, de sua força criadora e criativa, de sua imprevisibilidade, de sua capacidade para gerar sabedoria, saúde e beleza. São símbolos do movimento constante e do fluir silencioso dos processos que gestam a vida.
No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido, fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar divino: “Deus”. Alento, sopro, vento, respiração, força, fogo... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia. Seu calor gera harmonia no caos, realça a beleza e originalidade de cada criatura, dando a cada uma seu lugar, o espaço que necessita para potencializar seu ser. Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.

“O Espírito pairava sobre as águas” (Gen. 1,1). “Pairava” pode ser traduzido também por “vibrava”. Tudo vibra no universo: vibram as partículas e vibram os átomos, vibram as estrelas e vibram as galáxias, vibram os seres humanos, vibram o canto e a dança. Cada som é vibração e também o silêncio é vibração. O coração de cada ser, pequeno ou grande, pedra, planta ou animal está vibrando. A vida é vibração.
O Espírito que “pairava” sobre as águas é a imagem da vibração divina que habita e se move no coração de tudo quanto existe. O Espírito é a respiração universal.
Tudo é energia, movimento, relação, e daí brotam maravilhosamente todas as formas de todos os seres, como de uma misteriosa matriz materna.
E o Espírito sempre está ali silenciosamente presente, como Aquele que vincula e une, como Tecedora constante de redes que fazem crescer, como Reparadora de todos os tecidos que um dia se rasgaram e se separaram do pano único de onde confluem todos os fios da vida.

Hildegar von Bingen dizia que o Espírito é “vida da vida de toda criatura”.
Cada dia é o primeiro dia da Criação; cada instante é o princípio. A Criação está acontecendo e renovando-se a cada instante e uma Energia profunda e criativa nos acompanha, nos anima e nos move. Estamos sendo criados; não estamos prontos e abandonados, não estamos condenados a um plano predeterminado e frio. Em tempos de Pentecostes é bom recordar e dizer a nós mesmos: “Somos criaturas, estamos sendo amorosamente criados(as) e impulsionados(as) a criar. Há esperança”.
Contemplar deste modo a realidade, nos move a confiar, esperar, respirar. Contemplemo-la assim: a realidade inteira alentada e fecundada sem cessar pelo Espírito materno; a realidade inteira carregada de infinitas e novas possibilidades, carregada de Infinito. Podemos esperar.

Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença do Espírito nos perfumes que a humanidade exala: no seu empenho pela paz e pela justiça, na contribuição à integridade da criação, na sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, no potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida, na ação colaborativa, na interdependência, no diálogo e na abertura às diferentes culturas e às diversas tradições espirituais, maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo. Tudo isso é sinal do movimento do Espírito.
Desde o momento em que entramos no mundo, nascemos formando parte de uma rede de relações. Este tecido relacional vai nos expandindo ao longo do crescimento. “Ao final de minha vida abrirei meu coração cheio de nomes” (Pedro Casaldáliga). O Espírito é o que escreve os nomes que vão conformando nossa vida, nos quais fizemos experiência do que significa isso que chamamos amor e que está gravado em nossa origem e em nosso destino, como nossa fome maior e como nosso dom mais apreciado.

A imagem do “soprar sobre eles”, no evangelho de hoje, contém uma riqueza elegante: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria respiração, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo.
É uma imagem que nos faz reconhecer o Espírito como o Alento último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as formas de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele.
Por isso, a comunidade dos seguidores de Jesus, ao compartilhar com Ele o mesmo Sopro, torna-se uma “comunidade conspiratória”, ou seja, “conspirar”, “com-inspirar”, “respirar juntos”; ao soprar o Espírito Jesus e os discípulos respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino...
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus se refira à missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – Aquele que O conduziu e quer conduzir a nós também.
O Espírito e nós não somos dois. Somos “seres espirituais vivendo uma aventura humana” (Teilhard de Chardin). Quando tomamos consciência desta realidade profunda, realizam-se em nós as palavras de Jesus: a unidade de tudo morando em nós, no Amor – outro nome do Espírito -, como única realidade que tudo sustenta e constitui.

Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Por isso, Pentecostes não acontece até que, reconhecendo o Espírito como nossa Identidade mais profunda, nos deixemos guiar por Ele, ou melhor, viver a partir d’Ele, conscientemente conectados com a Fonte Primeira. Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida e a Identidade última de tudo o que é e existe: é nossa festa.


Texto bíblicoJo 20,19-23

Na oração:
“O Espírito urge!” Para abrir-nos a este “Sopro”, de modo que possamos experimentá-Lo no nosso “eu” mais profundo, precisamos calar a mente, abrir-nos diretamente ao que é, e perceber, com prazer, que podemos descansar sempre nisso. Descanso” é outro nome do Espírito.

No silêncio da mente o Espírito se revela a nós, não como uma presença separada, mas como presença interna de tudo o que é: Cuidado, Descanso, Dinamismo... Vida em plenitude. E isso é o que somos todos.