“E se saudais somente os vossos
irmãos, o que fazeis de extraordinário? (Mateus 5,47)
Com estas palavras,
Jesus estabelece a diferença entre o modo pagão e o modo cristão de viver o cotidiano. A “cotidianidade” de nossa
vida está tecida de coisas “ordinárias”, contraposta ao que
ocorre de maneira “extra-ordinária”.
A
maioria das pessoas vive restrita ao ordinário
com o anonimato que ele envolve.
No entanto, no seio do ordinário pode brotar uma mudança, uma transformação.
“Se, às vezes, há
um fastio na rotina, não raro ela revela um mistério insondável” (Cláudio Van Balen).
Quando assumimos o nosso ordinário e o vivificamos com injeções de novidade e de criação,
ele se torna o “lugar” das experiências. E a “experiência é a sabedoria da vida”.
No ordinário
se encontram as “pequenas práticas com sucesso”. O ordinário
pode significar um avanço na aceitação do “pequeno”, das coisas mais
simples... tudo tem sentido, tudo é digno de ser cuidado.
Nesse sentido, o ordinário
que conserva, também pode provocar o surgimento do novo;
o ordinário que aliena,
também está grávido de utopia;
o ordinário que nos acomoda,
também pode ser o lugar da audácia e da iniciativa.
No evangelho de hoje, Jesus pergunta aos seus
seguidores o que fazem de extraordinário. Isso nos leva a
pensar que o cristão deve ser aquele que tem atitudes extraordinárias,
comportamentos extraordinários, ações extraordinárias, etc... Portanto, esta é
uma das características do cristão: ser extraordinário.
No entanto, quando pensamos em “extraordinário”,
pensamos em enormes obras, coisas estrondosas, mirabolantes, etc...
O que é “extraordinário”? A
palavra nos sugere pensar o seguinte: “extra” + “ordinário”.
“Ordinário” é o que está na ordem do dia, nas
regras, nos comportamentos ditos normais de todos, na mesmice do dia a dia.
Isto é o ordinário: acordar, trabalhar, estudar, casar, comprar, consumir,
morrer,…
Milhões de pessoas passam a vida
fazendo o ordinário. E simplesmente “passam”.
Aqueles que fazem coisas “além
desse ordinário”, ou seja, “extra”, são pessoas “extraordinárias”.
Portanto, tudo aquilo que vai além
da normalidade, do comportamento geral, isso é extraordinário.
Dessa forma, tiramos do conceito de
“extraordinário” a necessidade de “coisas enormes”. Mas, coisas mais profundas,
com mais sentido, com “sabor diferente”, com “características diferenciadas”.
O seguimento de Jesus é para
aqueles que querem “algo mais”, que querem o “extraordinário”.
A espiritualidade
é a contracorrente do ordinário. Se, de um lado, o ordinário nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro
lado, a espiritualidade nos
impulsiona para a busca e a descoberta.
Se permanecermos simplesmente no ordinário, então nos tornaremos medíocres e nos contentaremos com o
“menos”.
A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que
conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a
admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico;
é a
espiritualidade que reacende desejos
e sonhos novos, que suscita energias
em direção ao mais;
é a
espiritualidade que faz descobrir, escondida no ordinário, uma Presença absoluta que nos envolve;
é a
espiritualidade que faz saborear o eterno
e o Absoluto no ritmo doméstico e
cotidiano da vida...
é a espiritualidade que projeta a
vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda,
nos alargue e nos impulsione para horizontes novos.
Uma pessoa certa vez disse: “todos
nós somos chamados a sermos santos; e santo não é aquele que faz coisas
extraordinárias, mas santo é aquele que faz as coisas ordinárias de forma
extraordinária”. Há aqui um sentido
profundo: ser uma pessoa “normal”, mas que faz tudo de forma extraordinária.
Fazer bem as coisas, com responsabilidade, com ética, com respeito, com
justiça…
E temos muitas pessoas
extraordinárias no mundo hoje, felizmente. Ocorre que os grandes meios de
comunicação, ordinários (em todos os sentidos da palavra), não divulgam o que
elas vivem: não retribuem violência com violência, são capazes de
entregar o manto e de não dar as costas a quem pede emprestado; amam os
inimigos e rezam por aqueles que as perseguem. Vivem de maneira extraordinária.
Tais pessoas fazem a diferença.
É a “mística” que nos desperta da
letargia do cotidiano. E despertos,
descobriremos que o cotidiano guarda
segredos,
novidades, energias ocultas, forças criativas... que podem sempre conferir novo senti-do e brilho
à vida. O Reino se revela no pequeno,
no anônimo,
no ordinário
e não só no espetacular, no grandioso. É o cotidiano
que nos prepara para as grandes decisões.
Na vida cotidiana, as pessoas
correm o risco de serem apenas imitadoras ou repetidoras, pois temem
se perderem na busca do novo; as respostas
são confirmadas, mesmo que estas sejam velhas e desfocadas e as perguntas
são silenciadas. Fechado em si mesmo o ordinário
torna-se pesado,
desinteressado e frustrado.
As “ações cotidianas insensatas”
podem ser “sensatas” (com sentido), se percebermos Deus presente nelas. Descobrir a presença divina escondida no ordinário
é encontrar-nos acolhidos pelo
abraço do Criador que nos envolve.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas
atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem
uma razão
de ser, uma motivação e um modo de serem feitas que não se deve
à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
O cotidiano
é o que vivemos e/ou fazemos cada dia: o conjunto de circunstâncias, atividades e
relações
que formam a trama da nossa vida através da qual Deus se revela presente e
atuante. Com essa inspiração, o cotidiano
torna-se o “lugar” das experiências.
É na realidade diária que cada
cristão é chamado a viver em comunhão
com Deus e a deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a
inserir-se na trama humana, assumindo o risco da história. Ser cristão inserido
no mundo, em meio às agitações cotidianas, é acima de tudo ter Jesus como
referência de vida: suas palavras, suas ações, seu modo de relacionar-se com o
Pai e com os irmãos...
Quando a vida cotidiana do cristão se torna
monótona e se faz “normal”, é necessário sacudi-la com algum “detalhe não-normal”, que
ajuda para revigorá-la e dar-lhe fecundidade.
Neste sentido, os tempos de oração são os momentos
privilegiados para que toda pessoa, consciente de sua responsabilidade social e
empenhada na transformação de seu “entorno” , possa encontrar em sua
vida cotidiana a fonte e sua
fecundidade transformadora.
Texto bíblico: Mateus
5,38-48
Na
oração:
O
Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos
olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
Suas
atividades diárias formam parte do
seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo
de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas
diárias”?
Nenhum comentário:
Postar um comentário