Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 1º Domingo do Tempo da Quaresma.
“Jesus, cheio do Espírito Santo,
voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito” (Lucas 4,1)
Segundo a tradição, a primeira imagem da
tentação foi uma maçã: uma fruta
vermelha, carnosa, saborosa e brilhante. Seu atrativo aroma penetrou até os
tutanos de nossos ancestrais e eles caíram na armadilha da superficialidade.
Atrai-nos a superfície das coisas, justamente
aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa
sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de
sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial
continua sendo superficial e o reconhecimento, o prestigio, o aplauso ou o
acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras
que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos
critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas
de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa
fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim
florido e consolo nas gretas de nossos desertos.
Livra-nos Senhor desses “espelhismos”
que prometem vida e escondem o vazio!
Ser
tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode ser encontrado em nosso
interior.
Quem não se deixa conduzir pelo Espírito, não é
capaz de acessar a própria interioridade, permanece na superfície de si mesmo e
se deixam enredar pelos estímulos externos.
Muitos já não conseguem mais recolher-se e
voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de
sua vida, o ponto de equilíbrio interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos
a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do
centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço,
a água viva, a energia, as certezas para viver.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se
constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo
mesmo. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos
de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas
alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se
desumaniza. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as
grandes causas... (cf. Bauman).
O Evangelho de hoje insiste que Jesus se deixa
conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma integração a partir de seu
coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas.
Tradicionalmente, as tentações de
Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus
nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas.
Tal interpretação não capta em toda sua
profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
Elas não são tanto uma prova a superar quanto
um projeto que deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus,
depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em
oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do
Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo
assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto
interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude
frente ao Pai: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu
próprio interesse ou escutando fielmente sua Palavra? Como deverá atuar?
Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a
vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo
uma vida pobre, como expressão de solidariedade aos mais excluídos?
Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano
a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o
coloque pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e
reparti-lo entre todos.
Em vez de seduzir o povo com prodígios e
espetáculos, Jesus prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e
caminhos, na convivência criativa e nos encontros humanizadores.
Jesus não buscará o poder da dominação política
e da imposição pela força. Preferirá o caminho do serviço. O caminho de Jesus é
absolutamente novo. Nem impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do
ser humano. Só servir.
Aqui também é preciso nos
perguntar:
* Qual é a nossa provação? Qual é a nossa tentação? O que é que nos
seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso
caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas
vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que
nos afasta do melhor de nós.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição
humana. Trata-se de um conflito que dilacera a existência por dentro.
Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso para o
alto, para a plena liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por
outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a fraqueza, toda sorte de
limitações... Que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas
o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a
sedução e a tendência para o
egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos
simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
Nossa liberdade
sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois
dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso
interior (um de alargamento ou expansão de si
mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento,
resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois
dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para
deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos
conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não
sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em
direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Às
tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo
expansivo.
Texto bíblico: Lucas 4,1-13
Na oração:
A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a
tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações
com o mundo e com aqueles ele-mentos que de modo mais decisivo põe em perigo
nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É
uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade
desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se
esvazia.
- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida?
Na aparência ou no interior?
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