sábado, 13 de fevereiro de 2016

“Não nos deixeis cair em tentação”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 1º Domingo do Tempo da Quaresma.


“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito” (Lucas 4,1)

Segundo a tradição, a primeira imagem da tentação foi uma maçã: uma fruta vermelha, carnosa, saborosa e brilhante. Seu atrativo aroma penetrou até os tutanos de nossos ancestrais e eles caíram na armadilha da superficialidade.
Atrai-nos a superfície das coisas, justamente aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial continua sendo superficial e o reconhecimento, o prestigio, o aplauso ou o acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim florido e consolo nas gretas de nossos desertos.
Livra-nos Senhor desses “espelhismos” que prometem vida e escondem o vazio!

Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode ser encontrado em nosso interior.
Quem não se deixa conduzir pelo Espírito, não é capaz de acessar a própria interioridade, permanece na superfície de si mesmo e se deixam enredar pelos estímulos externos.
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço, a água viva, a energia, as certezas para viver.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido:  o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).

O Evangelho de hoje insiste que Jesus se deixa conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma integração a partir de seu coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas.
Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas.
Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
Elas não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente ao Pai: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente sua Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade aos mais excluídos?

Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o coloque pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e reparti-lo entre todos.
Em vez de seduzir o povo com prodígios e espetáculos, Jesus prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e caminhos, na convivência criativa e nos encontros humanizadores.
Jesus não buscará o poder da dominação política e da imposição pela força. Preferirá o caminho do serviço. O caminho de Jesus é absolutamente novo. Nem impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do ser humano. Só servir.
Aqui  também é preciso nos perguntar:
* Qual é a nossa provação? Qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que nos afasta do melhor de nós.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito que dilacera a existência por dentro.
Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso para o alto, para a plena liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a fraqueza, toda sorte de limitações... Que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a sedução  e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.

Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Às tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo.

Texto bíblico:  Lucas 4,1-13  

Na oração:
A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles ele-mentos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.

- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida? Na aparência ou no interior?

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