“Ilhas de compaixão num mar de indiferença” (Papa Francisco)
“...há um grande abismo entre nós” (Lc 16,26)
A
parábola deste domingo talvez seja uma das mais “escandalosas” e verdadeiras do
Evangelho. Certamente, seu conteúdo é impactante e desmascara a profunda
divisão que há entre “epulões” e “lázaros” em nosso
mundo; parábola inquietante pois coloca em questão a “ordem” econômica na qual
estamos inseridos.
Sob esta
perspectiva, a parábola conta a verdade invertida de nossa humanidade: o mundo
“epulão”, próprio daqueles que só vivem para alimentar sua vaidade e seu prazer
à custa dos pobres, está destinado à destruíção, não por castigo externo de
Deus, mas por sua própria condição de fechamento e indiferença; eles se
alimentam e engordam para a morte, ao rejeitarem o caminho de vida que se faz
visível na ajuda mútua e no amor aberto aos mais necessitados.
Este é o
tema: um rico fechado em sua riqueza, apodrece com ela, ou seja, perde sua
humanidade e se condena, não porque tenha feito algo contra o pobre Lázaro, mas
porque não demonstrou compaixão com aquele que é vítima de uma estrutura social
e econômica injusta.
Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se
abre porque ela o fascina, e, sem perceber, a narrativa o leva a outro nível.
De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até
então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de olhar-se de
modo diferente.
Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é
importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os
especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais
primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar.
Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, ou do filho pródigo que retorna
à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem
compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.
Talvez ao contar a parábola do “rico
e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se
envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de
famintos?...”
Se esta parábola não provoca em nós nenhum
tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados
pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação
desse escândalo..., é sinal de que a desumanização chegou ao fundo do poço.
Na parábola do evangelho de hoje aparecem
três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza
agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras,
impuro, sem ninguém que o acolha, a não ser os cachorros que lambem suas
feridas. O abismo que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.
A coexistência de riqueza e pobreza é, em
si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é
um flagrante violação da convivência humana, uma ofensa ao fundamento dos
direitos humanos. “O luxo de uns converte-se em insulto
contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28).
O “rico e Lázaro” constituem um enorme
escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato
de serem indigentes ao lado de opulentos.
O foco para compreender o sentido da
parábola é o pobre Lázaro, sentado à
porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os
tempos. Deus vem até nós na pessoa do excluído, sentado à nossa porta, para nos
ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.
A parábola é cheia de ironia. Para começar,
o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente
sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um
adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o
pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele
tinha identidade; o rico era tão pobre que só tinha bens.
Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de
Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. Este pensa ter fé
e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao
necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para lhe
refrescar a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o
pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.
A chave de compreensão da parábola podemos
encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande
abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença
do rico frente
a presença do pobre à sua porta. Ele não
tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto.
O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não
escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus, nem contra o pobre;
unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a
riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas
relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
A vivência da compaixão requer uma
sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou
petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem
sentir-com-os-outros.
Não é estranho que o
evangelho denuncie, com todo vigor, a indiferença, como a atitude
mais negativa que rompe toda possibilidade de encontro. É totalmente coerente
se temos em conta que a indiferença é justamente o oposto à compaixão,
que constitui o núcleo da mensagem de Jesus.
A compaixão nos faz
tremer “nas entranhas” frente à dor, alheia ou própria, e nos move a lhe dar
uma resposta eficaz. A indiferença nos adormece no pequeno refúgio do ego.
A compaixão é a
linguagem de Deus que nos salva da indiferença e do fechamento em nós mesmos. É
um amor que nos expande em direção aos outros, sobretudo os mais excluídos e
perdidos.
Assim afirmou o Papa
Francisco: “os
cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.
A conclusão de tudo isso parece clara. Para
viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade
diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.
A cegueira diante dos outros, sintoma de
uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos
restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de
sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.
A transformação do coração exige um
despertar de nossa sensibilidade. O discípulo de Jesus, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá
da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando
também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada
é o motor da sua vida e da sua conduta. E os “abismos” serão superados.
Portanto, mediante uma acolhida
contemplativa da Parábola deste domingo, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da
realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais
parecida com a d’Ele.
À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos tornar presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossas casas para acolhê-los.
Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 16,19-31
Na oração:
Em chave de interioridade: carregamos um
pobre Lázaro em nosso interior (feridas, fracassos, traumas...) que está à
porta do rico ego e que clama por alimento, atenção, cuidado... O ego está
cheio de si, prepotente, perfeccionista e não é capaz de abrir a porta do
próprio interior para deixar o “Lázaro” entrar em sua casa.
Criamos um abismo interior: divisão,
conflito... que se transforma em um inferno.
Basta abrir a porta para acolher o Lázaro:
é através dele que Deus entra em nossa vida.
Quem tem sensibilidade e compaixão para
acolher seus “lázaros interiores”, também terá sensibilidade para acolher os
lázaros vítimas das estruturas sociais e econômicas injustas.
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