quinta-feira, 25 de setembro de 2025

“Ilhas de compaixão num mar de indiferença”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 26º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

Ilhas de compaixão num mar de indiferença (Papa Francisco) 

“...há um grande abismo entre nós” (Lc 16,26) 

A parábola deste domingo talvez seja uma das mais “escandalosas” e verdadeiras do Evangelho. Certamente, seu conteúdo é impactante e desmascara a profunda divisão que há entre “epulões” e “lázaros” em nosso mundo; parábola inquietante pois coloca em questão a “ordem” econômica na qual estamos inseridos.

Sob esta perspectiva, a parábola conta a verdade invertida de nossa humanidade: o mundo “epulão”, próprio daqueles que só vivem para alimentar sua vaidade e seu prazer à custa dos pobres, está destinado à destruíção, não por castigo externo de Deus, mas por sua própria condição de fechamento e indiferença; eles se alimentam e engordam para a morte, ao rejeitarem o caminho de vida que se faz visível na ajuda mútua e no amor aberto aos mais necessitados.

Este é o tema: um rico fechado em sua riqueza, apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito algo contra o pobre Lázaro, mas porque não demonstrou compaixão com aquele que é vítima de uma estrutura social e econômica injusta.

Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se abre porque ela o fascina, e, sem perceber, a narrativa o leva a outro nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de olhar-se de modo diferente.

Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, ou do filho pródigo que retorna à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.

Talvez ao contar a parábola do “rico e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de famintos?...”

Se esta parábola não provoca em nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação desse escândalo..., é sinal de que a desumanização chegou ao fundo do poço.

Na parábola do evangelho de hoje aparecem três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras, impuro, sem ninguém que o acolha, a não ser os cachorros que lambem suas feridas. O abismo que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.

A coexistência de riqueza e pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é um flagrante violação da convivência humana, uma ofensa ao fundamento dos direitos humanos. “O luxo de uns converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28).

O “rico e Lázaro” constituem um enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.

O foco para compreender o sentido da parábola é o pobre Lázaro, sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do excluído, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.

A parábola é cheia de ironia. Para começar, o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele tinha identidade; o rico era tão pobre que só tinha bens.

Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. Este pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para lhe refrescar a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.

A chave de compreensão da parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente

a presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto.

O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus, nem contra o pobre; unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.

A vivência da compaixão requer uma sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem sentir-com-os-outros.

Não é estranho que o evangelho denuncie, com todo vigor, a indiferença, como a atitude mais negativa que rompe toda possibilidade de encontro. É totalmente coerente se temos em conta que a indiferença é justamente o oposto à compaixão, que constitui o núcleo da mensagem de Jesus.

A compaixão nos faz tremer “nas entranhas” frente à dor, alheia ou própria, e nos move a lhe dar uma resposta eficaz. A indiferença nos adormece no pequeno refúgio do ego.

A compaixão é a linguagem de Deus que nos salva da indiferença e do fechamento em nós mesmos. É um amor que nos expande em direção aos outros, sobretudo os mais excluídos e perdidos.

Assim afirmou o Papa Francisco: “os cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.

A conclusão de tudo isso parece clara. Para viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.

A cegueira diante dos outros, sintoma de uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.

A transformação do coração exige um despertar de nossa sensibilidade. O discípulo de Jesus, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada é o motor da sua vida e da sua conduta. E os “abismos” serão superados.

Portanto, mediante uma acolhida contemplativa da Parábola deste domingo, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais parecida com a d’Ele.

À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos tornar presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossas casas para acolhê-los.

 Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 16,19-31

Na oração:

Em chave de interioridade: carregamos um pobre Lázaro em nosso interior (feridas, fracassos, traumas...) que está à porta do rico ego e que clama por alimento, atenção, cuidado... O ego está cheio de si, prepotente, perfeccionista e não é capaz de abrir a porta do próprio interior para deixar o “Lázaro” entrar em sua casa.

Criamos um abismo interior: divisão, conflito... que se transforma em um inferno.

Basta abrir a porta para acolher o Lázaro: é através dele que Deus entra em nossa vida.

Quem tem sensibilidade e compaixão para acolher seus “lázaros interiores”, também terá sensibilidade para acolher os lázaros vítimas das estruturas sociais e econômicas injustas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Os pobres são os assessores do Rei Eterno

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 25º. Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Os pobres são os assessores do Rei Eterno (Santo Inácio de Loyola) 

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9)

 

A parábola do evangelho deste domingo não pretende se referir em absoluto à corrupção e ao roubo, mas ela está centrada numa questão radical: “Os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”.

Jesus, na parábola, não louva o mal administrador por sua péssima administração e roubos. O que Jesus quer destacar é sua “inteligência” e “esperteza” para garantir seu futuro, a astúcia com que atua para atrair a benevolência dos credores de seu amo.

Não devemos imitá-lo na sua injustiça, mas na sua previdência. O administrador infiel é um filho deste mundo; deixa-se guiar pelo cuidado de sua existência terrena. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.

E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente e com esperteza, utilizando todos os recursos em favor da vida.

Jesus reconhece a astúcia dos “filhos deste mundo” utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta; para aqueles que o seguem, Jesus revela a necessidade de serem astutos para fazer o bem e lutar pela justiça; quer que os “filhos da luz” sejam astutos positivamente: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos diante dos mecanismos do mal e usem da criatividade para o bem do Reino.

O administrador astuto, quando foi denunciado por desvios dos bens do patrão, agiu pensando exclusivamente nele, procurando abrir para si um caminho no futuro imediato, para continuar fazer o que sempre fazia: roubar.

Quando o dinheiro se converte no “deus” a quem adorar, o ser humano se deprecia: direitos humanos em liquidação, a educação, a saúde, a moradia..., tudo é deixado de lado.

O dinheiro, como meio, tem sua importância, mas é preciso estar atento aos sinais de alerta antes de atravessar essa sutil fronteira que leva à ambição, à cobiça e à avareza, até transformar a pessoa num ser que já não sabe valorizar o que acontece por dentro, sente-se diferente e distante do resto da humanidade.

Em cada um de nós convivem a luz e as trevas. A parábola deste domingo parece conter uma profunda ironia, ao confrontar-nos conosco mesmo e perguntar-nos de que maneira procedemos nos assuntos que concernem às “trevas” (ego) e naqueles que potencializam a luz que somos.

A experiência nos diz que quando é nosso ego que toma iniciativa, ele ativa meios, recursos, táticas, estratagemas..., com a finalidade de sobressair vaidoso e assegurar sua sobrevivência (como faz o empregado da parábola, que representa, justamente, o nosso próprio ego e seu mundo de interesses).

O que ocorre com a luz, que é a nossa verdadeira identidade? Que fazemos com o melhor de nós mesmos? Se investíssemos tanta motivação e tantos meios para que nossa verdadeira identidade se manifestasse e deixasse sua marca, nosso mundo seria bem diferente.

A parábola e as sentenças de Jesus trazem à tona a questão da riqueza no caminho espiritual, com um destaque fundamental: diante do risco de absolutizá-la (endeusá-la), requer-se lucidez (astúcia) para usá-la como instrumento a serviço da vida.

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Estas palavras de Jesus não podem ser esquecidas nestes momentos por nós que nos sentimos seus seguidores, pois contém a advertência mais grave que Jesus deixou à sua comunidade. O dinheiro, convertido em ídolo absoluto, é o grande inimigo que impede a construção de um mundo mais justo e fraterno, querido por Deus.

Infelizmente, a riqueza se converteu, no nosso mundo globalizado, em um ídolo de imenso poder que, para sobreviver, exige cada vez mais vítimas, desumaniza e empobrece cada vez mais a história humana; assim nos encontramos enredados por uma crise gerada, em grande parte, pela ânsia de acumular.

Praticamente tudo se organiza, se move e se dinamiza a partir dessa lógica: buscar mais produtividade, mais consumo, mais bem-estar, mais prestígio, mais poder sobre os outros... Esta lógica é destruidora; se não a estancarmos, pode colocar em perigo o ser humano e destruir a Casa comum.

Jesus nos alerta que, a primeira coisa a fazer, é tomar consciência daquilo que está acontecendo. Esta não é só uma crise econômica. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. A busca da própria segurança é a base da tentação pelo dinheiro.

De fato, nossa relação com o dinheiro nunca é mera e exclusivamente funcional, econômica, monetária, de valor de troca. Sempre há um “algo mais” em nossa vinculação com ele.

Provavelmente, poucas relações com o mundo material de objetos estão tão “carregadas” afetivamente como esta do dinheiro. A atração, o apego, a dificuldade para desprender-nos dele... e, muitas vezes, uma forte ambivalência, ou seja, uma polaridade de sentimentos e afetos contrários em relação com esse objeto que progressivamente vai se fazendo tão determinante em nossa existência. Compreender as vinculações íntimas que todos mantemos na relação com o dinheiro nos ajudará a compreender, sem dúvida, a lógica perversa que pode ser desencadeada na relação conosco, com o outro e com a criação.

Nos relatos do Evangelho, o “dinheiro” é designado com o termo “mamón”, que só aparece quatro vezes no Novo Testamento e sempre na boca de Jesus. Trata-se de um termo que provém da raiz aramaica “aman” e significa qualquer riqueza sobre a qual o indivíduo apoia sua existência.

Além de uma evidente e fundamental função de valor de troca que possui, são múltiplas e variadas as significações que o dinheiro pode chegar a desempenhar para cada um: meio com o qual ganhar afeto, um suporte de prestígio e segurança pessoal ou um instrumento poderosíssimo de poder sobre os demais, um meio de defesa e inclusive de ataque sobre os outros, um acréscimo de valia pessoal, tendências perversas de exibição e ostentação frente os outros, corrupção...

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos”: é um apelo a investir tudo o que temos a serviço daquilo que vale verdadeiramente: nosso verdadeiro ser, alimentar comunhão com os outros, viver a partilha...

Utilizamos com sabedoria o “dinheiro injusto”, quando compartilhamos com aquele que passa necessidade.

Nunca poderemos atuar como donos absolutos daquilo que possuímos. Somos simples administradores. A única coisa que se conserva é a que é partilhada. O que não se partilha, se perde.

No fundo, Jesus nos quer dizer assim: “Empregai vossa riqueza injusta para ajudar os pobres; ganhai sua amizade compartilhando com eles vossos bens. Eles serão vossos amigos e, quando na hora da morte o dinheiro já não sirva para mais nada, eles os acolherão na casa do Pai”.

Dito com outras palavras: a melhor forma de “lavar” o dinheiro injusto diante de Deus é dividi-lo com seus filhos mais pobres.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 16,1-13

Na oração:

Traço característico, que define a qualidade de vida de uma pessoa que segue Jesus Cristo, é a simplicidade de vida, entendida no sentido de um nível econômico simples e despojado.

- Como testemunhar que se pode ser feliz vivendo uma cultura da gratuidade, da moderação, da solidariedade, possibilitando uma partilha dos bens de maneira mais igualitária e justa para todos os seres humanos e que favoreça melhores condições de realização humana?

- A quem sirvo? Quem é o “senhor” que comanda o meu coração?

- Deus pôs em minhas mãos tantos dons, tantas possibilidades... E que estou eu fazendo com tanta “riqueza” que o Senhor me confiou? Sou um(a) administrador(a) fiel e solícito(a), ou vou desperdiçando pela vida os “bens” (talentos e oportunidades) que o Senhor me deu e continua me cumulando?

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Na Cruz revela-se o Amigo dos crucificados

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Festa litúrgica da Exaltação da Santa Cruz (Ano C).


“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo”

 

Celebramos, neste domingo, a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, a mortificação, as cruzes de cada dia... Nela mesma, a Cruz não tem sentido (instrumento de tortura), mas o que aconteceu nela: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados da história.

Assim, à luz do Crucificado, vemos a Cruz como fonte de vida em um mundo de morte. A Cruz tem suas raízes no deserto em um momento de morte e como sinalo de vida (1ª. leitura). Agora, a Cruz é reveladora do Amor com que Deus ama o mundo e fonte de vida para que “todo o que n’Ele crer, tenha a vida eterna”.

No rosto desfigurado do Crucificado revela-se um Deus surpreendente, que rompe nossas imagens convencionais d’Ele e põe em questão toda prática religiosa que pretenda prestar culto a Ele, esquecendo o drama de um mundo que continua crucificando os mais indefesos e inocentes. Se Deus morreu identificado com as vítimas da maldade humana, sua crucifixão se apresenta como um desafio inquietante para os seguidores de Jesus. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas.

Deus não está de acordo com a Cruz, mas está a favor do Crucificado. Na Cruz de Jesus se revela, ao mesmo tempo, o que Deus não quer (o sofrimento das vítimas) e o que Deus quer: a vida e a felicidade para todos, o entendimento e a reconciliação entre as pessoas e os povos, o trabalho por um mundo mais justo, no qual seja possível a vida para todos os filhos e filhas d’Ele.

Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, foi a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão foi expressão de uma opção, assumida fielmente por Ele até o fim.

A segunda paixão foi a da cruz (patíbulo), imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não foi fruto da opção de Jesus e nem fazia parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada pelo mesmo Jesus.

Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morreu na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional ao Pai e o compromisso com os excluídos.

No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não foi um evento, mas um modo de viver, pois perpassou toda a vida de Jesus. 

“Cruz-staurós” foi vivida a partir de uma causa: o Reino.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não foi um “peso morto” a ser suportado; ela foi consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significou passividade e resignação, pois ela brotou de uma vida plena e transbordante. Nesse sentido, a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir. A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11, 28-30). Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.

Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode

encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus também acolheu e integrou a “cruz patíbulo”, dando um sentido a ela e revelando sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, na Cruz assumida o Crucificado se fez amigo dos crucificados.

Cruz assumida por Jesus manifestou-se “expansiva” porque foi expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projetou para a “margem” onde Ele revelou uma presença despojada, vulnerável, que se identificou com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifestou que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele” a dor de seus filhos e filhas.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.

São cruzes que nós mesmos colocamos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas nos fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus, que leva a Cruz da fidelidade, nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.

A festa da “exaltação da Santa Cruz” nos faz “descer” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, o compromisso com a vida e com a causa do Reino, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.

Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.

É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, inspirados no Crucificado, consomem suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com suas presenças ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamem; são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer; pessoas solidárias que ajudam a carregar as cruzes de tantos que são rejeitados, incompreendidos, odiados, perseguidos...; pessoas que visibilizam a Cruz da fidelidade de Jesus.


 Reflexões Evangélicas: A OBRA REDENTORA DE JESUS CRISTO


Texto bíblico:  Evangelho segundo João 3,13-17

 

Na oração: 

Associar-se ao Crucificado em sua “descida” para “subir” com Ele significa, também, arrancar do próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-se possuir pela glória de Deus.

- Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplarmos mais atentamente, logo descobriremos, nesse Rosto, o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o afeta? o deixa inquieto? O incomoda?

sábado, 6 de setembro de 2025

Renúncias que nos humanizam

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 23º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Qualquer um se vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33)

 

Novamente nos encontramos com um texto que faz parte da grande viagem de Jesus a Jerusalém. Acompanham-lhe seus discípulos e grande multidão, realizando um caminho como uma grande catequese itinerante. 

Ao longo deste percurso, Jesus vai indicando novas exigências que vão modelando o estilo de vida de quem decide seguir seus passos. Jesus já é percebido como um grande líder que se faz “palavra” para transformar interiormente os seus ouvintes e seguidores. Não é uma palavra neutra, às vezes gera conflito, mas sim respeitosa; não impõe normas, mas sim propõe como situar-se frente os diferentes campos da existência humana. Vai crescendo a oposição entre aqueles que são questionados em sua maneira de viver e, especialmente, entre aqueles que vivem apegados ao poder e às riquezas: fariseus, mestres da lei e outros setores opressores.

Uma das interpretações equivocadas deste radicalismo é entender a mensagem de Jesus como que dirigida a um grupo privilegiado, que seriam os cristãos de primeira linha. Jesus não se dirige a uns poucos, mas à multidão que o acompanhava. No entanto, o seu apelo é dirigido a cada um pessoalmente: “se alguém vem a mim...” A resposta deve ser pessoal e adulta.

Para a primeira exigência a chave está na frase: “... inclusive da sua própria vida”. O amor a si mesmo pode ser nefasto quando se refere ao falso eu que desemboca no egoísmo. Esse falso eu também tem seu pai, sua mãe, seus filhos e irmãos. 

O ego busca “os primeiros lugares”, sonha destacar-se, ser visto, sentir-se reconhecido; ama o aplauso e os gestos de admiração; encanta-se com roupas especiais e sinais distintivos de seu valor (títulos); quer sempre ter razão e impor-se aos outros...Frente a esta tendência, a palavra de Jesus não é só uma “receita”; Ele vai à raiz: o que Ele pede é o esvaziamento do ego com seus interesses e parentes; apoiando nossa existência no falso eu, falseamos toda nossa vida e a frustramos.

Aqui não se trata de uma rejeição da família, mas de considerá-la a partir de outra perspectiva, mais ampla e rica: nosso olhar e nosso coração centrado na pessoa de Jesus.

Também não se trata de comparar o amor a Deus e o amor aos membros de nossa família. O seguimento não é incompatível com o amor à família. Seguir Jesus implica um amor que vai mais além de um amor que nasce do sentimento familiar, mas não estará nunca contra. Seguir Jesus nos ensinará a amar mais e melhor também nossos familiares.

seguimento de Jesus não pode consistir numa simples renúncia, ou seja, algo negativo, mas eleger o melhor para nós. Trata-se de uma oferta de plenitude. 

É neste contexto que aflora uma compreensão mais profunda da expressão “carregar a sua cruz”.

Nós cristãos temos esvaziado a Cruz de seu verdadeiro significado. Há alguns que pensam que “carregar a cruz” é buscar pequenas mortificações, privando-se de satisfações para chegar – pelo sofrimento – a uma comunhão mais profunda com Cristo. Mas Jesus quando fala da Cruz não está convidando a uma “vida mortificada”. Para outros, “carregar a cruz” é aceitar passivamente as contrariedades da vida, as desgraças ou adversidades. Mas a Cruz é consequência de uma opção pelo Reino em favor dos últimos.

 “Carregar a sua cruz”, portanto, significa acolher aquilo que diariamente cruza o nosso caminho; é acolher-nos com todas as nossas contradições.

“Tomar a sua cruz” significa abraçar-nos com todas as forças e todas as fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e os defeitos, as dimensões imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente... 

Se nos sacrificamos, para estar ao lado daquele que sofre, é para tirá-lo de seu sofrimento, mesmo que seja só para consolá-lo e acompanhá-lo. Nunca é sofrimento buscado, mas uma dor ou privação que brota do amor. Jon Sobrino afirma que “só podemos crer no crucificado se estivermos dispostos a tirar da Cruz aqueles que estão dependurados nela”.

As imagens que Jesus utiliza – desapegar-se de seu pai, mãe, mulher e filhos... e carregar a cruz – apontam para a radicalidade da entrega da vida, que se faz cada vez mais oblativa, aberta e comprometida; nesta entrega, deixamos transparecer nossa essência, aquilo que realmente somos.

Não se trata, portanto, de dolorismo, nem de renúncia voluntarista: ambas atitudes costumam inflar o ego.

Trata-se, uma vez mais, de compreensão e coerência. Como quero viver? Para o ego e seus interesses ou ancorado em minha verdadeira identidade, que está em profunda união com a Vida?

O cristão não ama e nem busca o sofrimento; não o quer nem para os outros e nem para si mesmo. Seguindo os passos de Jesus, luta com todas suas forças para arrancar o sofrimento do coração da existência. Mas, quando é inevitável, sabe “levar a Cruz” em comunhão com o Crucificado.

Carregar a cruz não é ir pelo mundo arrastando os pesares da vida a partir de uma resignação paralisante, mas a partir de uma acolhida consciente de tudo o que constitui nossa própria vida: consolação e desolação, vitórias e fracassos, avanços e recuos, plenitude e atrofia existencial...  amarga. Saber integrar aquilo que humanamente é frustrante nos impulsiona a uma transformação e avanço na vida. Quando não enfrentamos passos a viver submetidos e nos situamos como vítimas. A resignação nos ata, nos bloqueia; a aceitação nos mobiliza para buscar outras opções e não nos desviar de nossa rota essencial.

Cruz que devemos levar atrás de Jesus é a mesma que Ele levou: a Cruz como consequência da fidelidade até o final. A Cruz nunca será um fim nem uma meta. Nem sequer um meio para algo. A Cruz de Jesus e daquele que o segue, sempre é consequência de coerências e de fidelidades ao Evangelho.

É neste horizonte de fidelidade até o fim no seguimento que Jesus apresenta duas pequenas parábolas: a construção de uma torre e o rei que vai fazer uma guerra.

Com a imagem da construção da Torre, Jesus nos convida a descobrir o prazer de construir nossa própria vida no seu Seguimento, sem nos fixar em imagens falsas do nosso eu, mas sim na imagem interior que Deus tem de cada um de nós. Isso acontece quando desperdiçamos toda nossa energia na luta contra nós mesmos e contra aparentes erros e fraquezas. A força que desperdiçamos vai fazer falta para avançar na vida.

É comum iludir-nos com facilidade e lançar-nos rapidamente a qualquer empresa; também é comum que, com a mesma rapidez, abandonemos o empreendimento assumido e fracassamos. Tínhamos calculado mal nosso empenho ou nossa motivação. A isso se refere o dito popular que se aplica à pessoa que começa com força, mas que rapidamente empaca: tem “arrancada de cavalo e ritmo lento de burro”.

Que faltou aí? Provavelmente faltou realismo: o desejo e a motivação foram grandes, mas as condições e os meios necessários não foram suficientes. Tem mais força os medos do ego que fazem a pessoa girar em torno a si mesma. São os chamados “fervores indiscretos” (não discernido) ou “fogo de palha”, sem consistência; ou “ideais exagerados”, mas sem consistência real.

Discernimento, honestidade, coerência e profundidade: quatro pilares de nossa vida cristã no caminho do seguimento e da identificação com Jesus Cristo. 

Macaco - Buenos tiempos para un pinchazito))) Egos obesos, corazones  anorexicos))))) Ego-Land))))) 🐒📡🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫 | Facebook

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 14,25-33

 

Na oração: 

A pessoa se define por suas decisões; elas marcam a meta.

É verdade que as decisões na vida são para as grandes ocasiões. Mas também o são para as pequenas.

O exercício constante da arte de decidir tem muita importância, não só pela extensão diária de suas oportunidades como também isto constitui a melhor preparação para o momento das “grandes viradas”. As pequenas decisões diárias são a trama mesma da vida, o clima da alma e a têmpera do espírito; elas definem, momento a momento, a atitude interna e criam o estado permanenteque define a arte de viver, que é a arte de decidir.

- Suas decisões (pequenas e grandes) são tomadas pela emoção, pela pressão..., ou são frutos de um discernimento, à luz da ação do Espírito?