Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 15º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Aproximou-se
dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas” (Lc 10,34)
Toda
parábola apresenta-se como uma narrativa breve, de uma beleza especial,
fácil de ser guardada na memória dos ouvintes, que podem continuar ruminando
seu significado. Normalmente, quem a narra, não faz aplicações concretas, nem
apresenta uma “lição de moral”; pelo contrário, deixa aberto o caminho para a
criatividade daqueles que a escutam, para que tirem suas conclusões pessoais.
A parábola do “bom samaritano” é
inspiradora para a construção de uma nova cultura comunitária, inclusiva e
solidária. Nesta narrativa, além do legista curioso, há uma série de
personagens e suas atitudes: um homem, os bandidos, um sacerdote e um levita,
um samaritano, um dono de hospedaria, tudo determinado por um caminho de “descida”
que esconde armadilhas para pessoas que seguem sozinhas pela vida.
A parábola de
Jesus des-cobre, re-vela e des-vela uma doença que, no fundo, são os nossos
estilos de vida, onde já não há mais lugar para o humano, não há lugar para o
encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida
interior rica... Mesmo no campo religioso, tudo é cronometrado, tudo é
apressado. Carecemos de uma vida mais intensa de relações, de proximidade, de
abertura ao diferente.
Muitas vezes
estamos fisicamente próximos uns dos outros e, ao mesmo tempo, completamente
ausentes, frios, insensíveis; outras vezes encontramo-nos e só esbarramos uns
nos outros; somos ilhas e não uma comunidade compassiva. O desafio é
restabelecer os vínculos humanos de proximidade e de acolhida, do outro,
sobretudo aquele que é diferente e que está estendido à beira da estrada da
vida.
Na sua essência, o ser humano é um “ser de relações”, está comprometido
com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana
somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o
levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de
humanidade, de compaixão, de bondade... que se expressa numa vida comprometida com
a dignidade humana.
Vive-se continuamente em contato com o “outro”. E o outro
é pessoa; o outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e
enigmático; o outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente,
inédito...
O relato da parábola deste
domingo apresenta um doutor da lei, ou seja, um personagem considerado “justo”
no imaginário da época, que faz a Jesus a única pergunta verdadeiramente
importante: “Mestre,
que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Lucas utiliza um termo preciso, “herdar”:
trata-se de um bem que não é merecido, mas, como a herança, só pode ser
recebido.
Jesus, como bom pedagogo, não
responde diretamente à pergunta, mas convida o próprio interlocutor a encontrar
a resposta. E, de fato, o doutor da lei é perfeitamente capaz de fazê-lo,
unindo dois textos da Torá: a vida é herdada quando se ama a
Deus e o próximo.
Diante da nova
pergunta – “E
quem é o meu próximo?” – Jesus responde apresentando uma cena da vida bem
conhecida. A estrada entre Jerusalém e Jericó era um lugar muito perigoso para
quem se aventurava sozinho, e não raramente, caia em ciladas e emboscadas,
colocando-se em risco a própria vida.
O primeiro
personagem da parábola não possui características particulares; ele é um
“homem”; nenhum esclarecimento sobre linhagem, filiação religiosa ou
moralidade. A única característica sobre a qual Jesus insiste é que este homem
foi vítima de violência e que morrerá se não encontrar ajuda.
Em seguida, Jesus apresenta
dois personagens que, por acaso, se deparam com o infeliz. E aqui o texto deixa
claro a identidade deles: são pessoas respeitáveis, religiosas, um sacerdote e
um levita; ambos têm a mesma reação: passam adiante. A filiação religiosa e a
capacidade de viver a fraternidade não coincidem.
Por fim, entra em
cena um personagem que não tem nada de atraente, ele é um samaritano,
pertencente a um povo desprezado pelos judeus porque se corromperam unindo-se a
outros povos e às suas tradições, negando a fé dos seus pais.
A parábola do
samaritano pode ser iluminada por aquela exortação/súplica de Jesus: “eu quero a
misericórdia
e não sacrifícios” (Mt 12,7) e que aponta para dois modos de
conceber e viver a religião (a relação com Deus e com o outro); uma, vivida com
o coração voltado para os miseráveis (cor-miser) e a outra centrada no culto e
nas leis. E recordemos que Jesus conta a parábola quando lhe é perguntado sobre
o essencial para herdar a vida eterna. A urgência de atender alguém que jaz
prostrado à beira do caminho não pode ser esvaziada por nenhuma desculpa
possível, por mais “religiosa” que seja: o sacerdote e o levita não ficam
justificados, porque não têm justificativas válidas aos olhos de Jesus. Ambos
chegaram pontualmente ao Templo, mas estavam vazios, porque Aquele a quem
buscavam jazia, agonizando, à beira do caminho.
A religião cristã
não se define por seus dogmas, doutrinas, ritos, leis..., mas por se “fazer
próxima” de quem
está à margem.
Implica entrar no fluxo da “proximidade” de Deus, que rompe as distâncias e vem
ao encontro de todo ser humano. Deus tem mais facilidade de se fazer próximo
através das feridas, fracassos...
Se Jesus disse que quem passou ao
largo foram um sacerdote e um levita, os profissionais da religião, o que na
realidade está dizendo é que a religião, muitas vezes, desvia a atenção e o
interesse das pessoas, fixando-se em normas, ritos, sacrifícios que não
alimentam uma sensibilidade solidária para com aqueles que são vítimas e estão
à beira das estradas; com isso, a prioridade da religião é justificada sobre
qualquer outra coisa, mesmo que seja a vida ameaçada, a injustiça sofrida, a
dor humana extrema.
Por isso, tantas
vezes, o centro de atenção dos “encarregados” da religião está no culto
sagrado, na adoração a Deus, que, na lógica deles, são práticas que devem estar
acima daquilo que é meramente humano.
No entanto, para
Jesus, a necessidade humana vem antes da observância religiosa; esta, só tem
sentido quando é expressão de uma presença compassiva e quando mobiliza as
pessoas a se aproximarem e se comprometerem com as vítimas, ou seja, os
excluídos, os feridos e desamparados.
Toda parábola
tem também uma ressonância em nosso interior e os seus personagens são nossos
espelhos; neles, nos vemos. Na parábola do “bom samaritano”, somos todos os
personagens ao mesmo tempo. Eles nos habitam. Somos todos caminhantes e
no caminho nos encontramos com pessoas feridas, isoladas, abandonadas por
pessoas, pelo sistema, pela religião... Com qual deles nos identificamos? Qual
deles queremos ser de verdade, para além da nossa função e da nossa autoimagem?
No fundo só seremos samaritanos se nos
tornamos próximos, irmãos, compassivos. Só seremos o que somos de verdade se
acompanhamos o ferido. Pois, todos somos caminhantes e companheiros de caminho.
Cada um vai por seu próprio caminho, é verdade e assim deve ser; mas todos os
nossos caminhos, por mais diferentes que sejam, se cruzam um dia, a cada passo,
em cada palmo de terra comum. A vida de todos é a mesma vida. O Espírito que
nos habita e nos faz viver é o mesmo que atua em tudo e em todos.
Só respiraremos se nos deixarmos inspirar,
alentar, levar pelo espírito universal da luz e da compaixão, o espírito do
consolo e da esperança. E só então poderemos romper nossos próprios
isolamentos, sanar nossas próprias solidões e feridas, exercitar nossa solitude
sanadora, nosso ser solidário.
Em chave de interioridade, o encontro com o “samaritano” desperta o nosso ser
samaritano; é preciso deixar que ele transite pelas dimensões feridas
de nossa existência. Há muitas situações prostradas em nosso “eu interior”:
feridas, fracassos, traumas, crises, sentimentos feridos... que não foram
acolhidos e nem inte-grados. Nosso ser samaritano, portador do óleo de vida,
vai ungindo e aliviando nossos feridos, acolhendo-os na hospedagem de nossa
existência.
Quem ativa seu ser samaritano e transita pelos caminhos da exclusão
interior, também sentirá despertar uma sensibilidade solidária para com aqueles
que estão prostrados à margem da vida.
Texto bíblico: Evangelho
segundo Lucas 10,25-37
Na oração:
- Como reajo
frente à surpresa e aos imprevistos da vida? Em quê situações passo ao largo, e
por quê?
- Em que sou parecido ao sacerdote e ao
levita?
- Que traços do
bom samaritano os outros poderão descobrir em meu comportamento? Em quê
projetos solidários estou colaborando atualmente?
- Tenho muitas
tarefas a realizar, demasiados compromissos que não deixam espaço à gratuidade
nem à surpresa inesperada e incontrolável?