sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Advento: novo tempo para escutar novas vozes

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

“É dele que falou o profeta Isaías: ‘Voz de quem clama no deserto...’” (Mt 3,3)

 

Segundo a revelação bíblica, o novo está na margem. João Batista e Jesus foram “homens de margem”.

João Batista, por tradição familiar, deveria ter sido sacerdote do Templo, mas ele constrói sua vida e sua missão no deserto e a partir do deserto.

templo é o espaço dos sacerdotes. O deserto é o lugar dos profetas. Os sacerdotes são os encarregados por manter firmes as estruturas religiosas e o cumprimento da lei. Os profetas têm a missão de despertar as consciências e anunciar a novidade de Deus; eles dificilmente se encaixam nas estruturas religiosas centradas na lei e no templo. O profeta é o homem da liberdade de espírito; é aquele que fala, tanto ao povo, como aos sacerdotes, fariseus e letrados, todos apegados ao templo.

As instituições religiosas e o poder político não querem profetas em suas fileiras, pois são homens que pensam, que anunciam, que denunciam a corrupção, que alimentam o ânimo no povo... As instituições querem funcionários que cumpram e transmitam as ordens que emanam do poder, que estejam preocupados com o funcionamento da estrutura religiosa: seus ritos, suas leis, sua doutrina.

O evangelho deste domingo nos apresenta um personagem curioso; veste-se de um modo que chama a atenção e recorda o profeta Elias. Cada um dos quatro evangelistas nos fala de João Batista, destacando aspectos diferentes segundo a finalidade de seu evangelho, porque o Batista teve uma multidão de seguidores e uma importância extraordinária em seu tempo.

O evangelista Mateus dá um salto cronológico, da infância de Jesus à aparição do Batista. E faz isso através da expressão: “por esse tempo apresentou-se João Batista no deserto...”. Tal expressão deixa transparecer a continuidade da História da salvação. Em seguida nos oferece alguns traços característicos para que possamos reconhecer João Batista como um profeta.

“João usava uma roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre”.No tempo de Jesus o modo de vestir era expressão da identidade da pessoa com mais claridade que hoje; sua figura era já um reflexo do que será sua mensagem: desnuda e sem adornos, pura essência.

João Batista não foi um funcionário do Templo; foi profeta, homem audaz, valente, rigoroso, pouco convencional, que no deserto geográfico e pessoal evocava a escravidão do Egito, a liberdade, a austeridade, o caminho, as buscas... O deserto recordava a Palavra que fora dada ao povo no caminho, o maná, a água viva...

“No deserto”: a realidade nova anunciada, aparece fora das instituições e do templo, que seria o lugar mais lógico, sobretudo sabendo que João era filho de um sacerdote.  E isto é afirmado com toda intenção, ou seja, antes de falar do conteúdo da pregação de João, o relato deste domingo está nos dizendo que sua pregação tem muito pouco a ver com a religião oficial, que se havia afastado do verdadeiro Deus.

A conversão, a vida em sintonia com o Evangelho, não acontece no êxito, no centro da religião, no poder, mas no deserto da marginalidade, na pobreza, na austeridade. As periferias, a simplicidade, a austeridade são lugares de pregação e evangelização, não no “centro e nem no poder”.

João era um inconformista que não se encaixava em nada na maneira religiosa de viver das pessoas normais: nem comia, nem vestia, nem vivia, nem prestava culto a Deus como os outros.

“Muitos vinham ao encontro de João”. São propostas duas ofertas de salvação: a oficial, no templo de Jerusalém e a nova, no deserto. As pessoas se afastavam do templo e buscavam a salvação no deserto, junto ao profeta. A religião oficial havia se tornado inútil: em vez de salvar, escravizava. 

Mais tarde, o evangelista conduzirá toda essa multidão a Jesus, em quem encontrará a salvação definitiva.

João Batista grita pela conversão, para confiar e esperar no Senhor. Esperar não é um seguro de vida. A esperança não é ter segurança, mas confiança no futuro de Deus. Converter-se significa desviar o olhar dos centros de poder para a “margem” de João Batista e de Jesus.

Essa foi a missão de João. Apareceu no deserto não como um sacerdote que convida ao culto, mas como profeta que proclama a mudança, a conversão, a abertura à novidade de Quem está chegando. 

É uma voz que clama no deserto. Mas João é muito mais que uma palavra: é toda uma vida que se faz palavra. Ou melhor, é a palavra feita vida, revestida de vida. Ele é o homem que vai na frente na vida. 

Nos profetas fala a voz, mas sobretudo fala a vida.

O curioso em João está no fato de que é o profeta que não fala aos de “fora”, aos que não creem, aos pagãos, aos que estão longe. Pelo contrário, João é daqueles que fala aos “de dentro”, aos que se consideravam bons, aos que diziam que cumprem a lei, aos que atribuíam a si mesmos o título de “filhos de Abraão”.

É fácil ser profeta para os que estão fora, para os religiosamente marginalizados, para os que não creem. 

O difícil é ser profeta para os de dentro, para os de casa, para os que se dizem “filhos de Abraão”. O difícil é anunciar aos de cima a necessidade de mudança e deixar-se conduzir pelo Espírito que move a ir além da religião, a comprometer-se com as vítimas, muitas vezes da própria religião.

Também é difícil ser profeta dentro da própria Igreja; é difícil anunciar a mudança na Igreja; é difícil proclamar as transformações que o Espírito está pedindo à Igreja.

Parece que todos se sentem profetas frente ao Povo de Deus, desde que seja para manter as coisas como sempre foram. Quem se atreve a proclamar que é preciso uma Igreja diferente, mais evangélica, mais compassiva e samaritana, mais sensível e aberta às margens, mais comprometida com aqueles que se foram ou resistem entrar porque não veem nela a verdade que buscam e que precisam?

Quem se atreve hoje a ser profeta da mudança? Quem se atreve a denunciar uma estrutura religiosa pesada, carregada de legalismos e moralismos, correndo o risco de ser declarado “persona non grata” ou simplesmente “suspeita”, como foi o próprio João.

Neste tempo de Advento, a figura de João Batista vem nos dizer que a Igreja precisa de profetas dentro da própria Igreja. A Igreja precisa de profetas que escutem a voz de Deus nos “sinais dos tempos”; precisa de profetas que, em nome de Deus, falem da necessidade de mudança de mentalidade, de conversão profunda e de transformação da realidade, tão injusta e violenta.

O Papa Francisco nos indicou as mudanças de atitudes que precisamos; podemos indicar algumas de grande importância:

- Colocar Jesus no centro da Igreja: “Uma Igreja que não leva a Jesus é uma Igreja morta”.

- Não viver numa Igreja fechada e autorreferencial: “Uma Igreja que se fecha no passado trai sua própria identidade”.

- Atuar sempre movidos pela misericórdia de Deus para com todos os seus filhos; não cultivar “um cristianismo restauracionista e legalista que quer tudo claro e seguro”.

- Buscar uma Igreja pobre e dos pobres; ancorar nossa vida na esperança, não “em nossas regras, nossos comportamentos eclesiásticos, nossos clericalismos”.

Celebrar o Advento é construir a esperança comum. Sempre é tempo de esperança, mas Advento o é de maneira especial. A esperança abre os olhos, a desesperança os fecha. Podemos estar vivendo muito tempo sem perceber o que realmente está acontecendo ao nosso redor, as maravilhas, os pequenos milagres que nos envolvem na vida cotidiana, nas relações humanas, na história da salvação.

A esperança é a onda na qual podemos nos sintonizar com a essência do Evangelho.

Os símbolos do Advento: a segunda semana - Vatican News


Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 3,1-12

 

Na oração:

Ancorado no seu coração e no coração da realidade, que novas “vozes” você está captando? Para onde elas apontam? São vozes de vida? São vozes provocativas, ousadas...?

- Como viver em sua comunidade cristã a missão de ser profeta, prolongando a missão de João Batista?

- Em seu interior e na sua comunidade há lugar para o “novo”, uma nova esperança, uma transformação...?

- Em sua comunidade predomina a estrutura do templo (centralidade do sacerdote) ou a inspiração do deserto?

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Desatai o Futuro!

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

“Vigiai porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (Mt 24,42)

 

Mais uma vez nos deparamos com ritos de passagem: final de ano litúrgico, a expectativa ardente alimentada pelo Advento, a memória natalina, a ansiedade diante dos desafios do novo ano que virá...

Advento: tempo celebrativo marcado pela gratidão, para acolher as experiências vividas e aprender com elas; tempo de inspiração e criatividade diante da certeza do novo; e, sobretudo, tempo para re-compor a esperança, tantas vezes reprimida ao longo do ano.

Advento nos situa no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.

Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.

esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. 

Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e inquietudes, que constituem o atual momento histórico, queremos dar vez a um brado de esperança e expressar a fé no futuro da nossa vida.

Mesmo diante dos profundos dilemas sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”.

Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias: “Há uma esperança para o teu futuro” (31,17).

Nesse sentido é que compreendemos a esperança como geradora do futuro; ela se revela como espera criativa e nos prepara para acolher as surpresas da vida.

Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala. Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera. 

futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso, alimenta a solidariedade, desperta a ternura, a acolhida compassiva... E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo.

“Estamos abastecidos de futuro” (Pedro Arrupe, sj). É preciso desatá-lo.

Nossa concepção de futuro se atrofiou: vivemos “tempos sem futuro”. Não podemos prever o futuro com segurança. Hoje, o futuro se apresenta a nós muito mais aberto que em qualquer outra época de nossa humanidade. Os conhecimentos, os meios de comunicação, a tecnologia... não nos asseguram uma certeza do que virá. Aventurar no futuro torna-se cada dia mais complexo e difuso, pois predomina a incerteza que nós mesmos geramos.

Vivemos uma geração que teme o futuro; por isso vivemos um “presente esticado” porque o futuro nos apavora. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente.

Precisamente porque faltam valores e um sentido para a existência é que se irrompe o medo do futuro, a acomodação, o refúgio no efêmero e no imediato, sem raízes e sem esperança. O medo do futuro nos ajuda a entender a mediocridade e o vazio do presente. 

Não esqueçamos que o Advento é toda uma possibilidade de vida que temos à frente. Por isso o grande grito deste primeiro domingo é “Vigiai!” porque “não sabeis quando virá o vosso Senhor”.

Ninguém vigia o passado que já passou e já não existe mais. Vigiamos o que está por vir, o que está vindo. A vigilância olha sempre o futuro. Um futuro que depende de Deus e depende de nós. Porque uma coisa é a ação de Deus em cada um de nós neste tempo do Advento e outra coisa é o que nós fazemos para que algo novo aconteça.

Nós mesmos somos um “advento”, porque nosso futuro humano depende do que esperamos.

Haverá aqueles que já não esperam nada. Haverá outros que esperam algo novo, mas duvidam. E haverá aqueles que esperam o novo e dedicam suas vidas a criá-lo já agora.

Porque em cada momento definimos nossas vidas; em cada momento algo surpreendente pode acontecer em nossa vida; em cada momento nossa vida pode apagar-se ou pode rejuvenescer-se. 

No evangelho deste domingo, as duas pequenas parábolas insistem na atitude da vigilância.

A primeira delas nos adverte com uma intencionalidade clara: o maior inimigo da vigilância é a dispersão, revestida de rotina e apego ao costumeiro (“comer, beber, casar-se”). Viver vigilantes para olhar mais além de nossos pequenos interesses e preocupações.

Na segunda, a insistência se situa na importância de “estar vigilante”, porque o que está em jogo é nada menos que a segurança da “casa”, ou seja, a consistência da própria pessoa.

Não é raro que, ao sentir um mal-estar ou medo frente ao nosso mundo interior, optemos pela “distração” ou “dispersão”. Por outro lado, vivemos dispersos e ansiosos porque crescemos com a ideia de que nos falta “algo” que, supostamente, se encontra “fora” de nós, com o qual conseguiríamos, finalmente, desfrutar da felicidade desejada.

dispersão é o estado habitual de quem se encontra identificado com seus pensamentos, sentimentos, emoções ou reações, ignorando sua verdadeira identidade.

Vivemos num contexto marcado pela “dispersão”, seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes...

E então, nós nos esvaziamos, nos diluímos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos.

A pessoa “dispersa”, por não ter um horizonte de sentido que a atraia, fixa-se no cenário externo, agarra-se ao mundo circundante, apega-se às coisas, na ilusão de alcançar uma segurança almejada. Ela foge de si mesma, tem medo de encontrar-se. Por isso, acompanha o ritmo dos outros, repete a linguagem dos outros, adota os critérios dos outros, e acaba sendo influenciada e dominada por pressões e hábitos externos.

“dispersão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu interior. Longe de uma humanidadedinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitalidade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.

Advento é tempo propício – “kairós” - para ajudar a superar nossa “dispersão” e poder recuperar a densidade humana interna. Para isso, precisamos entrar em “estado de vigilância”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação. 

Estar atentos e vigilantes é uma condição humana e cristã para viver intensamente; viver distraídos e dispersos é perder as oportunidades de muitos encontros, é deixar que o outro passe ao nosso lado sem nos darmos conta, é deixar que Deus passe sem que o percebamos, é deixar passar o momento em que Ele nos chama e perdemos a oportunidade de dar uma resposta vivificadora.

Viver é estar atentos à vida, a nós mesmos, aos demais. Viver é estar atentos às ocasiões únicas, às oportunidades que não voltam; viver é estar com os olhos abertos para contemplar, é estar com os ouvidos atentos para escutar.

É nessa direção que o “tempo do Advento”, centrado n’Aquele que vem, mobiliza e re-ordena todas as dimensões da vida e propõe um caminho de humanização. Ele desafia cada um a assumir o potencial humano criativo que está latente em seu interior.

Coroa do Advento – um símbolo de luz e esperança – Paróquia Imaculada  Conceição

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 24,37-44

 

Na oração: 

- Em quê dimensões da vida você sente a força desagregadora da “dispersão”?

- “Vida atenta” é vida com largos horizontes: neste Advento, o que você está “lendo” no seu horizonte pessoal, social, profissional, familiar, religioso...?

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Cristo Rei ou Cristo servidor?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que encerra o Ano Litúrgico.

“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’” (Lc 23,38)

 

Ao longo do ano litúrgico fizemos um percurso catequético e espiritual da história da salvação, vivendo e celebrando os momentos mais significativos da vida e missão de Jesus Cristo: encarnação, nascimento, vida pública, anúncio da boa-notícia, paixão-morte-ressurreição-ascensão...

Agora, no final deste tempo litúrgico, nos encontramos com a festa de Cristo Rei, cume do caminho percorrido, de nossa vida pessoal, da história e da missão da Igreja. Ele é o horizonte.

Rei: não há outra palavra menos apropriada para Jesus.

Jesus, rei atípico.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos. 

Jesus crucificado é um estranho rei: seu reinado não se dá de forma impositiva, violenta ou cruel. N’Ele descobrimos um Rei que não se apoia na força e no poder, mas na fragilidade e no escândalo da Cruz; seu trono é o madeiro da cruz: sinal de fracasso; sua coroa é a de espinhos; seu cetro é a toalha para lavar os pés: sinal de serviço; não tem manto, está desnudo; até os seus seguidores o abandonaram.

Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia. Jesus reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. 

Usamos, ainda hoje, sobretudo na linguagem religiosa, imagens que nasceram em outro tempo e em outro contexto cultural. Que reações provoca o título de “rei” numa sociedade na qual os reis já são tão pouco estimados e menos amados? A realeza atribuída a Jesus necessita de uma oportuna iluminação.

O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias conservadoras, concepções triunfalistas e dominadoras, poderes vazios...

Se continuarmos escondendo Jesus debaixo de vestes suntuosas e trono de ouro, tão distantes do que Ele foi na realidade, o reduziremos a uma entidade quase mítica que só pode interessar às pessoas esotéricas, supersticiosas e saudosas do passado.

Esse é o maior paradoxo da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “triunfalistas”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Seu reinado passa pela dinâmica do serviço, do perdão e da disponibilidade, da acolhida, da misericórdia e da proximidade. 

Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem riquezas e que não pode defender-se, pois não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem poder. Pobre rei!

Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder. E não só condenou aqueles que que se impõem sobre os outros, como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam submeter e se fazem subservientes.

Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer pessoas ungidas pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.

Jesus quer que todos sejamos “reis”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência. 

Há uma nobreza e uma realeza presentes em nosso interior e que são ativadas no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...

Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI que, em 1926, num momento delicado para a Igreja diante da perda de seu prestígio e de seu poder, quis ressaltar o “poder espiritual” de Cristo como rei da história e do mundo; ao mesmo tempo, quis reafirmar, frente aos poderes deste mundo, o poder de Cristo como origem de toda autoridade real ou política e, sobretudo, como fundamento do poder da própria Igreja.

Uma leitura mais repousada do Evangelho e do Concílio Vaticano II nos convida a reler de novo esta festa para despojá-la, como fizeram com Jesus, de suas roupagens políticas, dos adereços dos poderosos e influentes. A Igreja não deve e não pode ser um poder real no mundo, mas uma presença inspiradora de transformação do coração e das estruturas que excluem o ser humano e o esvaziam de sua dignidade.

Devemos, sim, conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus Cristo, rei do universo”.

Jesus será “Rei do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos sejamos testemunhos da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que hoje estão dependurados nela.

O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Ele nos relata a investidura do rei Jesus de Nazaré, que se dá na Cruz, em meio a zombarias, açoites e blasfêmias. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistiam ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não era a multidão que habitualmente O seguia, mas pessoas que assistiam com curiosidade zombadora.

Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tinham um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade.

Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se.

O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.

Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.

Ninguém pareceu ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.

A resposta de Jesus diante dos insultos foi o silêncio carregado de mistério. Silêncio que poderia ser interpretado como impotência resignada ou reconhecimento do fracasso. No entanto, Ele transformou a onda de insultos em manifestação de misericórdia e salvação.

Ele só respondeu ao bom ladrão com a força de suas palavras salvadoras: “ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. Em sua entrega cumpre a vontade do Pai

O título da Cruz, registrado pelos quatro evangelhos, provavelmente é uma chave muito completa para interpretar a impressão que Jesus causou às autoridades: “este é o rei dos judeus”.

O crucificado era um rei que colocava em questão os poderes deste mundo. E que, além disso, questionava os valores que regiam a sociedade bem pensante de então e de agora. Dizia que tinha vindo para chamar os pecadores e não os justos. 

Deus está mais interessado pelos que se sabem pecadores que pelos que acreditam serem piedosos. As palavras e a maneira de agir de Jesus são uma denúncia para aqueles a quem o poder lhes encanta e para aqueles que se dedicam a condenar os que não pensam ou atuam como eles. 

Um denunciante assim só pode acabar expulso, marginalizado, rejeitado.

PADRE JOÃO CARLOS - MEDITAÇÃO DA PALAVRA: Um rei coroado de espinhos

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 23,35-43

 

Na oração: 

Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplamos mais atentamente, logo descobriremos nesse Rosto o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, clamando por nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o(a) afeta? o(a) deixa inquieto(a)? o(a) incomoda?

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Exortações para tempos desafiadores

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 33º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Todos vos odiarão por causa do meu nome” (Lc 21,17)

 

Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico; no último, celebraremos a festa de Cristo Rei, que vem culminar todo o percurso celebrativo.

O relato deste domingo nos situa no Templo de Jerusalém, final do percurso missionário de Jesus, marcado por oposições, conflitos e rejeições.

Aqui Jesus se depara com uma situação na qual a construção magnífica do templo de Jerusalém alimentava a fé dos judeus a tal ponto que a arquitetura e o poder da religião eram mais significativos que o próprio Deus de Israel. Jesus desmascara uma religião na qual eram mais importantes os sacrifícios, o ritual, a construção majestosa que as atitudes exigidas pelo mesmo Deus para um verdadeiro culto a Ele: a misericórdia e a justiça. Por isso Jesus afirma que o Templo será destruído; este já não era mais o lugar de uma relação legítima com Deus e com os outros, pois alimentava grandes divisões sociais e injustiças que contradiziam a finalidade de um “espaço sagrado”.

Para que o Reino de Deus pudesse ser instaurado era preciso “derrubar o templo”, transformado em lugar de comércio e princípio de idolatria, sinal de patologia religiosa. Com o templo cairiam outras funções: a econômica, a política e a religiosa.

Ou seja, todos admiravam a beleza exterior do templo. Mas ninguém admirava sua beleza interior; ninguém admirava a presença de Deus no templo; ninguém admirava a vida de fé daqueles que visitavam o templo.

O melhor que poderia acontecer era que o Templo fosse destruído, pois só assim os judeus poderiam redescobrir sua verdadeira identidade e sua vocação de povo eleito. 

Igualmente, o melhor que pode acontecer a uma instituição religiosa, cercada de muralhas e grandes pedras, é que “tudo seja destruído”, pois só assim é que se pode descobrir a verdade do evangelho na sua pureza e a essência da identidade cristã: uma comunidade de seguidores(as) de Jesus.

Para Jesus, a beleza da comunidade cristã não está na suntuosidade de seus templos e ritos, mas na coerência de vida, inspirada nos valores do Evangelho; e quem vive a fidelidade no seguimento d’Ele poderá encontrar oposições, incompreensões, perseguições até dentro da própria família.

As raízes do cristianismo estão regadas com o sangue dos mártires; a árvore do cristianismo está fortalecida com a perseguição e o martírio.

No contexto da “destruição do Templo”, Jesus nos convida a não nos fixar nas “pedras”, mas ampliar o olhar para o “mais além”. A linguagem apocalíptica e escatológica (fim último), tão comum na época de Jesus, é muito difícil de ser entendida hoje. Corresponde a uma outra visão de Deus, do ser humano e da realidade, diferente da nossa. Mais uma vez os discípulos se mostram mais interessados pela questão do “quando” e do “como” do que pela mensagem em si.

No entanto, Jesus introduz elementos novos que mudam a essência da “visão apocalíptica”. Para Ele, o decisivo não é tanto o fim, mas a atitude de cada um diante da realidade atual. 

“Cuidado para não serdes enganados!” A advertência vale para hoje também. Nem o fim, nem as catástrofes têm importância se soubermos manter a atitude de plena confiança n’Aquele que é o Senhor dos tempos. A realidade não nos deve perturbar. Tudo passa, mas a essência permanece.

“gênero apocalíptico” (revelação), ao qual pertence o relato de hoje, se referia à gestação de um “mundo novo”, de um novo e definitivo estado de coisas, através de imagens que mais tarde foram designadas precisamente como “apocalípticas”: guerras, epidemias, fome, terremotos e movimentos estrelares, que semeiam confusão, desolação, pânico e morte.  Tudo isso significava que estava sendo derrubado a “velha ordem” de injustiça e que daria lugar ao nascimento de um mundo novo, mais justo e fraterno.

Em meio a essa descrição de calamidades de todo tipo, eleva-se firme o convite à confiança por parte de Jesus: “Não perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça; é permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!”. A confiança se enraíza, mais uma vez, na compreensão daquilo que somos na essência: somos habitados por uma Presença pacificadora e consoladora As palavras de Jesus poderiam ser traduzidas deste modo: “o que realmente somos se encontra sempre a salvo”.

A segurança da vida não pode ser dada pela ausência de conflitos, nem pela promessa de felicidade, mas pela confiançaem Deus. Tampouco devemos continuar edificando “templos” que nos deem seguranças. Nem organogramas, nem doutrinas, nem estruturas legalistas e ritualistas garantem nossa salvação. Pelo contrário, o desaparecimento dessas seguranças deve nos ajudar a buscar nossa verdadeira salvação. Já dizia Santo Ambrósio: “os imperadores romanos nos ajudavam mais quando nos perseguiam que quando nos protegiam”.

O essencial da mensagem de hoje está na importância do momento presente frente aos medos diante de um passado tenebroso ou pelas especulações sobre o futuro. “Aqui e agora” podemos descobrir nossa plenitude. Aqui e agora podemos tocar a eternidade. Hoje mesmo podemos plenificar o tempo e abrir-nos ao Absoluto. Nesse instante podemos viver a totalidade, não só de nosso ser individual, mas a “totalidade” do que existiu, existe e existirá. Para quem está desperto não há diferença nenhuma entre o passado, o presente e o futuro; ele vive sintonizado no “Hoje eterno” de Deus.

As profundas transformações sociais, econômicas, políticas, culturais que estão acontecendo em nossos dias e a crise religiosa que sacode as raízes do cristianismo, nos desafiam a buscar em Jesus a luz e a força que precisamos para ler, interpretar e viver estes tempos de maneira lúcida e responsável. Mais do que nunca, faz-se urgente ativar o dom do discernimento, para não permanecermos nas aparências e fenômenos que parecem nos assustar e fundamentar nossas vidas no essencial: fidelidade ao seguimento de Jesus.

Em nenhum momento Jesus propõe aos seus seguidores um caminho fácil de êxito e glória. Pelo contrário, lhes dá a entender que a longa história da vida cristã estará cheia de desafios e dificuldades. É contrário ao espírito de Jesus cultivar o triunfalismo ou alimentar a nostalgia de grandezas. O caminho do seguimento, marcado por conflitos e perseguições, está mais de acordo com uma Igreja fiel a seu Senhor.

Em momentos de crise, desconcerto e confusão como estes que estamos vivendo, não é estranho que apareçam pessoas com suas mensagens e revelações mirabolantes, totalmente contrárias aos do Evangelho. Estas são as instruções de Jesus: em primeiro lugar, “cuidado para não serdes enganados”; não cair na ingenuidade de dar crédito a mensagens alheias ao evangelho, nem fora nem dentro da Igreja.

Portanto, “não sigais essa gente!”; não seguir aqueles que nos separam de Jesus Cristo, único fundamento e origem e nossa fé. 

Cada geração cristã tem seus próprios problemas, dificuldades e buscas. Não devemos perder a calma, mas assumir nossa própria responsabilidade. Não nos é pedido nada que esteja acima de nossas forças. Contamos com a ajuda do mesmo Jesus: “Eu mesmo vos darei palavras e sabedoria...” Inclusive em um ambiente hostil de rejeição ou desafeto, podemos viver o evangelho com mais coerência e cultivar um estilo de vida cristã com mais lucidez, paciência e perseverança. 

Os tempos difíceis não devem ser tempos para lamentações, saudades ou desânimo. Não é hora da resignação, da passividade ou da desistência. A ideia de Jesus é outra: em tempos difíceis “será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé”. É precisamente nestes momentos quando devemos reavivar entre nós o chamado a sermos testemunhas humildes, mas convincente, de Jesus, de sua mensagem e de seu projeto.

FIRMES NA FÉ. “Sede vigilantes, permanecei firmes na… | by Pr. Luiz Lucas |  Medium

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 21,5-19

 

Na oração: 

Onde e em quem você alimenta sua confiança?

- Como lhe afetam as grandes crises que estamos vivendo no atual contexto social, político, religioso?

- Onde você se enraíza para superar os tempos turbulentos que nos envolvem?

- Você costuma “dar ouvidos” aos fanáticos da atualidade, sobretudo no campo religioso, que aproveitam destes momentos difíceis para alimentar medos, inseguranças...?

sábado, 8 de novembro de 2025

O Templo é a Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Dedicação da Basílica do Latrão (Catedral de Roma).

“Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (Jo 2,16)

 

Os profetas de Israel costumavam recorrer a “gestos proféticos” para expressar, de um modo visual e contundente, mensagens que lhes pareciam decisivas.

Na mesma linha dos profetas de seu povo, Jesus realiza também gestos repletos de simbolismo: suas refeições com os pecadores, o lava-pés, a ação contra o Templo...

É disso que trata o Evangelho da festa de hoje (Dedicação da Basílica do Latrão), ou seja, uma ação simbólica na qual se pretende mostrar que o tempo do Templo terminou. A expressão “purificação do Templo” não é a mais adequada, porque não se trata de purificar o espaço que se tinha convertido em centro comercial, mas de substituí-lo. Jesus prescindiu do Templo para relacionar-se com o Pai.

A partir de seu projeto, que chamava “Reinado de Deus”, foi questionando uma religião que desumanizava as pessoas. Ele mesmo, durante sua vida, foi relativizando e esvaziando os pilares da religião judaica: o sábado, a “pureza” legal, o Templo, o jejum, o culto, os sacrifícios, as doutrinas, os sacerdotes... E pouco a pouco foi colocando tudo isso em questão, transgredindo suas normas e atacando a hipocrisia de um culto a Deus que desprezava as pessoas.

O simbólico ataque final ao Templo foi determinante para ser considerado como um “subversivo” pelo sistema político e um blasfemo pelo sistema religioso.

Aquele Templo já não era a casa de um Deus Pai, pois não era espaço de acolhida, mas de exclusão. Jesus se sentia como um estranho naquele lugar. O que seus olhos viam nada tinha a ver com o verdadeiro culto ao Pai. Deus não pode ser o protetor e encobridor de uma religião tecida de interesses e egoísmos. Deus é um Pai a quem só se pode prestar culto trabalhando por uma comunidade humana mais solidária e fraterna.

Nesse gesto ousado de Jesus, fica claro o que Ele pretende: denunciar os “templos e as religiões” que se absolutizam como lugares da presença divina, criando dicotomias ou dualismos estranhos entre o “religioso” e “o profano”. A novidade de Jesus consiste em afirmar que existe só um caminho para encontrar a Deus e que não passa pelo Templo. Na religião, o determinante está no “sagrado”; no projeto de Jesus, o centro de tudo está no “humano”, na dignidade e felicidade das pessoas, na vida. Jesus não suprimiu o “sagrado”, mas o deslocou do religioso ao humano. Para Ele o sagrado é o ser humano como pessoa, com os demais seres humanos. Desse modo, supera-se definitivamente aquele dualismo e se reconhece a vida como lugar da Presença. Os templos não são fronteiras que dividem o sagrado e o profano; são espaços onde se vive a sacralidade de toda a vida. O verdadeiro “templo” é a vida, e vida destravada, aberta...

Ao “substituir” o Templo por seu Corpo, Jesus nos convida a viver o encontro com Deus no centro de nossa pessoa e da vida mesma. E Ele se torna referência para nos ajudar a ver o que é uma vida vivida desse modo: uma existência marcada pelo amor compassivo e pela alegria de uma vida plena.

Ali é onde vamos encontrar Deus com certeza; ali se enraíza o “segredo” do viver humano: no amor e na alegria intensa. As pessoas não serão mais ou menos santas porque vão rezar no templo; sua santidade se fará visível na vida cotidiana.

A superação do Templo significa recuperar o verdadeiro lugar da religião na vida cristã. Não no sentido de que é preciso deixá-la de lado (tanto a religião como o templo podem ser meios valiosos para muitas pessoas), mas no sentido de não absolutizá-la. A absolutização da religião provocou e provoca muita exclusão e sofrimento entre os humanos. 

As religiões se fazem indigestas e sumamente perigosas quando pretendem apoderar-se do Absoluto.

Devemos fazer de nossas comunidades cristãs um espaço onde todos possam se sentir na “casa do Pai”; uma casa acolhedora e calorosa onde não se fecham as portas a ninguém, onde nenhum é excluído e nem se sente discriminado; uma casa onde aprende-se a escutar o sofrimento dos filhos mais desvalidos de Deus e não lugar de busca do próprio interesse e poder; uma casa onde pode-se invocar a Deus como Pai de todos, porque todos se sentem seus(suas) filhos(as) e buscam viver como irmãos(ãs).

Com seu gesto provocativo, Jesus põe abaixo todas as barreiras existentes: religiosas, sociais, culturais ...

De maneira especial, Ele acaba com o predomínio do poder sagrado, que tanta divisão, submissão, marginalização e sofrimento causaram durante séculos aos seres humanos. Aqueles que acreditam em Jesus, seguindo suas pegadas, não iniciam uma nova religião com caráter sagrado, senão um novo estilo de vida, assimilando os principais critérios do Reinado de Deus, que Ele deixou nos evangelhos.

 

Jesus teve consciência que o poder religioso divide, discrimina, subordina e alimenta medo, enquanto o serviço e a solidariedade criam irmandade e igualdade.

Jesus desencadeou um movimento que teve inicio nas periferias da Galileia. Ele não foi sacerdote do Templo, consagrado a cuidar e promover uma religião; nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião, nem foi um mestre da Lei, fechado em seu legalismo.

Jesus, como os profetas de Israel, não formou parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não foi nomeado por nenhum poder. Sua autoridade não vinha da instituição, não se baseava nas tradições religiosas. Provinha de sua experiência de Deus, empenhado em conduzir seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.

Jesus fugiu de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas. Não organizou nenhuma religião; pelo contrário, entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, Templo de Jerusalém, Lei). Cercou-se de pessoas, homens e mulheres, dispostas a continuar seu caminho anunciando a mensagem do Reino de Deus. Proclamou as bem-aventuranças, como projeto do reino de Deus. Denunciou as opressões e injustiças, tornando realidade a salvação do Deus pai e Mãe, através de suas curas.

Jesus superou as antigas divisões (sacerdotes ou laicos, judeus ou gentios, homens ou mulheres...) e a estrutura social dominante que geravam exclusão e violência. Não veio complicar a vida com mais exigências legais e cultuais, nem alimentar as “vantagens” de quem pretende se impor sobre os outros, na linha do poder ou do conhecimento, senão para romper esse esquema de valores e privilégios. 

Esta é a sua novidade messiânica.

Ele não nos impõe pesadas leis, não exige que cumpramos simplesmente alguns preceitos religiosos... Ao contrário, quer que todos vivamos e possamos desenvolver em plenitude nossas potencialidades.

Jesus não veio para sancionar uma ordem existente, deixando cada um com sua exclusão, senão para oferecer a todos um caminho de humanização. Por isso tornou-se um transgressor: rompeu as fronteiras que foram traçadas pelos poderosos, abrindo um caminho de humanidade a partir de baixo, ao lado dos excluídos e dos últimos... Um transgressor consequente, a serviço da vida e dos mais pobres.

Assim foi Jesus. Assim devem viver seus seguidores.

Em mensagem no Twitter, Papa recordou festa da Dedicação da Basílica de São  João de Latrão – Santuário Nossa Senhora dos Prazeres

 

Texto bíblico: Evangelho segundo João 2,13-22

 

Na oração: 

Muitas pessoas pensam que é somente no templo (capela, lugar santo e cerimônias sagradas) onde é possível fazer uma experiência de encontro com Deus. Se o Deus que é experimentado no templo não coincide com o Deus que move nossa vida nas casas, na convivência com os outros, no compromisso com os últimos..., então o templo e seu suposto “deus” não tem nada a ver com o Deus de Jesus, e a prática religiosa é vazia.

- O decisivo é o “templo interior”, com portas abertas a todas as pessoas que queiram se aproximar e entrar.

- Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.  

- Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Finados: enraizados no Deus da Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de todos os Fiéis Defuntos.

“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)

 

morte é sempre estranha e, com frequência, se revela incômoda. O ser humano pós-moderno não sabe o que fazer com a morte. Às vezes, o único que lhe ocorre é ignorá-la, escondê-la e não falar dela. Busca esquecer o quanto antes esse triste acontecimento, cumprir os trâmites religiosos e civis e retornar ao mesmo ritmo da vida cotidiana.

No entanto, mais cedo ou mais tarde, a morte vai visitando nossos lares e arrancando de nós nossos seres mais queridos. Como reagir diante da morte que nos arrebata para sempre nossos entes queridos, nossos pais, nossos amigos... Quê atitude adotar diante de uma pessoa muito próxima e querida que diz seu último adeus? Que fazer diante do vazio que vão deixando em nossa vida tantos amigos e amigas?

Vivemos uma atmosfera cultural que não quer mais saber da morte; ela é escondida. Há uma angústia que, sem trégua, atormenta os vivos diante de sua ameaça escondida nas sombras, sempre presente na doçura da vida e no fervilhar das paixões.

Como se torna complicado falar dela, buscamos suavizá-la utilizando palavras como “falecer”, “deixar este mundo”, “ir-se”, “apagar-se” ..., entre outras muitas. Encarar a morte não é fácil, pois nos assaltam as dúvidas sobre o sentido da vida, o que acontecerá depois, a vida eterna, etc. Como consequência da dificuldade de enfrentar a morte, há pessoas que a ignoram e vivem com a sensação de serem eternas.

Diz a carta aos Hebreus que quem tem medo da morte passa a vida sujeito à escravidão (Heb. 2,15): escravo diante de um “deus amo” com quem é preciso passar a vida negociando a existência, porque esta não é vivida como dom gratuito; e escravo do próprio ego que se inchou até níveis insuportáveis.

Nos Evangelhos, encontramos diversas exortações, parábolas e chamados que só tem um objetivo: manter viva a responsabilidade do seguidor de Jesus. Uma das advertências mais conhecidas é a que encontramos no Evangelho indicado para este “dia de Finados”: “Tende cingido vossos rins e suas lâmpadas acesas”.

As duas imagens são muito expressivas. Indicam a atitude que os empregados devem ter quando, à noite, estão esperando que regresse seu senhor para abrir-lhe a porta da casa quando ele os chamar. Devem estar com a “cintura cingida”, ou seja, com a túnica presa à cintura para poder mover-se e atuar com agilidade; devem estar com as “lâmpadas acesas” para ter a casa iluminada e manter-se despertos.

A vida do seguidor de Jesus é um contínuo estar em alerta, estar sempre despertos, estar sempre em espera, estar sempre dispostos. Ele precisa viver com os olhos abertos às vindas surpreendentes de Deus; precisa estar com os ouvidos atentos para escutar seus passos; precisa viver sempre em prontidão para abrir a porta de seu coração.

As palavras de Jesus não contêm nada de ameaça nem de cobrança; não alimentam um ego fechado nem sustentam nenhuma ideia de mérito. São palavras de sabedoria que convidam, ao contrário, a despertar para a Realidade que somos. 

Despertar é uma das palavras básicas de todas as tradições de sabedoria. Todas elas nos alertam que facilmente nos submergimos no sono da ignorância, crendo ser o que não somos e desconectados do que realmente somos; e esta é a fonte de muitos sofrimentos.

A revelação central de Jesus é que “Deus é Vida” e quer que vivamos intensamente, agora e na eternidade. Procedemos da Vida, vivemos na Vida e retornaremos ao seio da Vida. Todos morremos para o interior de Deus. O Sopro de vida que recebemos retorna à Fonte: todos seremos “aspirados” para dentro do Deus da Vida.

A partir desta realidade revelada, o mais adequado para considerar a morte é vê-la como um “despertar”. Assim como ao sair do sonho emerge uma nova identidade, muito diferente do sujeito onírico, ao morrer amanhecemos para a nossa identidade mais profunda, na qual o ego (falso eu) encontra também seu final. Não é que ele morra, mas é porque descobrimos que ele nunca existiu; é uma ilusão alimentada pela nossa mente.

Os místicos sufis nos ensinaram que quando vivemos, estamos adormecidos, e quando morremos, despertamos. A quê despertamos? Sem dúvida nenhuma, à Vida, ao que sempre fomos e somos, embora não o tivéssemos visto antes. Precisamente por isso não precisamos “alcançar” nada que não tivéssemos, senão cair na conta (despertar) daquilo que sempre somos: envolvidos pela Vida, sustentados e protegidos pela Vida, iluminados pela Vida...

Assim, morrer é o processo pelo qual nos “re-integramos” na Vida que sempre fomos. Com o termo “Vida” aludimos à mesma Realidade que as religiões nomeiam como “Deus”.

Ao despertarmos, descobriremos o que sempre tínhamos sido e que tínhamos esquecido, ou seja, vivíamos a unidade com o Todo e com todos

A melhor metáfora para falar do silêncio que a morte impõe é a do rio que desemboca no mar. O rio perde seu nome e sua forma, treme de medo diante da imensidão do mar que se abre diante dele; mas é justamente, ao entregar-se, quando o rio se descobre como água. Torna-se oceano; morreu a “forma” de rio, permanece a água. E é nessa mesma “Água” onde todos nos encontramos, porque constitui nossa identidade mais profunda. Para além do “rio” único de cada um – de nossa personalidade -, nos reconhecemos “uno” na “Água” – nossa identidade comum e compartilhada, que transcende todas as formas.

Com a morte começa a vida para sempre, na presença do Deus Amor. E, por isso, se a morte é capaz de privar-nos do dom da vida, o Amor tem poder de nos devolvê-lo. Aqueles que em sua vida aprofundam e vivem o sentido do amor de Deus, começam a experimentar a eternidade e as bem-aventuranças que esse amor confere à vida. Na morte, seremos abraçados plenamente por esse Amor. É caminhar ao encontro da Fonte para beber da vida eterna; é entrar em um alegre amanhecer. Podemos afirmar, e com razão, que a “morte é um amanhecer” (Elisabeth Kubler-Ross). Morrer então, é viver mais e melhor (cf. L. Boff)

Os sábios veem a morte como parte da vida; dão-se conta que a vida é mortal, que somos, por essência, seres mortais. Vamos morrendo devagar, lentamente, a prestações, desde o primeiro momento até acabar de morrer. Segundo José Marti “morrer é fechar os olhos para ver melhor”.

Quando queremos nos concentrar e ir fundo no pensamento, fechamos naturalmente os olhos. Ao morrer, fechamos os olhos para ver melhor o coração do universo, para ver os espaços infinitos do mundo e os segredos mais escondidos da vida. 

Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida morte.

Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.

Diz o refrão que “a morte, menos temida, dá mais vida”. Ao desvelar a precariedade de nossa existência, a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período de tempo -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.

Encarar a morte, com serenidade, não só nos pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital. Situar-nos serenamente no horizonte da morte ajuda a dar conteúdo à nossa própria vida.


Sărbătorirea Învierii sâmbătă seara? Sminteala de anul acesta din Grecia

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo Lucas 12,35-40

 

Na oração: 

Finados de silêncio: cala a palavra, mas fala o coração; cala a palavra mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio do cora-ção de Deus. É o silêncio do coração que espera o momento, que escuta o mistério por dentro; é o silêncio do coração que medita e guarda dentro o mistério, que espera a nova palavra pascal. É o sábado das esperanças que começam a verdejar.

- No silêncio, faça memória e entre em comunhão com aquelas pessoas que foram presenças inspiradoras em sua vida e que deixaram “marcas” saudosas. 

Vale a pena fazer no dia de hoje uma “memória agradecida”.