quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Viúva indignada: a força da voz dos marginalizados

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 29º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Faze-me justiça contra o meu adversário!” (Lc 18,3)

 

A parábola da viúva e do juiz sem escrúpulos é, como tantas outras, um relato aberto, provocativo e que pode despertar nos ouvintes diferentes ressonâncias. Segundo Lucas, trata-se de um chamado a orar sem desistir, mas é também um convite a confiar no Deus que fará justiça àqueles que lhe clamam dia e noite. 

Que ressonâncias pode ter hoje em nós este relato dramático de uma viúva e que nos recorda tantas vítimas abandonadas injustamente à sua sorte?

O evangelista Lucas, ao narrar esta breve parábola, nos indica a intenção de Jesus ao falar para os seus discípulos sobre a necessidade de orar sempre, e nunca desistir”. Este tema é muito frequente em Lucas e, em várias ocasiões, repete a mesma ideia. Como é natural, a parábola foi lida quase sempre como um convite a cuidar da perseverança de nossa oração na relação com Deus.

No entanto, se observarmos o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a sede de justiça. Até quatro vezes se repete a expressão “fazer justiça”.

Mais que modelo de oração, a viúva do relato é exemplo admirável de luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que abusa dos mais fracos.

primeiro personagem da parábola é um juiz que “não temia a Deus, e não respeitava homem algum”.  É a encarnação exata da corrupção que os profetas denunciaram repetidamente: os poderosos não temem a justiça de Deus e não respeitam a dignidade nem os direitos dos pobres. Não são casos isolados. Os profetas sempre desmascararam o sistema judicial em Israel e a estrutura machista daquela sociedade patriarcal. Ao dizer-nos que este juiz não se importava nem com Deus nem com os homens, está dando destaque à índole dele: uma pessoa terrível, sem princípios, à margem de toda lei e à margem de todos.

segundo personagem é uma viúva indefesa em meio a uma sociedade injusta. Por uma parte, vive sofrendo os atropelos de um “adversário” mais poderoso que ela. Por outra, é vítima de um juiz que não se importa em absoluto com a pessoa da pobre viúva e nem com o seu sofrimento. Assim vivem milhões de mulheres em todos os tempos e em todos os lugares.

As viúvas eram, nos tempos de Jesus, juntamente com os órfãos e estrangeiros, a expressão da máxima pobreza e vulnerabilidade, pois viviam sozinhas e desamparadas, não tinha ninguém para protegê-las e ampará-las, e muitos, sem escrúpulos, costumavam abusá-las. Marginalizadas, não tinham maridos e nem filhos para defendê-las; não contavam com apoios governamentais ou da religião. Só tinham adversários que as exploravam. Já os antigos profetas tinham chamado a atenção sobre este drama humano.

À pobre mulher do evangelho deste domingo só lhe restava a voz para clamar por justiça a um juiz sem religião e sem sentimento humano; finalmente ele cede e lhe concede justiça, não por compromisso ético, mas para que a viúva o deixasse em paz.

O que a mulher lhe suplica não é um capricho pessoal. Só reclama justiça. Este é seu protesto, repetido com firmeza diante do juiz: “faze-me justiça!”. Sua petição é a de todos os oprimidos injustamente. Um grito que está na linha daquilo que Jesus dizia aos seus discípulos: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça!”.

Na parábola, Jesus nos surpreende a todos pelo fato de um juiz injusto fazer justiça à pobre viúva. Evidentemente este juiz não é imagem de Deus. Não temos de “ganhar” o coração de Deus através da força da insistência. Essa imagem está muito longe do “Abbá” que Jesus nos revela como Boa Notícia.

No entanto, Jesus marca a distância entre o que diz e faz o juiz injusto e o modo de atuar de Deus Pai. 

Deus é justiça e está sempre pronto a fazê-la valer. Na visão bíblica, Deus é justo porque Ele é bom; na essência, a justiça é a bondade de Deus para com todos os seus filhos e filhas. Aqui estamos bem longe da justiça jurídica, própria dos tribunais humanos.

Diante da tentação que nos leva a pensar que Deus é um juiz que não atende a todos, Jesus nos convida a mudar nossa visão e descobrir a verdadeira essência de Deus, a descobrir que, muitas vezes, a justiça que Deus quer realizar fica travada pelo nosso comportamento injusto, pois, muitas vezes, nos tornamos um obstáculo à justiça de Deus.

Suplicar sem desfalecer e com fé é abrir-nos à justiça de Deus para descobrir nossa responsabilidade e a parte que nos toca viver naquilo que estamos pedindo. A súplica é mobilizadora e desperta nossos melhores recursos para buscar aquilo que tanto desejamos.

Não basta insistir, pedindo a Deus que conceda a paz e a justiça em nosso mundo; somos nós, ali onde estamos e com todas as nossas possibilidades, construtores de paz e de justiça; paz e justiça que o Espírito do Senhor infunde em nossos corações. Construir o Reino é trabalhar no fluxo da justiça de Deus. A graça de Deus vem ao encontro de nossos desejos e os tornam oblativos, operativos...

Na conclusão da parábola, Jesus não fala da oração. Antes de mais nada, pede confiança na justiça de Deus. Não fará Deus justiça a seus eleitos que lhe gritam dia e noite?” Estes eleitos não são os membros de uma determinada religião, mas os pobres de todos os povos que clamam pedindo justiça. Deles é o Reino de Deus.

Finalmente, Jesus lança uma pergunta que é um grande desafio para todos nós, seus seguidores e seguidoras: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Ele não está pensando na fé como adesão doutrinal, mas na fé que se sensibiliza diante da atuação da viúva, modelo de indignação, resistência ativa e coragem para reclamar justiça aos corruptos de plantão.

Por que nossa comunicação com Deus não nos faz escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente e nos gritam de mil formas: “faze-nos justiça?”. Se, ao orar, nos encontramos de verdade com Deus, como não somos capazes de escutar com mais força as exigências de justiça que chegam até seu coração de Pai?

Nesse sentido, a nossa oração de seguidores de Jesus só é “eficaz” quando nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre nossos ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser mais fraternos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço.

Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver com mais sentido, inspiração e compromisso. Oração sem presença solidária é vazia.

Jesus sempre deixa transparecer a imagem de um Deus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...

misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. 

Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.

Existem “viúvas” que clamam dentro de nós. Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o “juiz interior” não terá nenhuma chance, estaremos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém poderá nos ferir, nenhum inimigo terá acesso, seja ele interior ou exterior.


Imagens de Jesus as judge sem royalties | DepositPhotos

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 18,1-8

 

Na oração: 

A parábola deste domingo nos interpela a todos: continuaremos alimentando nossas devoções privadas, nossas mortificações estéreis, nossas penitências vazias, esquecendo aqueles que vivem sofrendo injustiças? Continuaremos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem que nos importemos com as injustiças que há no mundo?

- “Tomar consciência” dos momentos em que o seu “juiz interior” emitiu seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.

sábado, 11 de outubro de 2025

O bom vinho da presença

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da liturgia do dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

“A mãe de Jesus estava presente” (Jo 2,1)

 

Celebramos, neste domingo, a festa da Padroeira do Brasil: Virgem Maria da Conceição Aparecida.

A liturgia da Igreja no Brasil nos propõe, para esta festa, o relato joanino do “casamento em Caná”, onde Maria “estava presente”: presença inspirada que fez a diferença; presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.

A “boda em Caná” é o ícone evangélico que melhor revela a situação atual da Igreja e do cristianismo. Por todos os lados pede-se renovação e em muitos lugares surgem experiências ousadas e renovadoras. É o frescor de uma espiritualidade que abre passagem entre os caminhos quase desertos de uma religião em agonia. É o vinho novo que se faz presente para brindarmos o amor e celebrar a vida.

No entanto, insistimos em pôr vinho novo em odres velhos. Esse é o drama da Igreja: aferrada aos odres da doutrina e suas obsoletas estruturas, não sabe aproveitar nem desfrutar do vinho novo. Com frequência, não sabe o que fazer com este vinho novo e o desperdiça.

Precisamos de odres novos para este vinho espumante e gracioso, um vinho cheio de vida e de sabor, um vinho encorpado e robusto, um vinho com tanta força que vai rompendo sem piedade os odres desgastados e rachados. É o vinho novo que exige reformular a vida cristã e a Igreja.

Segundo o evangelista João, Jesus realizou “sinais” para dar a conhecer o mistério de sua pessoa e para convidar os seus seguidores e seguidoras a acolherem a força salvadora que Ele trazia consigo. 

Qual foi o primeiro “sinal”? O que primeiramente devemos encontrar em Jesus? 

O evangelista fala de uma “boda em Caná da Galileia”, uma pequena aldeia de montanha, a 15 km de Nazaré. No entanto, a cena tem um caráter claramente simbólico. Nem a esposa ou o esposo tem rosto: não falam, nem atuam. O mais importante é um “convidado” especial que se chama Jesus.

Na Galileia, as festas de casamento eram as mais esperadas e desejadas entre os camponeses. Durante vários dias, familiares e amigos acompanhavam os noivos, comendo e bebendo com eles, bailando danças de casamento e cantando canções de amor. 

O vinho era indispensável em um casamento. Para aquelas pessoas, o vinho era o símbolo mais expressivo do amor e da alegria. Já dizia a tradição judaica: “o vinho alegra o coração”. A noiva cantava para seu amado um lindo canto de amor: “Teus amores são melhores que o vinho”.

O início do relato joanino apresenta Jesus sendo apenas um convidado; como anônimo, Ele vem de fora, não pertence por si mesmo ao espaço do casamento. Ele e seus discípulos parecem formar um mundo à parte, estão como que de passagem. Logicamente, não se preocupam com as questões da organização da festa, ao menos no primeiro momento. Esta é a surpresa da cena: Jesus vem como por casualidade e, no entanto, logo atua como responsável verdadeiro diante das velhas e das novas “bodas” da terra. 

Neste contexto, tornam-se centrais as relações entre a mãe (que é sinal da humanidade anterior, ou seja, do judaísmo da lei, da esperança messiânica) e Jesus (que será o iniciador das novas bodas do Vinho do Reino).

mãe é a mulher que introduz a nova páscoa de Jesus. Ela marca a diferença entre as antigas e as novas bodas, a passagem da água ao vinho. É a mulher de dois mundos, dois tempos, duas bodas. 

Parece que ninguém tinha descoberto a carência de vinho. Só a Mãe de Jesus notou a falta e se moveu a buscar uma solução para um problema que parecia sem saída.

De imediato, a mãe de Jesus lhe avisou: “eles não têm mais vinho”. Como vão continuar cantando e bailando? Que significa um casamento sem alegria e sem amor? O que se pode celebrar com o coração triste e vazio de amor? 

No pátio da casa havia “seis talhas de pedra”. Eram enormes. Estavam colocadas ali, de maneira fixa. Nelas se guardava a água para as purificações. Representavam a piedade religiosa daqueles camponeses que procuravam viver “puros” diante de Deus. 

A Mãe de Jesus é, por um lado, uma mulher do mundo antigo: pertence ao espaço das velhas bodas; conhece e compartilha por dentro os problemas e preocupações dos homens e mulheres que não conseguem saborear o verdadeiro matrimônio da vida. Ela se encontra no lugar onde a alegria deveria se manifestar: não é luto de morte, mas fonte de vinho, isto é, de esperança criadora, de Bodas de Deus. É mulher da vida prazerosa: está a serviço gratuito da festa. Seu desejo verdadeiro é o banquete (quer que os homens e mulheres bebam, dancem, vivam), não o ritual das purificações e abluções.

Nesse sentido, a Mãe de Jesus é mulher do mundo novo, mulher de bodas: ela sabe que há um vinho de “bodas” diferentes, sabe que já chegou quem pode proporcioná-lo. Por isso, ela não se contém: a impaciência do novo Reino de Deus pulsa no centro de sua vida e procura expressá-la. 

Assim, aproxima-se e diz a Jesus, de maneira sóbria e reverente: “eles não têm mais vinho!”.

Jesus que, num primeiro momento, parecia ter-se distanciado de sua mãe (“Mulher, porque dizes isto a mim?”), cumpre logo, de maneira diferente e por sua própria vontade, o que ela lhe pediu; e faz isso de maneira transbordante, muito mais que aquilo que ela lhe pedira. Oferece vinho abundante e de excelente qualidade aos convidados das “bodas”. Dessa forma realiza e transborda o desejo mais profundo de Maria.

Sua intervenção vai introduzir amor e alegria naquela religião. Este é seu primeiro “sinal”.

O evangelho indicado para este domingo nos revela esta grande notícia: Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos convidam a viver com mais sentido e prazer. Deus não quer que renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano; Ele quer que vivamos o divino naquilo que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da mortificação como exigência divina é ante evangélica. 

A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções podem purificar o ser humano. Só quando ele saboreia o vinho-amor, no encontro e na comunhão com o outro, ficará ele todo limpo e purificado.  Quando descobrirmos Deus dentro de nós e nos outros, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da unidade-amor. Que ninguém nos engane: o melhor vinho está sem estourar, escondido na adega de nosso interior.

 

“Eles não têm mais vinho!”

Esta é uma das expressões mais fortes do NT e do conjunto da Bíblia. Em primeiro lugar, ela é proferida pela Mãe ao seu Filho, mas logo podemos e devemos aplicá-la a diferentes situações de nossa vida.  São palavras que, quando escutadas, têm profundas ressonâncias em nós, sobretudo quando estamos comprometidos na nobre missão de “despertar o sabor da vida”.

Precisamente ali onde podemos nos sentir satisfeitos, ali onde pensamos que as coisas se encontram já resolvidas, tudo em ordem, se eleva com mais força a voz da Mãe de Jesus dizendo: “Eles não têm mais liberdade, estão cativos!” “Não têm mais saúde, estão enfermos!” “Não tem mais pão, estão famintos!” Não tem mais família, estão abandonados!” “Não tem paz, encontram-se deprimidos, em guerras sem fim!” ...

Já não podemos mais responder como Jesus em um primeiro momento: “que importa a mim e a ti? Não é nossa hora!” Sabemos que, em Jesus e por Jesus, chegou a hora da Mãe que nos mostra as necessidades de seus filhos, os humanos sofredores. Sobre um mundo onde falta o vinho das bodas da liberdade/amor/justiça, sobre um mundo que sofre a opressão e o forte vazio da vida, sobre um mundo onde continua acontecendo guerras, ódios, intolerâncias..., a voz da Mãe de Jesus ressoa como uma recordação ativa das necessidades das pessoas; por isso, é princípio de forte compromisso.

A imagem de Nossa Senhora que emerge dos Santos Evangelhos | Diocese de São  João del Rei

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo João 2,1-11

 

Na oração: 

Como podemos pretender seguir a Jesus sem cuidar mais da alegria e do amor entre nós? O que pode ser mais importante que isto na Igreja e no mundo? Até quando poderemos conservar em “talhas de pedra” uma fé triste e enfadonha? Para que servem nossos esforços, se não somos capazes de introduzir amor e alegria em nossa religião? 

Nada pode ser mais triste do que dizer de uma comunidade cristã: “eles não têm mais vinho!”.

- Sua presença na comunidade cristã desperta o sabor do bom vinho da vida e da amizade?

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A tentação da busca de recompensas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Somos simples servidores; fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)

 

A parábola indicada para a liturgia deste domingo desmascara uma mentalidade muito frequente, não só entre os fariseus do tempo de Jesus, mas também no coração dos seus seguidores: na relação com Deus, muitos se deixam levar pela busca da recompensa. De maneira disfarçada, julgam no direito de serem recompensados por todo o bem que fazem. E julgam poder exigir o pagamento devido por suas virtudes e boas obras, como se estivessem em pé de igualdade com Deus. Aqui desaparece toda gratuidade no serviço a Deus. A parábola desmascara a atitude daqueles que, no serviço do Reino, buscam seus próprios interesses, alimentam sua vaidade e buscam ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço ao Reino? Jesus tem um olho clínico que se fixa em todas as nossas atitudes e comportamentos. Por isso, sentiu a necessidade de alertar os seus discípulos e a nós contra este perigo.

Na verdade, agir para buscar o louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder... esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros. 

Uma tentação sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu dinamismo apostólico. Fica a impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega. 

A verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo de agir de Deus, superando todo auto-centramento e todo voluntarismo; quem assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente um ser de gratuidade”.

gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por aquele que é plenamente consciente de sua pobreza e indignidade radical, por aquele que, ao sentir-se pecador e amado ao mesmo tempo, não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação. E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de só agradar a Deus que tanto lhe ama. A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da ação salvífica do próprio Deus.

Ao situar nossa missão cristã na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-la em um mecanismo ou dinâmica de auto-centramento, de busca exclusiva, e muitas vezes compulsiva, de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de agir, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...

São vários outros elementos que contribuem para fazer de nossa missão uma “experiência espiritual”: a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.

A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos ajuda viver a missão como serviço e nos liberta radicalmente dos pesos da rotina, da carga...; tudo isso nos situa na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.

Quando vivemos nossa missão a partir da gratidão, o esforço, que a mesma missão exige, brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...

Quando vivemos tudo a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.

Encontramos aqui o fundamento para uma teologia da missão: a missão, seja ela qual for, é redentora se a motivação é evangélica, se ela está orientada para o Reino. Não é a missão que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer missão ser importante, quando ela é realizada na perspectiva do Reino de Deus. Toda missão é nobre, seja ela o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.

A alegria da missão está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nela. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”. 

A verdadeira “experiência espiritual”, portanto, é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus do mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa da missão, pois esta se torna  “templo” do encontro com Deus providente e de colaboração com os outros.

O(a) discípulo(a) faz o bem e se esforça por ser justo(a) e misericordioso(a), porque nisto deve consistir a sua vida, e não porque, agindo assim, Deus irá recompensá-lo(a). Basta-lhe a consciência de saber que age em conformidade com o querer divino. Tudo mais está entregue à benevolência de Deus.

Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.

Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da história.

Trabalho que se faz com amor;  “o trabalho é a fé que se faz visível”.

Generosidade, gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos outros, libertando-nos de nosso pequeno eu. São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do “próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas, ligadas ao coração, elas se revelam na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...

São elas que alargam o nosso coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para doar sua vida em favor de todos.

O amor desinteressado ao próximo se traduz em doação de si mesmo no serviço, na ajuda e no cuidado dos demais, sem esperar compensação. A gratuidade é o motor de sua vida.


Recompensa

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 17,5-10

 

Na oração: 

Precisamos alimentar uma outra relação com a missão no sentido de assumi-la como cooperação com o Deus providente e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver a missão com humor e criatividade.

- Sua vivência na missão: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração com o Deus trabalhador?

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

“Ilhas de compaixão num mar de indiferença”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 26º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

Ilhas de compaixão num mar de indiferença (Papa Francisco) 

“...há um grande abismo entre nós” (Lc 16,26) 

A parábola deste domingo talvez seja uma das mais “escandalosas” e verdadeiras do Evangelho. Certamente, seu conteúdo é impactante e desmascara a profunda divisão que há entre “epulões” e “lázaros” em nosso mundo; parábola inquietante pois coloca em questão a “ordem” econômica na qual estamos inseridos.

Sob esta perspectiva, a parábola conta a verdade invertida de nossa humanidade: o mundo “epulão”, próprio daqueles que só vivem para alimentar sua vaidade e seu prazer à custa dos pobres, está destinado à destruíção, não por castigo externo de Deus, mas por sua própria condição de fechamento e indiferença; eles se alimentam e engordam para a morte, ao rejeitarem o caminho de vida que se faz visível na ajuda mútua e no amor aberto aos mais necessitados.

Este é o tema: um rico fechado em sua riqueza, apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito algo contra o pobre Lázaro, mas porque não demonstrou compaixão com aquele que é vítima de uma estrutura social e econômica injusta.

Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se abre porque ela o fascina, e, sem perceber, a narrativa o leva a outro nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de olhar-se de modo diferente.

Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, ou do filho pródigo que retorna à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.

Talvez ao contar a parábola do “rico e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de famintos?...”

Se esta parábola não provoca em nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação desse escândalo..., é sinal de que a desumanização chegou ao fundo do poço.

Na parábola do evangelho de hoje aparecem três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras, impuro, sem ninguém que o acolha, a não ser os cachorros que lambem suas feridas. O abismo que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.

A coexistência de riqueza e pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é um flagrante violação da convivência humana, uma ofensa ao fundamento dos direitos humanos. “O luxo de uns converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28).

O “rico e Lázaro” constituem um enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.

O foco para compreender o sentido da parábola é o pobre Lázaro, sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do excluído, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.

A parábola é cheia de ironia. Para começar, o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele tinha identidade; o rico era tão pobre que só tinha bens.

Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. Este pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para lhe refrescar a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.

A chave de compreensão da parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente

a presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto.

O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus, nem contra o pobre; unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.

A vivência da compaixão requer uma sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem sentir-com-os-outros.

Não é estranho que o evangelho denuncie, com todo vigor, a indiferença, como a atitude mais negativa que rompe toda possibilidade de encontro. É totalmente coerente se temos em conta que a indiferença é justamente o oposto à compaixão, que constitui o núcleo da mensagem de Jesus.

A compaixão nos faz tremer “nas entranhas” frente à dor, alheia ou própria, e nos move a lhe dar uma resposta eficaz. A indiferença nos adormece no pequeno refúgio do ego.

A compaixão é a linguagem de Deus que nos salva da indiferença e do fechamento em nós mesmos. É um amor que nos expande em direção aos outros, sobretudo os mais excluídos e perdidos.

Assim afirmou o Papa Francisco: “os cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.

A conclusão de tudo isso parece clara. Para viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.

A cegueira diante dos outros, sintoma de uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.

A transformação do coração exige um despertar de nossa sensibilidade. O discípulo de Jesus, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada é o motor da sua vida e da sua conduta. E os “abismos” serão superados.

Portanto, mediante uma acolhida contemplativa da Parábola deste domingo, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais parecida com a d’Ele.

À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos tornar presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossas casas para acolhê-los.

 Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 16,19-31

Na oração:

Em chave de interioridade: carregamos um pobre Lázaro em nosso interior (feridas, fracassos, traumas...) que está à porta do rico ego e que clama por alimento, atenção, cuidado... O ego está cheio de si, prepotente, perfeccionista e não é capaz de abrir a porta do próprio interior para deixar o “Lázaro” entrar em sua casa.

Criamos um abismo interior: divisão, conflito... que se transforma em um inferno.

Basta abrir a porta para acolher o Lázaro: é através dele que Deus entra em nossa vida.

Quem tem sensibilidade e compaixão para acolher seus “lázaros interiores”, também terá sensibilidade para acolher os lázaros vítimas das estruturas sociais e econômicas injustas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Os pobres são os assessores do Rei Eterno

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 25º. Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Os pobres são os assessores do Rei Eterno (Santo Inácio de Loyola) 

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9)

 

A parábola do evangelho deste domingo não pretende se referir em absoluto à corrupção e ao roubo, mas ela está centrada numa questão radical: “Os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”.

Jesus, na parábola, não louva o mal administrador por sua péssima administração e roubos. O que Jesus quer destacar é sua “inteligência” e “esperteza” para garantir seu futuro, a astúcia com que atua para atrair a benevolência dos credores de seu amo.

Não devemos imitá-lo na sua injustiça, mas na sua previdência. O administrador infiel é um filho deste mundo; deixa-se guiar pelo cuidado de sua existência terrena. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.

E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente e com esperteza, utilizando todos os recursos em favor da vida.

Jesus reconhece a astúcia dos “filhos deste mundo” utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta; para aqueles que o seguem, Jesus revela a necessidade de serem astutos para fazer o bem e lutar pela justiça; quer que os “filhos da luz” sejam astutos positivamente: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos diante dos mecanismos do mal e usem da criatividade para o bem do Reino.

O administrador astuto, quando foi denunciado por desvios dos bens do patrão, agiu pensando exclusivamente nele, procurando abrir para si um caminho no futuro imediato, para continuar fazer o que sempre fazia: roubar.

Quando o dinheiro se converte no “deus” a quem adorar, o ser humano se deprecia: direitos humanos em liquidação, a educação, a saúde, a moradia..., tudo é deixado de lado.

O dinheiro, como meio, tem sua importância, mas é preciso estar atento aos sinais de alerta antes de atravessar essa sutil fronteira que leva à ambição, à cobiça e à avareza, até transformar a pessoa num ser que já não sabe valorizar o que acontece por dentro, sente-se diferente e distante do resto da humanidade.

Em cada um de nós convivem a luz e as trevas. A parábola deste domingo parece conter uma profunda ironia, ao confrontar-nos conosco mesmo e perguntar-nos de que maneira procedemos nos assuntos que concernem às “trevas” (ego) e naqueles que potencializam a luz que somos.

A experiência nos diz que quando é nosso ego que toma iniciativa, ele ativa meios, recursos, táticas, estratagemas..., com a finalidade de sobressair vaidoso e assegurar sua sobrevivência (como faz o empregado da parábola, que representa, justamente, o nosso próprio ego e seu mundo de interesses).

O que ocorre com a luz, que é a nossa verdadeira identidade? Que fazemos com o melhor de nós mesmos? Se investíssemos tanta motivação e tantos meios para que nossa verdadeira identidade se manifestasse e deixasse sua marca, nosso mundo seria bem diferente.

A parábola e as sentenças de Jesus trazem à tona a questão da riqueza no caminho espiritual, com um destaque fundamental: diante do risco de absolutizá-la (endeusá-la), requer-se lucidez (astúcia) para usá-la como instrumento a serviço da vida.

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Estas palavras de Jesus não podem ser esquecidas nestes momentos por nós que nos sentimos seus seguidores, pois contém a advertência mais grave que Jesus deixou à sua comunidade. O dinheiro, convertido em ídolo absoluto, é o grande inimigo que impede a construção de um mundo mais justo e fraterno, querido por Deus.

Infelizmente, a riqueza se converteu, no nosso mundo globalizado, em um ídolo de imenso poder que, para sobreviver, exige cada vez mais vítimas, desumaniza e empobrece cada vez mais a história humana; assim nos encontramos enredados por uma crise gerada, em grande parte, pela ânsia de acumular.

Praticamente tudo se organiza, se move e se dinamiza a partir dessa lógica: buscar mais produtividade, mais consumo, mais bem-estar, mais prestígio, mais poder sobre os outros... Esta lógica é destruidora; se não a estancarmos, pode colocar em perigo o ser humano e destruir a Casa comum.

Jesus nos alerta que, a primeira coisa a fazer, é tomar consciência daquilo que está acontecendo. Esta não é só uma crise econômica. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. A busca da própria segurança é a base da tentação pelo dinheiro.

De fato, nossa relação com o dinheiro nunca é mera e exclusivamente funcional, econômica, monetária, de valor de troca. Sempre há um “algo mais” em nossa vinculação com ele.

Provavelmente, poucas relações com o mundo material de objetos estão tão “carregadas” afetivamente como esta do dinheiro. A atração, o apego, a dificuldade para desprender-nos dele... e, muitas vezes, uma forte ambivalência, ou seja, uma polaridade de sentimentos e afetos contrários em relação com esse objeto que progressivamente vai se fazendo tão determinante em nossa existência. Compreender as vinculações íntimas que todos mantemos na relação com o dinheiro nos ajudará a compreender, sem dúvida, a lógica perversa que pode ser desencadeada na relação conosco, com o outro e com a criação.

Nos relatos do Evangelho, o “dinheiro” é designado com o termo “mamón”, que só aparece quatro vezes no Novo Testamento e sempre na boca de Jesus. Trata-se de um termo que provém da raiz aramaica “aman” e significa qualquer riqueza sobre a qual o indivíduo apoia sua existência.

Além de uma evidente e fundamental função de valor de troca que possui, são múltiplas e variadas as significações que o dinheiro pode chegar a desempenhar para cada um: meio com o qual ganhar afeto, um suporte de prestígio e segurança pessoal ou um instrumento poderosíssimo de poder sobre os demais, um meio de defesa e inclusive de ataque sobre os outros, um acréscimo de valia pessoal, tendências perversas de exibição e ostentação frente os outros, corrupção...

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos”: é um apelo a investir tudo o que temos a serviço daquilo que vale verdadeiramente: nosso verdadeiro ser, alimentar comunhão com os outros, viver a partilha...

Utilizamos com sabedoria o “dinheiro injusto”, quando compartilhamos com aquele que passa necessidade.

Nunca poderemos atuar como donos absolutos daquilo que possuímos. Somos simples administradores. A única coisa que se conserva é a que é partilhada. O que não se partilha, se perde.

No fundo, Jesus nos quer dizer assim: “Empregai vossa riqueza injusta para ajudar os pobres; ganhai sua amizade compartilhando com eles vossos bens. Eles serão vossos amigos e, quando na hora da morte o dinheiro já não sirva para mais nada, eles os acolherão na casa do Pai”.

Dito com outras palavras: a melhor forma de “lavar” o dinheiro injusto diante de Deus é dividi-lo com seus filhos mais pobres.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 16,1-13

Na oração:

Traço característico, que define a qualidade de vida de uma pessoa que segue Jesus Cristo, é a simplicidade de vida, entendida no sentido de um nível econômico simples e despojado.

- Como testemunhar que se pode ser feliz vivendo uma cultura da gratuidade, da moderação, da solidariedade, possibilitando uma partilha dos bens de maneira mais igualitária e justa para todos os seres humanos e que favoreça melhores condições de realização humana?

- A quem sirvo? Quem é o “senhor” que comanda o meu coração?

- Deus pôs em minhas mãos tantos dons, tantas possibilidades... E que estou eu fazendo com tanta “riqueza” que o Senhor me confiou? Sou um(a) administrador(a) fiel e solícito(a), ou vou desperdiçando pela vida os “bens” (talentos e oportunidades) que o Senhor me deu e continua me cumulando?

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Na Cruz revela-se o Amigo dos crucificados

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Festa litúrgica da Exaltação da Santa Cruz (Ano C).


“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo”

 

Celebramos, neste domingo, a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, a mortificação, as cruzes de cada dia... Nela mesma, a Cruz não tem sentido (instrumento de tortura), mas o que aconteceu nela: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados da história.

Assim, à luz do Crucificado, vemos a Cruz como fonte de vida em um mundo de morte. A Cruz tem suas raízes no deserto em um momento de morte e como sinalo de vida (1ª. leitura). Agora, a Cruz é reveladora do Amor com que Deus ama o mundo e fonte de vida para que “todo o que n’Ele crer, tenha a vida eterna”.

No rosto desfigurado do Crucificado revela-se um Deus surpreendente, que rompe nossas imagens convencionais d’Ele e põe em questão toda prática religiosa que pretenda prestar culto a Ele, esquecendo o drama de um mundo que continua crucificando os mais indefesos e inocentes. Se Deus morreu identificado com as vítimas da maldade humana, sua crucifixão se apresenta como um desafio inquietante para os seguidores de Jesus. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas.

Deus não está de acordo com a Cruz, mas está a favor do Crucificado. Na Cruz de Jesus se revela, ao mesmo tempo, o que Deus não quer (o sofrimento das vítimas) e o que Deus quer: a vida e a felicidade para todos, o entendimento e a reconciliação entre as pessoas e os povos, o trabalho por um mundo mais justo, no qual seja possível a vida para todos os filhos e filhas d’Ele.

Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, foi a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão foi expressão de uma opção, assumida fielmente por Ele até o fim.

A segunda paixão foi a da cruz (patíbulo), imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não foi fruto da opção de Jesus e nem fazia parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada pelo mesmo Jesus.

Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morreu na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional ao Pai e o compromisso com os excluídos.

No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não foi um evento, mas um modo de viver, pois perpassou toda a vida de Jesus. 

“Cruz-staurós” foi vivida a partir de uma causa: o Reino.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não foi um “peso morto” a ser suportado; ela foi consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significou passividade e resignação, pois ela brotou de uma vida plena e transbordante. Nesse sentido, a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir. A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11, 28-30). Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.

Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode

encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus também acolheu e integrou a “cruz patíbulo”, dando um sentido a ela e revelando sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, na Cruz assumida o Crucificado se fez amigo dos crucificados.

Cruz assumida por Jesus manifestou-se “expansiva” porque foi expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projetou para a “margem” onde Ele revelou uma presença despojada, vulnerável, que se identificou com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifestou que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele” a dor de seus filhos e filhas.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.

São cruzes que nós mesmos colocamos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas nos fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus, que leva a Cruz da fidelidade, nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.

A festa da “exaltação da Santa Cruz” nos faz “descer” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, o compromisso com a vida e com a causa do Reino, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.

Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.

É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, inspirados no Crucificado, consomem suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com suas presenças ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamem; são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer; pessoas solidárias que ajudam a carregar as cruzes de tantos que são rejeitados, incompreendidos, odiados, perseguidos...; pessoas que visibilizam a Cruz da fidelidade de Jesus.


 Reflexões Evangélicas: A OBRA REDENTORA DE JESUS CRISTO


Texto bíblico:  Evangelho segundo João 3,13-17

 

Na oração: 

Associar-se ao Crucificado em sua “descida” para “subir” com Ele significa, também, arrancar do próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-se possuir pela glória de Deus.

- Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplarmos mais atentamente, logo descobriremos, nesse Rosto, o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o afeta? o deixa inquieto? O incomoda?