sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A sedução dos primeiros lugares

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 22º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz!”

Com sua presença provocativa numa refeição, “na casa de um dos chefes dos fariseus”, Jesus denuncia um “pecado de raiz” que, em grau maior ou menor, está presente em todos nós: a vaidade.

“A vaidade é a osteoporose da alma”, afirmou o Papa Francisco; os ossos parecem bons, a partir de fora; mas, por dentro estão todos corroídos. A vaidade nos infla, nos engana, mas não tem longa vida, porque é como uma bolha de sabão.

Este “pecado de raiz” se visibiliza na busca pelos “lugares” de destaque, de prestígio, de honra... A busca dos primeiros lugares se enraíza numa profunda carência pessoal: a necessidade de se sentir reconhecido. A isso se somam outras necessidades como a de “ser visto”, “ser único” ou “ser especial”. A vaidade é mascarar a própria vida para aparecer, para fingir, para impressionar...

No evangelho deste domingo, Jesus desmascara a cultura da aparência e da vaidade; no fundo, Jesus desvela a cultura da superficialidade, da mentira e da falsidade existencial. Para a chamada “cultura da imagem” parece que tudo vale, contanto que a imagem pessoal saia beneficiada.

O ego busca autoafirmar-se porque unicamente desse modo pode sentir-se “existente”. Entre os modos de autoafirmação se destacam aquela que podemos considerar como pulsão básica: aparecer, chamar atenção sobre si, ser reconhecido... Como se torna impossível fundamentar-se em si mesmo, de uma maneira sadia, devido à sua natureza vazia, precisa “roubar energia” para alimentar-se. Trata-se, portanto, de um parasita que vive do que é tirado dos outros: o elogio, o reconhecimento, a bajulação...

O resultado de tudo esse processo, na medida em que a pessoa se deixa enredar por ele, é um ego escravo da vaidade e da busca de prestígio. Escravidão que corre de mãos dadas com a ignorância acerca daquilo que realmente a pessoa é. O ego se move sempre a partir de suas necessidades e seus medos, que são os que lhe dão uma sensação de existir; e a pessoa egóica cada vez se sente mais frustrada e desconectada de quem verdadeiramente ela é.

As tradições sapienciais sempre insistiram no cultivo de atitudes alternativas, como fica destacado com força na mensagem do próprio Jesus. Este é o caminho da sabedoria e da libertação do sofrimento. E só o crescimento nesta consciência tornará possível a transformação pessoal e coletiva.

A plenitude humana se revela naquilo que a pessoa é, a sua essência, e não naquilo que aparenta. Uma pessoa, vazia de ego, tem acesso à verdadeira sabedoria e deixa transparecer uma profunda gratidão pelo simples fato de existir. Só quando tem acesso à sua verdadeira identidade, a pessoa será transformada e poderá viver numa atitude de gratuidade e gratidão.

E assim, descentrada de si mesma, vive uma atitude de acolhida e partilha na relação com os outros; a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação com o ego farisaico cai. Então emerge uma nova consciência na qual os outros são percebidos como “parte” de si mesmo; partilhar com os outros é doar-se a si mesmo; causar dano aos outros é danificar a si mesmo.

Podemos imaginar a expressão de susto e surpresa daquele fariseu que convidara Jesus à sua mesa. É que Jesus tem sempre algo “novo” que rompe com “o de sempre”. Contra todo formalismo auto-centrado, a Jesus lhe ocorre dizer ao fariseu: “Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir”.

A “novidade” da Boa Notícia de Jesus vai sempre contra os “velhos costumes” do “eu te convido para que me convides” (e, se possível, com juros). À lei da “reciprocidade comercial” Jesus contrapõe a “generosidade gratuita”.

Para Jesus, adquire a verdadeira honra quem não se exalta a si mesmo sobre os outro, mas quem “desce” voluntariamente, colocando-se juntos aos últimos e servindo-os. A generosidade é compartilhada com os pobres que não podem pagar com a mesma moeda, porque não tem nada. Honra e vergonha adquirem, na boca de Jesus, um conteúdo diferente: a honra consiste em servir ocupando os últimos lugares e isto não é motivo de vergonha, mas sinal verdadeiro de quem já está dentro do grupo dos verdadeiros seguidores do próprio Jesus que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em favor de muitos”.

Jesus nos convida e nos deslocar para o “último lugar”, pois Ele se fez “último”; Ele entrou na história a partir de baixo, dos últimos, dos excluídos, e não pelo lugar do poder, da riqueza, da força...

As grandes mudanças e transformações, em todos os níveis da condição humana, começam por baixo. Não há mudança que vem de cima.

Poderíamos dizer que a denúncia de Jesus, junto à mesa de quem o convidara, alarga o sentido da amizade.

O Para Francisco fala da “amizade social” e colocou esta expressão no centro da encíclica “Fratelli Tutti”; tal expressão pode parecer algo estranha, e por isso reagimos com surpresa. Todos nós estamos acostumados a utilizar a “amizade” como atributo pessoal e privado; para falar das relações na sociedade, recorremos a termos mais amplos como respeito, solidariedade, civismo, cidadania, etc. Reservamos a palavra “amizade” ao círculo íntimo de nossos afetos.

Vivemos um contexto social e religioso onde nos sentimos mais distantes e sozinhos, mais desarticulados e vulneráveis, limitados à condição de espectadores e consumidores; a globalização nos fez vizinhos, mas não irmãos. Claramente, nossas sociedades mostram dificuldades para se constituírem como um projeto que abarque a todos. Obviamente, não nos sentimos companheiros no mesmo barco e inquilinos da mesma casa comum. São inumeráveis os excluídos da mesa da refeição.

A “amizade social” é uma tentativa de reverter esta situação. Seu ponto de partida é o reconhecimento básico do que vale um ser humano, sempre e em qualquer circunstância, considerando-o precioso e digno de todo cuidado. Só exercendo esta visão da vida, realizaremos uma fraternidade aberta a todos. No entanto, para isso precisamos cruzar as cômodas fronteiras que nos separam.

O desafio é “ir mais além”, tomando consciência, por exemplo, de que a amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde ativamos habilidades para serem aplicadas universalmente. Os amigos que só se ocupam de seus amigos reduzem o horizonte da amizade. E, da mesma maneira, quando as famílias só se preocupam pelo bem-estar dos seus, e esgotam sua responsabilidade neles, algo decisivo fica por fazer.

A experiência da amizade e do amor deve servir para abrir o coração àqueles que estão excluídos, fazendo-nos sensíveis a esta realidade, envolvendo-nos numa atitude ética de acolhida, dotando-nos de generosidade para sair de nós mesmos e cuidar de todos. Não existimos em um vazio, mas em um contexto amplo e diferente de relações das quais somos corresponsáveis.

Nesse sentido, viver o seguimento de Jesus implica em “sair do próprio amor, querer e interesse” (Santo Inácio de Loyola) e abrir-nos ao encontro com o outro, sobretudo o “outro” que é vítima de estruturas sociais e políticas injustas, que é excluído, que é marginalizado. “Converter-nos” ao Deus da Vida é “converter-nos” ao compro-misso com os prediletos d’Ele, os mais pobres e sofredores; é abrir nossas casas e oferecer nossas mesas.

Fazer caminho com Jesus desperta em nós uma profunda sensibilidade que nos impulsiona a uma presença inspiradora naqueles “lugares” onde já está presente Aquele que continuamente se desloca para o mais baixo, para que nenhuma pessoa, para que nenhuma situação humana, fique fora do “movimento de vida” e de “retorno” de tudo para o Pai.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 14,1.7-14

Na oração:

É na espiritualidade da mesa e da refeição que nós cristãos, devemos alimentar a nossa espiritualidade cotidiana. Mas, para isso, precisamos resgatar a mesa como espaço do sagrado, do encontro com o outro e conosco mesmo.

É urgente sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar da nova mesa, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso.

Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.

- Quê lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar, comunitária, eclesial...?

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Porta aberta: travessia para o inesperado

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 21º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita...” (Lc 13,24) 

Jesus está a caminho de Jerusalém, onde também pretende fazer chegar a Boa Notícia do Reino. Nesse percurso, o evangelista Lucas recolhe uma série de afirmações do Mestre que tem como objetivo instruir os discípulos e a nós sobre o seu seguimento.

Mais uma vez estamos diante de uma pergunta curiosa apresentada por alguém da multidão que o seguia: “é verdade que são poucos os que se salvam?” Jesus não responde diretamente à questão pois a salvação não significa um voluntarismo para cruzar a linha de chegada na vida; ela é dom de Deus, que desperta em nós o desejo de entrar no fluxo da sua Graça, esvaziando-nos do “ego” e abrindo-nos a uma atitude de serviço oblativo e gratuito.

Jesus não está preocupado com a quantidade dos que se salvarão, nem dá resposta à pergunta pela salvação final. Pelo contrário, faz um sério apelo a praticar a justiça no momento presente. Muda, assim, a direção da resposta esperada acerca do futuro para centrar-se no chamado a viver o presente com mais sentido e intensidade. A salvação não é simplesmente uma realidade do futuro, mas está conectada com as atitudes assumidas no presente, ou seja, é consequência de uma prática da justiça. O decisivo não é o futuro, que está nas mãos de Deus, mas o presente das ações justas ou injustas.

Jesus usa a imagem da “porta” para falar dessa passagem de uma vida limitada e auto-centrada, a uma vida expansiva, aberta à realidade. Porta que possibilita “entrar” na vida; dom em plenitude.

Na realidade, há uma tendência em todos nós de vivermos trancados em nossos mundos limitados; criamos e vivemos em “mundos-bolha”. Qual é o problema deste mundo-bolha? Porque questionar se alguém está tranquilo, comodamente instalado em suas seguranças, rodeado de um universo familiar e não ameaçante? Porque este afã por romper a bolha?

É difícil sair do terreno conhecido. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Portas são trancadas em todas as dimensões da vida: afetiva, social, religiosa, política... Podemos construir uma vida encapsulada em espaços feitos de hábitos e seguranças, situações estáveis, convivendo com pessoas que pensam e vivem do mesmo modo...; podemos ancorar-nos em três ou quatro seguranças que nos permitem viver sem sair de terrenos conhecidos.

Com isso, acabamos estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isto acontece, terminamos tendo perspectivas pequenas, visões incompletas, horizontes atrofiados e, provavelmente, ignorância sobre um mundo amplo, complexo e cheio de ricas possibilidades.

Em outras palavras: colocamos “portas” intelectuais e espirituais à audácia do amor. Falta-nos fé nas maravilhas do Espírito. Essa atitude de sair por nossas portas em direção à necessidade alheia com criatividade é a essência do Seguimento.

O tema da “porta” é mencionado muitas vezes pelos evangelistas para indicar uma passagem significativa ou a entrada em uma nova maneira de viver. O próprio Jesus se definiu como a “Porta da Vida”; Ele não veio complicar a vida com mais exigências. Só passa pela “porta estreita” quem se esvazia do próprio ego. Bater à porta significa desejo de entrar na intimidade; abri-la é sinal de acolhida e fechá-la é dizer não a quem se aproxima.

De fato, o símbolo da “porta” não se define em si como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o interstício entre dois espaços; é, portanto, o que divide dois modos de ser e viver: egóico ou oblativo.

A “porta” representa o lugar onde acontece a passagem de um estado a outro, a dobradiça entre dois mundos... ; a “porta” protege o sagrado, esconde o mistério...; tem o seu momento “fascinante”, mas comporta também um “tremendum”; ela nos situa num momento de ansiedade, de espera, de inquietação  que toda passagem de um estado a outro provoca; esta preocupação com o que está “além da porta”, ou seja, a passagem de uma situação que se conhece a uma outra que se revela inédita, mas na qual se desejaria entrar, provoca medo e insegurança.

O que está além da porta provoca arrepios; “passar a porta” significa, portanto, ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do “fora do normal” ...

O “outro lado” é um espaço não esclarecido, é um lugar ainda não explorado.

Há um véu que impede a visão, é o lugar da inacessibilidade, comporta a proibição de se aproximar da “sarça ardente”. “O homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo”, diz a Bíblia.

Está cada vez mais difícil encontrar algo que soa verdadeiramente diferente: sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.

A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

Portanto, a primeira atitude é sair do “ego” (“sair do seu próprio amor, querer e interesse” – S. Inácio).

E isso significa desconstruir nossa linguagem, nossa presença, nossas seguranças, nosso solo nutrício; deixar-nos romper, abrir-nos aos outros e ao grande Outro; não sermos nós o centro do processo a partir de nossas seguranças e daquilo que conhecemos.

“Vivo já fora de mim, porque vivo no Senhor que me quis para si” (S. Teresa de Ávila).

O compromisso é “viver fora de mim”. E “viver fora de mim” implica estar aberto ao inesperado, ao surpreendente, ao desconcertante.

“Dá-me, Senhor, capacidade e valentia para deixar o terreno conhecido, para sair do já sabido, para aprender cada dia aquilo que possa se tornar novidade, surpreendente, diferente” (oração Magis)

A “porta estreita” que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. O caminho espaçoso representa o que todos usam; o apertado é o caminho que Deus preparou para cada um de nós: é o caminho único e original, no qual vivemos e deixamos transparecer a imagem que Ele tem de cada um de nós.

Na verdade, o caminho estreito leva a um horizonte mais amplo. Nele, alcançamos a harmonia conosco. Aquele que se contenta em seguir os outros não vive de verdade. Nosso processo de humanização só pode ser completado se encontrarmos nosso caminho pessoal e percorrermos por ele.

John Sanford afirma: “O caminho largo é aquele da vida que seguimos de forma inconsciente, é o caminho da menor resistência e da identificação com as massas. O estreito exige consciência e atenção desperta se não quisermos nos desviar do caminho”.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 13,22-30

Na oração:

A experiência de oração é um risco, é uma travessia para um outro “lugar” e deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar provocativo, carregado de uma Presença que chama, que fala, que envia...

“Passar a porta” revela que em toda experiência de oração está implícita a ideia de uma “soleira”, de um “limiar e, portanto, um momento de “passagem”. Não se pode estar “dentro” e “fora” ao mesmo tempo; não se pode ser mero observador na experiência de oração: ou se fica fora da porta, ou se dá o passo que “desinstala”, que “compromete”, que “vincula”.

- Atravesse a “porta” de sua interioridade e viva a intimidade com Aquele que está sempre à sua espera; entre em diálogo com Ele.

sábado, 16 de agosto de 2025

Maria, a mulher dos olhos contemplativos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria.

“...porque Ele olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,48)

 

dogma da Assunção afirma que Maria, mãe de Jesus, “subiu ao céu como mulher plena”. 

A festa da Assunção nos revela que em Maria realiza-se a situação final, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.

Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”; foi “assunta ao céu” porque sempre foi “olhada” por Deus, que a engrandeceu plenamente. 

“Alegra-se meu espírito em Deus meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva”, canta Maria no seu “Magnificat”, reconhecendo que nesse olhar divino está a fonte de seu júbilo: Deus se inclinou para ela, a envolveu em sua ternura e a inundou de graça. E Maria, ao sentir-se assim olhada, se alegra até às raízes mais profundas de seu ser. 

Mas, sem deter-se aí, dirige seus olhos para onde Deus sempre olha, e contempla a história com o mesmo olhar na qual se sentiu envolvida. Aproxima-se da “janela” da realidade com olhos novos, com um realismo consciente da fragilidade das pessoas e da dureza da vida: há famintos, pobres e humilhados; há ambições e poderes opressores que são a causa da tanta miséria e violência. 

Maria não se deixa enganar pelas aparências, pois revela-se capaz de perfurar a realidade e ver as coisas, as pessoas e as relações tal como Deus as vê. Por isso, adianta-se a contemplar os famintos já saciados, os humildes e abatidos já exaltados e os ricos e poderosos despedidos de mãos vazias.

Porque “sentiu-se olhada amorosamente por Deus” Maria se revela com olhos contemplativos; brilham neles traços de ternura, de compreensão e amor compassivo, que atraem como imã. São olhos que expressam amor, proximidade, sensibilidade, interesse pela realidade. É o olhar da pessoa próxima que se “põe na pele do outro”, o olhar da pessoa que se deixa afetar.

Podemos dizer que Maria tem “olhos oblativos”, comprometidos. “Faz-te olhar”, recomenda Rumi, o místico sufi do século XIII, com sua costumeira simplicidade e determinação.

Maria tem os olhos grandes da mulher contemplativa; olhos abertos e serenos, voltados para o mistério interior e exterior. Tudo cabe sob o amparo desta fonte cálida.

Há um adágio latino que diz: “ubi amor, ibi oculus”. “Onde há amor, ali está o olhar”. O amor direciona o olhar, a atenção e o cuidado para aquilo que se ama. E onde está o olhar, o amor passa do coração aos pés e às mãos. O amor vê o que os olhos não veem. O amor vê o que os egoístas não veem. O amor vê e não pensa duas vezes. O amor não espera chamadas. 

Não basta ver as coisas a partir de longe; nem basta saber que os outros precisam de ajuda; não basta saber que os outros estão sós e necessitados. 

Na Bíblia, “pôr os olhos” é “pôr o coração”. Maria põe seu coração em toda a realidade, em todos os homens e mulheres, seus filhos e filhas; Maria, a contemplativa, é a mulher mística “de olhos abertos”, tocando a terra; assim é a genuína fé cristã, bem enraizada sempre na realidade.

Assim é Maria, revelada pelos evangelhos: uma mulher que se “deixa afetar”, de olhar contemplativo e estremecida de júbilo em Deus, em pé e mobilizada, uma mulher que bendiz e se põe a serviço.

É assim que a encontramos na casa de Isabel, na sua visitação e estadia como servidora.

Maria é a mulher contemplativa, mulher aberta e atenta a Deus e à realidade, ou melhor, a Deus-na-realidade. São olhos de uma mulher mística e profetisa: mística, ou seja, capaz de ver a Deus em tudo e tudo em Deus (“a minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador”); e profetisa, capaz de ver tudo com os “olhos” de Deus; olhos que proclamam as maravilhadas e que denunciam as mazelas daqueles que são ambiciosos e rompem a comunhão.

No Magníficat de Maria encontramos uma mulher lúcida, comprometida com a história de seu povo, crítica da ordem estabelecida, na linha dos profetas de Israel.

No Evangelho deste domingo, Maria revela-se disposta, pronta a empreender o caminho em direção à casa de sua prima; inteira em sua atenção profunda e aberta para a ação. É a mulher que “se pôs a caminho e foi às pressas à montanha, a uma cidade de Judá”;

Em Maria vemos uma pessoa de pé, pronta, mobilizada, com talante, capaz de olhar com o coração, deixando-se afetar pela realidade, vivendo a alegria de crer e fazendo de sua vida uma benção.

Como mulher “resolvida”, Maria é transparência de Deus. Nela vemos que “o que é próprio de Deus” não é prioritariamente um assunto de doutrina nem de moral, mas um assunto de “entranhas”, de vida.

Porque experimentou a Deus como fonte de vida, ela explodiu em louvor, mostrando que a fonte da alegria só a encontramos no Deus da Vida: esse é seu canto. Ela também, como Jesus, nos comunica algo extraordinário: o verdadeiramente humano é transparência de Deus.

Contra certas imagens de Maria que predominaram e predominam no imaginário cristão, o evangelho nos revela uma mulher decidida, segura de si e, ao mesmo tempo, voltada para os demais. Tinha olhar atento, inclusive “perscrutador”, para inteirar-se do que acontecia ao seu redor, não para alimentar curiosidade, mas para colocar-se à disposição; seu olhar oblativo parte do movimento interior, despertado pelo seu “sim” a Deus; daí brota sua “responsabilidade” como colaboradora: Maria é a mulher “responsável”, a partir de sua autonomia e seu serviço.

Para viver a fidelidade autêntica ao Evangelho, precisamos ser, como Maria, místicos e profetas: capazes de ver a Deus em toda realidade e de ver toda a realidade com os olhos de Deus. Precisamos, em definitiva, sentir-nos entranhavelmente amados(as) e benditos(as), para poder fazer de nossa vida uma benção, para nós mesmos(as) e para os outros. Precisamos sentir o que Maria experimentou: “Deus olhou com bondade minha pequenez”; em nossa “pequenez” Deus continua realizando maravilhas e nos olha (“põe seu coração em nós”), sempre e incondicionalmente, com bondade e misericórdia, querendo só nosso bem. 

Este é o Seu desejo para todos nós: que sejamos pessoas a caminho da completude e plenitude humana: em Deus, já somos “assuntos(as), ou seja, pura transparência d’Ele.

Assim, o mistério da Assunção de Maria torna-se uma inspirada referência para aclarar melhor o mistério de cada um de nós. Porque em Maria se encontra realizado aquilo que todos aspiramos: viver no fluxo da santidade divina; todos aspiramos a uma plenitude que, saibamos ou não, só Deus pode saciar. 

Maria, “cheia de graça”, “cheia de Deus”, é a realização plena de todas as nossas aspirações.

Por outra parte, além de uma vida plena, todos aspiramos a uma vida duradoura. Vida plena que permaneça, vida cheia de Deus e eterna. Na Assunção de Maria se realiza esta outra grande aspiração humana: viver para sempre, unidos(as) a Deus, fonte de toda vida. E viver com toda nossa realidade, plenificada em todas as suas dimensões. O pensador Kierkegaard afirmou que quando o ser humano ignora o eterno que há nele, sente o vazio, a angústia e o desespero.

Maria, na plenitude, é o referente do qual todos almejamos: que nada nos falte, que todos os aspectos e dimensões de nossa vida estejam plenificadas e saciadas. É este o significado do dom da salvação, oferecida por Aquele que a todos nos eleva. A salvação é um projeto de vida feliz, estável e completa, no qual todos os nossos desejos estão plenamente saciados. Isso é o que, com outras palavras, o dogma da Assunção diz de Maria. Essa é a esperança cristã. Por isso, Maria é transparência de nosso próprio mistério.

Solenidade da Assunção da Virgem Maria ao Céu – Paróquia Coração de Maria

 

Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 1,39-56

 

Na oração: 

Ao longo da oração peça que as palavras de louvor e de libertação cantadas por Maria penetrem no seu coração e deixem bro-tar frutos de conversão, de alegria e de gratidão; peça especialmente a graça de cantar com um cora-ção transbordante de júbilo, pela salvação recebi-da. Peça também que as palavras do Magnificat transformem seus valores, suas atitudes e suas prá-ticas na linha da justiça e da misericórdia do Evan-gelho do Reino, proclamado por Jesus e antecipado no cântico de sua mãe.

- Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na sua própria história pessoal.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Buscar o tesouro que somos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 19º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Porque onde está o vosso tesouro, aí também estará o vosso coração” (Lc 12,34)

Lucas conservou em seu evangelho algumas expressões, cheias de afeto e carinho, dirigidas por Jesus a seus seguidores e seguidoras. Com frequência, costumam passar desapercebidas. No entanto, lidas hoje a partir de nossas comunidades cristãs, elas revelam uma surpreendente atualidade. É o que precisamos escutar de Jesus nestes tempos difíceis para a vivência do seu seguimento.

“Não tenhais medo, pequenino rebanho” é uma destas expressões. Jesus olha seu pequeno grupo de seguidores com imensa ternura. São poucos; têm vocação de minoria; não devem pensar em grandezas. Assim Jesus os imagina sempre: como um pouco de “fermento” oculto na massa, uma pequena “luz” em meio à obscuridade, uma pitada de “sal” para dar sabor à vida.

Como discípulos de Jesus devemos aprender a viver em minoria. É um erro fomentar uma Igreja poderosa e forte; é um engano buscar poder mundano ou pretender dominar a sociedade. O Evangelho não se impõe pela força; ele deve ser contagiado por aqueles que vivem ao estilo de Jesus, tornando a vida mais humana.

“Vendei vossos bens e deis esmola”. Os seguidores de Jesus são um pequeno rebanho, mas nunca devem se constituir como uma seita fechada em seus próprios interesses; não devem viver de costas às necessidades de ninguém. Serão comunidades de portas abertas; compartirão seus bens com aqueles que mais precisam de ajuda e solidariedade; darão esmola, ou seja, viverão a “misericórdia”.

O relato deste domingo prossegue com uma forte expressão: “foi do agrado do Pai dar a vós o Reino”. Sem esta consciência de que somos portadores deste dom de Deus é quase impossível situar-nos na confiança e no compromisso com tudo o que ele supõe.

O Deus de Jesus é dom total, incondicional e permanente. Jesus recorda isso com frequência; seus seguidores não devem sentir-se órfãos, pois tem a Deus como Pai. Ele nos confiou seu projeto do Reino; é um grande “tesouro”, o melhor que temos em nossas comunidades: a missão de tornar a vida mais humana e a esperança de encaminhar a história para sua plenitude salvífica. Este é o “tesouro” que nos dignifica e nos convoca à responsabilidade de fazê-lo chegar aos outros.

Os grandes sábios da humanidade sempre utilizaram a imagem do “tesouro escondido” para revelar a compreensão – encontro – de nossa verdadeira identidade. Falaram também da urgência de despertar do sonho no qual estamos adormecidos e de recordar nossa verdade esquecida.

Jesus também, com grande sabedoria, revela o sentido de nossa vida: buscar, nas profundezas de nosso ser, o tesouro que nos plenifica.

Todo ser humano aspira e busca esse tesouro. De fato, é esse desejo que nos move, nos faz iniciar a busca e percorrer diferentes caminhos, atraídos sempre por seu sentido de plenitude.

No entanto, nessa busca pode acontecer de tudo: nos distraímos e terminamos enredados; nos conformamos com pequenas “bijuterias” e esquecemos o tesouro real; calamos a voz do desejo, entupindo-nos com múltiplos ruídos; dizemos a nós mesmos que o desejo é impossível de ser realizado e que é necessário sermos “práticos” e não vivermos de “contos” ilusórios...; não é fácil superar a armadilha que nos incita a buscar o tesouro em “algo” fora, longe ou no futuro. Começamos a crer que a plenitude de vida se encontra fora de nós e aí começamos a corrida que não conduz a lugar nenhum.

O tesouro é o Deus mesmo presente em cada um de nós. É a verdadeira realidade que somos.

O Reino, que é Deus, está em nós (“O Reino está dentro de vós”, disse Jesus). Essa presença é o valor supremo. Quem encontra seu tesouro, não despreza outros valores.

Deus não se contrapõe a nenhum valor, senão que potencia o valor de tudo o que é bom.

O que há de Deus em nós é o fundamento de todos os outros valores. Ter acesso ao nosso “eu” mais profundo significa “buscar e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas, em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade... Ali podemos nos interrogar o que é que Deus deseja nos revelar por meio deles e, como justamente através deles, Ele deseja nos conduzir ao tesouro no chão de nossa vida, à essência que nos dignifica.

O tesouro significa o “investimento” que Deus fez em cada ser humano; por isso, cada um é único e original, com potencialidades especiais e recursos oblativos.

O tesouro não é algo acidental que podemos ter ou não ter; é nossa essência. Não é fruto de uma descoberta racional, mas de uma experiência profunda e viva.

O tesouro sempre está aí, nas profundezas de nosso ser, mas nem sempre somos capazes de reconhecê-lo.

 Não se trata de conquistá-lo, mas simplesmente de descobri-lo. É despertar-nos para aquilo que realmente somos: o que é mais nobre, mais profundo, o que dá sentido e valor à vida.

Na verdade, o tesouro está escondido, porque perdemos o caminho do interior e vivemos na superfície de nós mesmos; é preciso “descer” para redescobri-lo. Não se trata de confiar naquilo que nós podemos alcançar, mas naquilo que Deus já nos deu (Reino). Deus foi o primeiro que confiou em nós, no exato momento que nos criou e decidiu “investir” o melhor em cada um. A única coisa que Ele espera é que nós mesmos descubramos esse dom e vivamos a partir dele.

Por isso, é preciso viver sempre em atitude de busca. Mais do que estar vigilantes, é preciso estar despertos. Não porque pode chegar o juízo final quando menos esperamos, mas porque a tomada de consciência da identidade que somos exige uma atenção ao que está mais além dos sentidos e não é nada fácil descobrir.

Como manter viva a esperança? Como não cair na frustração, no cansaço ou no desalento? Onde encontrar um princípio humanizador, capaz de nos libertar da superficialidade ou do vazio interior?

Para despertar é preciso tomar consciência da luz presente em nosso interior e alimentá-la; nós nos tornamos mais “lúcidos” (portadores de luz) quando tomamos consciência da superficialidade de nossa vida, do ativismo, da vida “normótica” e sem direção...; a verdade abre espaço em nós quando reconhecemos nossos enganos; a paz chega ao nosso coração quando des-velamos a desordem em que vivemos.

Usando a imagem da “lâmpada acesa”, Jesus nos provoca a despertar de nossa indiferença, passividade ou do descuido com o qual vivemos nosso discipulado. É a luz interior que deve ser alimentada para inspirar nossos critérios de ação, força que impulsiona nosso compromisso e esperança que anima nosso viver diário. Somos chamados a sermos pessoas “ardentes”, “luz que acende outras luzes”, ou seja, pessoas que experimentam a vida como crescimento constante. Sempre buscamos algo mais, algo melhor; a vida é inesgotável: uma descoberta na qual sempre podemos avançar.


Textos bíblicos: Evangelho segundo Lucas 12,32-48

Na oração:

Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial.

Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo novo e pleno de vida. 

- Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Vazio interior: uma morte lenta

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 18o. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“... a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15) 

Jesus, no evangelho deste domingo, nos situa no horizonte do sentido da vida e revela que o ser humano está direcionado para um “fim” (“ser rico para Deus”). Assim diz o poeta Elliot: “do fim é que partimos”. É este fim que ilumina e inspira todo o seu percurso existencial; é o “fim” que determinada nosso modo de viver, que ilumina e plenifica nossas opções e compromissos.

De fato, uma das enfermidades mais graves de nosso tempo, sem dúvida, é o “vazio existencial”. Essa verdadeira enfermidade afeta milhares de pessoas em nosso mundo, gera depressões, inseguranças e neuroses. Viktor Frankl descreveu este vazio como uma frustração existencial, como um sentimento de falta de sentido da própria existência. A crise pós-moderna que vivemos deixa transparecer este traço sinistro: as pessoas não têm mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais investir a vida. E assim não encontram igualmente motivações para viver com intensidade e inspiração.

A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.

- Por que vivemos? Para que vivemos? Quanto vale uma vida e o que vale na vida?

- Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões, gestos, lições, projetos, ideias e sentimentos?

O vazio interior, cedo ou tarde, desemboca no tédio e no cansaço da vida. Não se trata de uma situação passageira, mas de um mal-estar contínuo, que provém de dentro e que envolve toda a existência de ceticismo, indiferença e desânimo. Tudo parece insípido. Nada vale a pena. O indivíduo vive num deserto interior.

Podemos dizer que o coração do ser humano é feito de “matéria nobre” e de profundas “carências existenciais”.  Sua matéria nobre provém de sua capacidade de amar, de sua disposição à comunhão, de sua abertura à transcendência. Não esqueçamos que o ser humano é imagem e semelhança de Deus...

Suas “carências” provém de suas limitações e fragilidades, enquanto criatura.  Essas “carências” do coração tomam o nome de insegurança, temor, desconfiança, medo do futuro, da morte...

Quê saída buscar diante da ferida existencial, da insegurança do próprio eu, da indigência do coração?...

No evangelho deste domingo, Jesus denuncia que, para muitos, o que acalma e apaga a angústia existencial é a riqueza. Ao se cercarem de muitos bens (sejam materiais, como dinheiro, posses... ou espirituais, como as qualidades pessoais e os saberes), creem que se acaba toda insegurança, todo medo ou qualquer tipo de angústia. Trata-se de um engano nada evidente. O mal radical está, portanto, na “insaciável cobiça do coração pervertido”. O engano acontece quando o coração se apega “pulsionalmente” às riquezas até depender delas; nesse caso, elas deixam de ser mediações do Reino para se converterem em ídolos do próprio coração. Deles se espera a salvação, e não dos outros e muito menos de Deus.

O “afeto desordenado” às riquezas se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de fé. A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Jesus fica fragilizado. Como todo ídolo, a “riqueza” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais maléficas para todo seguidor de Jesus. A busca da própria segurança é a base da tentação pela “riqueza”.

De fato, o apego idolátrico aos bens tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança. O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob os próprios pés. Mais ainda: a riqueza é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, possessiva, própria do apego aos bens, possui toda a força do narcisismo e de uma carência infantil não integrada, com a ilusão de agradar e abastecer o próprio ego. Além disso, a riqueza tem um caráter “pegajoso”, possui uma sinistra aderência que, na medida em que mais se fixa, maior vai sendo sua força para atrair novas necessidades. Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade. Aqui estamos diante de uma "embriaguez existencial" na qual toda alteridade desaparece.

A consequência mais lógica numa pessoa que se habitua a ter tudo ou querer tudo, é que ela chega a bastar-se a si mesma, desprezando ou desvalorizando os outros, inclusive a própria graça do Senhor. A raiz de tudo é uma profunda auto-suficiência, que, sem se dar conta, leva-a a considerar-se forte porque tem tudo.

No apego “perverso” aos bens e riquezas, não se trata já de “ter algo”, mas de “ter-se a si mesmo” numa tendência de orientação marcadamente centralizadora. A pessoa fecha-se sobre si mesma, rompendo todo impulso em direção aos outros, pensando conquistar uma segurança. Mas, na realidade, a pessoa está se situando na posição mais insegura que se possa imaginar, pois “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?” (E. Fromm).

O problema da relação com as riquezas se intensifica se levamos em consideração que, junto a estes fatores pessoais, é preciso acrescentar a influência e a manipulação tão fundamental que vem do meio ambiente socioeconômico. O desejo não é alheio, certamente, às dinâmicas ambientais nas quais este necessariamente se desenvolve, cresce e pode encontrar seus objetos de satisfação.

Por isso, a dinâmica econômica de nossos dias deve ser levada muito em conta à hora de compreender as vias pelas quais circulam nossos vínculos com o dinheiro e com os bens. A armadilha de nossa sociedade de consumo está no fato de não descobrirmos que quanto maior capacidade temos de satisfazer necessidades, maior número de novas necessidades nós criamos; e isso, sem possibilidade alguma de marcar um limite.

Na criação da nova comunidade dos seguidores de Jesus, a atitude de compartilhar deve substituir a acumulação e se apresenta como alternativa àquilo que a sociedade de consumo impõe; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.

Contra a tendência a querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa hostil diante dos outros, Jesus nos convida a compartilhar, como abertura aos outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade”, uma alternativa às relações interpessoais de exploração e exclusão. Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância. Só assim seremos “ricos para Deus”. E “ser rico diante de Deus” não quer dizer armazenar méritos para a outra vida, mas administrar nossos bens inspirado no modo de ser e de viver de Jesus que, sendo rico se fez pobre para nos enriquecer.

É decisivo cuidar e investir no enriquecimento da vida interior, e reavivar “o amor criador” que, segundo São Tomás de Aquino, é o contrário do vazio ou do tédio vital.

Para o cristão, o seguimento de Jesus Cristo, “caminho, verdade e vida”, é o melhor estímulo para recuperar o verdadeiro sentido da existência. A partir dessa identificação o cristão vai se “enriquecendo” interiormente.

Em seu centro está o amor e somente o amor pode justificar nossa existência.; a partir do amor gera-se uma vida que se caracteriza pela alegria e pela paz, que dá origem a atitudes de bondade, paciência, lealdade, compaixão, presença solidária... O amor é a última palavra na explicação do sentido da vida.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 12,13-21

Na oração:

Que paixão move o seu coração? Seu coração está livre? Seus afetos estão ordenados?

Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos, de nossa vontade, de nós mesmos...

- Quê apegos estão travando sua vida e impedindo-o aderir a Cristo incondicionalmente?

- Que “riquezas” estão travando o fluxo de sua vida? Onde você está “investindo” seus melhores recursos?

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Inácio de Loyola, um Santo para Nosso Tempo


Depois de cinco séculos, Santo Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original e através do ritmo de decisões pessoais aprofundadas, no contexto de mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar, de sentir, de viver, novas descobertas, novas terras...

Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes mudanças que colocavam em questão tudo o que até então era recebido.

Depois de ter posto seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a “terra de Cristo” era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.

Mas, seu itinerário não é unicamente geográfico. A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da Igreja e da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.

Tudo começou em 20 de março de 1521: A “bala” que feriu Inácio na batalha de Pamplona não transpassou tão somente sua perna; atravessou também, de modo igualmente profundo e traumático, todo o mundo de ambições e sonhos de glória que ele havia buscado e fantasiado até esse momento. Todo um sistema de ideais se vê deste modo derrubado.

Foi forçado a um confinamento, de uns nove meses. Nas primeiras semanas debateu-se com a dor e com a morte, mas logo começou a abrir-se, para ele, algo diferente, e desse tempo nasceu um homem novo.

Um castelo interior (um tipo ideal de homem) se desmoronou, ao mesmo tempo que começou a surgir outro edifício humano, não mais centrado na busca de poder e prestígio, mas na força dos grandes desejos e na sedução pela pessoa de Jesus Cristo, que, desde então, ocupará a tela inteira de sua vida.

A partir deste momento, toma como ponto de partida o protagonismo ativo e criativo de Deus em sua história pessoal; Inácio é movido a fazer uma leitura de sua própria história com a chave do protagonismo de Deus. A leitura de alguns livros - “Vita Christi” e “Legenda Áurea” foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
Da “leitura de textos” à “leitura de si mesmo”: este é o deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionadora, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia. Leitura que o ajuda a “ordenar” seu mundo interior. Descobre, então, ser possuidor de uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.

“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.

Inácio precisou de tempo para compreender tudo o que se passava com ele. No começo, teve de lutar contra a febre e a dor de suas feridas; quando elas começaram a diminuir, buscou primeiro entreter-se com leituras amenas e finalmente foi encontrado por Aquele que o buscava, através dessa ferida. Aquilo que no início foi vivido como uma derrota e um fracasso, foi seu segundo nascimento.

Como Inácio, talvez busquemos, num primeiro momento, nos entreter lendo “livros de cavalarias” que nos fazem fugir e esquecer a angustiante situação que estamos vivendo; ou talvez, já tenhamos começado a ler textos verdadeiros, textos reveladores e instigantes que nos devolvem a nós mesmos para dispor-nos a uma outra escuta, agora interna.

O novo de tudo isto é que não se trata de uma situação individual, mas coletiva. É agora que nos é dada a oportunidade de nos colocar realmente a escutar e a discernir os sinais. Mas, não sozinhos, e sim, juntos. Talvez seja esta a diferença fundamental com respeito a Inácio de Loyola. Como aconteceu com ele, o desafio está em passar de um confinamento forçado a um distanciamento, livremente acolhido e carregado de presenças.

Dispomos de muitas ferramentas, entre elas, aquelas que o mesmo Inácio nos deixou, para converter este confinamento coletivo em um retiro partilhado, em Exercícios coletivos de discernimento e re-conversão. São muitos os apelos, as inspirações, os movimentos internos, as reações e os impulsos que estão em jogo. Santo Inácio, em seu leito de convalescente em Loyola, começou a dar nomes a tudo isso. Ali aprendeu a discernir e a decidir; ao sair de seu confinamento, não voltou à “normalidade” da vida, mas abriu-se ao novo, sonhando grande, ensaiando outros caminhos, indo ao encontro de um mundo em efervescência.

Que Santo Inácio nos inspire a viver este tempo como momento privilegiado para uma intensificação nas relações, para dar passos novos, para reinventar a vida e carregá-la de sentido.

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Ser aprendiz na escola de oração de Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 17º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Senhor, ensina-nos a orar...” (Lc 11,1)

 

Na convivência com os “discípulos seus” Jesus foi transparente e presença marcante. Chamou-os para “ficar com Ele”, aprender d’Ele a serem testemunhas de seu Amor incondicional ao Pai e aos irmãos.

Entre os inúmeros desejos e aspirações que Jesus suscitou, uma foi a grande aventura de aprender a orar.

Jesus orava. Orava sozinho, orava com a multidão, e orava com os discípulos.

Às vezes no templo, outras vezes nas caminhadas da Galileia a Jerusalém; sempre orava a realidade iluminada pelo Projeto do Pai: mergulho íntimo e comprometedor.

S. Lucas nos revela que Jesus estava rezando num lugar solitário, afastado. O Pai-Nosso é oração de intimidade que só pode brotar do coração de Jesus num diálogo muito pessoal, filial, com o Pai.

Não é difícil reviver a cena do Evangelho: Jesus orando e os discípulos contemplando o Mestre em oração.

 

Esta prática do Mestre exercia sobre os discípulos um fascínio e um desejo de entrar por este caminho, totalmente novo. Na espontaneidade de aprendiz, um deles expressa o desejo do grupo e pede:

                        “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos”.

Os discípulos não perturbam a oração de Jesus, nem se aproximam d’Ele. Só quando Ele termina de orar é que alguém toma coragem para dirigir-lhe a palavra e fazer-lhe um pedido.

Eles, acostumados a viver com Jesus, sentiam que não sabiam orar, que não conseguiam concentrar-se no amor infinito de Deus, entrar no diálogo silencioso com o Pai, de Quem Jesus tanto lhes falava.

É este desejo de conhecer o Pai que anima os discípulos a pedirem para aprender a orar.

Pai-Nosso é a oração que Jesus deixou como herança aos seus seguidores. É a única oração que lhes ensinou para alimentar sua identidade de seguidores seus e colaboradores no projeto do Reino de Deus.

O Pai-Nosso nos des-vela, como nenhum outro texto evangélico, os sentimentos que Jesus guardava em seu coração. É a melhor síntese do Evangelho, a oração que melhor vai nos identificando com Jesus.

Desde muito cedo, o Pai-Nosso se converteu não só na oração mais querida pelos cristãos, mas na oração litúrgica que identificava a comunidade eclesial reunida no nome de Jesus. Por isso, ensinavam os catecúmenos a recitá-la antes de receberem o batismo.

Esta oração, pronunciada a sós ou em comunidade, meditada e interiorizada continuamente no coração, pode também hoje reavivar nossa fé e nosso compromisso em favor do Reino de Deus.

Com o Pai-Nosso estamos diante do segredo de Jesus comunicado aos discípulos e a nós, seus seguidores.

Jesus ensinou a orar, orando. Ele fez junto com os discípulos uma trajetória de oração; não só apontou o caminho, mas fez o caminho com eles. Conhecer sua oração é entrar no próprio movimento de seu desejo e, de certa maneira, participar de sua vida íntima e de seu espírito.

Jesus ensinava com a vida uma nova maneira de comunicar-se com o Pai.

E mergulhar na intimidade do desejo de Jesus é conhecer também o que este mesmo desejo d’Ele pode revelar a nosso respeito, conduzindo-nos ao mais profundo de nossa humanidade.

E o desejo que Ele expressa no Pai-Nosso nos revela que somos habitados por um “desejo infinito” que só o Infinito pode preencher. De fato, é preciso integrar em nós todas as dimensões de nossa condição humana (corporal, psicológica, espiritual). O desejo se enraíza em nosso corpo, atravessa nossa memória, afeta nosso psiquismo e se abre à Transcendência.

Pai-Nosso expressa bem estas dimensões do desejo porque manifesta o desejo do alimento, o desejo de liberdade, o desejo de ser capaz de perdoar, o desejo de ser libertado do sofrimento, o desejo de não se deixar levar pelas provações, o desejo de que reine em nós um outro espírito, que não reine sobre nós o peso de um “passado ferido” ... Todos estes desejos se expressam e se enraízam na humanidade de Jesus.

originalidade de Jesus, expressa na oração do Pai-nosso, tem dois aspectos principais. Em primeiro lugar, esta oração se dirige ao “Abbá”. Sabemos que Deus, para Jesus, é “Abbá”; sua oração não é dirigida friamente ao Todo Poderoso, ao Juiz universal, ao Senhor..., mas ao “Abbá”, carregado de afeto e calor humano. Também para nós: quando oramos, não somos escravos, temerosos, indignos..., mas filhos e filhas. Isto supõe uma inversão radical na imagem de Deus e de como devemos nos relacionar com Ele. Nossa relação com Deus Pai-Mãe, deve ser aquela de um(a) filho(a) com seu pai/mãe. Tal relação deixa transparecer a certeza e a segurança de sermos escutados e atendidos.

A segunda novidade do Pai Nosso está centrada no “nosso”. Jesus dá a cada um a possibilidade de dizer “nosso”, de entrar em relação com Aquele que “é” e que nos chama à existência.

Nós nos dirigimos ao Abbá de todos, sem exclusão. O Pai Nosso é uma oração que nos situa no horizonte da filiação divina e da fraternidade humana. É a oração dos filhos/as, dos irmãos/ãs. Aqui está o sentido pessoa e comunitário do Pai Nosso.

Por isso, a oração de Jesus é muito mais que uma grande oração de petição. É a síntese das relações de um ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e com a própria criação.

Porque, quando dizemos “Nosso Pai”, nós nos tornamos o lugar onde o universo toma consciência de si mesmo e, também, nos tornamos o lugar onde o universo reza.

A expressão “nosso” estende-se a toda a Criação, a tudo que vive e respira.

“Nosso” é uma expressão de recolhimento que reúne o mundo, que integra os diferentes níveis da realidade.

É a expressão que coloca o “eu” no centro do “nós”, lembrando-nos que, na presença da Origem, somos todos cor da argila, somos todos terrosos, mas habitados pelo “Sopro” do Pai.

Segundo São Paulo, nós mesmos não temos a coragem de chamar a Deus de “Pai bondoso”.

É o Espírito Santo quem põe nos nossos lábios a invocação que só Jesus tinha usado em sua oração.

Ou, mais exatamente, é o Espírito Santo que reza em nós com as mesmas palavras de Jesus (Gal. 4,6).

Pai-Nosso é a prece de Deus em nós. Dizer o Pai-Nosso é uma maneira de harmonizar nosso desejo, ainda disperso e superficial, com o desejo de Deus em nós.

Assim, tal oração nasce espontânea no coração de quem busca o Senhor, mas também é uma arte de diálogo com o Absoluto, que se aprende lentamente: “A oração é a arte de amar” (S. Teresa de Jesus). A vida transforma-se numa atitude de oração, onde tudo nos une ao Senhor e tudo vem dela como força e vida.


 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 11,1-13

 

Na oração:

O Pai-Nosso é uma caixa de segredos. É preciso abri-la.

- Calmamente, repasse e saboreie cada “palavra” dessa oração de Jesus; deixe que cada uma delas ilumine sua mente, abra sua inteligência, aqueça seu coração e se expresse como “moção” inspiradora e vivificadora.

- Abra sua interioridade para que esta oração vá lapidando todo o seu ser, como um escultor que fere o mármore em busca da sua obra-prima.