quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Jesus não era de “sangue azul”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que encerra o Ano Litúrgico.

“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37) 

Com a festa de “Cristo Rei” encerramos mais um ano litúrgico. O Evangelho indicado para esta festa nos introduz numa cena muito constrangedora da vida de Jesus. O contexto no qual ela se desenvolve é o processo de julgamento político ao qual Ele foi submetido, denunciado pelas autoridades judaicas. Como podemos observar, não estamos diante de um diálogo distendido entre dois iguais; é um procurador romano frente a um acusado que deve responder e dar razão daquilo que o levou a esta situação.

Condição mais inapropriada para Jesus se declarar “rei”.

Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...

Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.

Jesus não se apoia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Sua realeza tem um fundamento completamente diferente; ela provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.

Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.

Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem muitos cristãos “fundamentalistas”.

Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos das nações.

Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode se defender.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!

Jesus não quis fazer-se rei militar, pois a violência pertence ao nível dos poderes de um mundo onde a verdade se encontra pervertida pela mentira dos poderosos. Jesus quis ser Rei, mas de maneira que todos pudessem ser reis, “testemunhas da verdade”. Assim respondeu a Pilatos dizendo-lhe que “seu reino não era deste mundo”. Pilatos só conhecia um tipo de reino, aquele que se fundamentava na espada do império, que se apoiava e se defendia com as armas, de maneira que a verdade como tal tornou-se secundária.

Meu Reino está em “ser testemunho da verdade”. Como Pilatos vai entender isso se está acostumado a fazer da verdade o que a ele lhe interessa e lhe convém?

Esta é a proposta: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, nem por algum tipo de justiça legal, nem por dinheiro... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade, da fraternidade e não violência... para que todos sejam “reis”, no sentido radical da palavra.

Portanto, a festa de “Cristo Rei” revela-se como uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, quando nos identificamos com Ele, também somos reis. Reis servidores devemos ser todos.

Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus” porque, como reis, estamos todos a serviço de todos.

“Sou rei..., e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. É neste mundo que Jesus quer exercer sua realeza, mas de uma forma surpreendente: veio ser “testemunha da verdade”, introduzindo o amor e a justiça de Deus na história humana.

Esta verdade que Jesus deixa transparecer não é uma doutrina teórica. É um chamado que pode transformar a vida das pessoas. Ele já tinha afirmado antes: “Se permanecerdes na minha palavra... conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Ser fiéis ao Evangelho de Jesus é uma experiência única pois nos leva a conhecer uma verdade libertadora, capaz de tornar nossa vida mais humana.

Diante de Pilatos, mais uma vez aparece a palavra “verdade” (“aletheia”), que Jesus considera como a razão de seu ser e de sua missão. A verdade da qual Ele fala não é um argumento carregado de afirmações fechadas para ter razão. Não se trata de possuir a verdade ou estar na verdade, de ter direitos sobre os outros, de se impor sobre alguém. Longe disso.

Jesus fala da “verdade” no sentido de uma atitude diante da vida, de uma opção de vida: viver na verdade é buscar a verdadeira essência que somos, nossa possibilidade de plenitude, nossas raízes mais profundas; é conectar-nos com esse Reino que traz à luz a bondade humana como imagem da bondade divina.

Só tomamos consciência de nossa realeza quando acessamos à nossa verdade mais profunda. Enquanto isso não ocorra, viveremos como mendigos, buscando nos apropriar e nos identificar com tudo aquilo que possa nos conferir certa sensação de identidade. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”.

Verdade é a realidade existente; ela salienta a dignidade de cada pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.

A verdade des-cobre o que está encoberto, des-vela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombrado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.

A verdade retira o mundo (interno e externo) da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante.

Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada.

Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade”. Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, transparente, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade.

É significativo que os antigos gregos entendessem a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos, a nossa essência. Importa “des-velar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.

Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida. É aqui que se revela como Rei.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 18,33-37

Na oração:

Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida.

- A verdade que somos nunca pode ser algo que temos e possamos transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.

- Sua vida está centrada no des-velamento de sua verdade, de sua essência? Ou ela se deixa determinar pela cultura da aparência, da vaidade, da mentira...?

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Brotos que alimentam a esperança

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 33º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Quando os ramos da figueira ficam tenros e as folhas brotam, sabeis que a primavera está próxima”

 

A natureza se renova continuamente através dos brotos; muitas vezes nos fixamos na velha árvore e temos a sensação de que ela está morta. Mas, de repente, das profundezas das raízes, uma nova seiva vai emergindo, fazendo aparecer novos brotos que apontam para os frutos vindouros.

O que a vida cristã precisa claramente, neste momento de desânimo e de abatimento, não é resignação diante do contexto no qual vivemos, mas de vida e vitalidade. Precisamos alimentar a esperança para empreender novos caminhos com entusiasmo renovado e sem temor.

O seguimento de Jesus, mais que prudência, conformidade ou conservadorismo que pretende preservar as coisas do passado em lugar de sua sabedoria, requer audácia, precisa de membros adultos que resistam ao envelhecimento da vida, e jovens que resistam ao envelhecimento da alma.

Muitas vezes, onde deveria reinar a ousadia, reina a resignação e a passividade, onde deveria reinar a criatividade, reina a repetição doentia, onde deveria reinar a “narrativa” da vida de Jesus, reina a doutrina pesada e o legalismo estéril. A tentação consiste em fazer da sobrevivência a nossa máxima aspiração, em vez de vivermos a vida plenamente, com toda profundidade e o entusiasmo que nossa vocação cristã exige.

A capacidade de arriscar situa a vida cristã deste tempo perante o desafio de confiar ao máximo em Deus. A capacidade de arriscar é a virtude que fará a ponte entre a vida cristã atual e a que está para vir.

Pertencer a uma antiga instituição não é desculpa para não ter ideias jovens e não fazer coisas novas.

Ao contrário, é precisamente a idade da instituição que exige isso. É a virtude de viver plenamente até a morte que se exige da vida cristã atual, se quisermos que os brotos voltem a surgir.

É a virtude do risco que precisamos alimentar de novo: risco nos mais velhos que acreditam que os grandes riscos de sua vida já tinham passado; e risco nos novos membros que pensam que uma vida fundada no seguimento de Jesus e no serviço é uma vida sem nenhum risco.

A revitalização do seguimento de Jesus não consiste em redefinir suas formas, sua doutrina, seus dogmas, seus ritos... senão em reavivar seu significado, seu direito a continuar tendo sentido diante das novas inquietudes e das realidades atuais.

O mundo que está mudando ao nosso redor provoca mudanças em nós também. O importante é que cheguemos a “ser” o que devemos ser num mundo que nos arrasta com ele.

         “Eu não teria gostado de viver sem haver inquietado alguém alguma vez” (Catherine de H. Doherty)

A questão é se a vida cristã provoca e inquieta o suficiente em nosso atual momento. A verdadeira questão é esta: na velha árvore do cristianismo, ainda surgem brotos para suscitar a energia necessária a fim de tornar mais autêntico o nosso compromisso com o Reino?

Estamos num tempo de mudança, mas também emocionante e santo, para a vida cristã.

Há uma poderosa seiva presente por debaixo das raízes.  O único que temos a fazer é não impedir o seu deslocamento em direção aos ramos, para que novos brotos de vida possam aparecer. A impressão que temos é que a vida cristã parece ter muito mais “galhos secos e sem vida” do que folhagem e frutos novos.

Por isso, de tempos em tempos precisamos passar por “abalos sísmicos”, tanto no nível interno de nossas vidas quanto na instituição eclesial, para derrubar o que está seco e caduco e deixar emergir o broto vital, que alimenta nossa esperança e abre um horizonte de sentido.

O “sol” do ego inflado precisa se esvaziar no escurecimento; a “lua” da vaidade precisa deixar de brilhar para si mesma; as “estrelas” do auto-brilho precisam cair... É do meio do “cosmos”, interno e institucional, renascido e reordenado, que poderá emergir o “Filho do Homem”.

Sabemos que o ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.

É preciso retornar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.

É a partir do interior que algo pode mudar.

O evangelho deste domingo tem profundas ressonâncias apocalípticas, ou seja, uma revelação, um des-velamento, um des-nudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.

Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apokalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.

Assim pois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia” = sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor do evangelho quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.

Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho.

Nesse sentido, podemos “ler” o texto do evangelho como se escutasse um sonho revelador.

O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo, reencontrando sua dignidade no coração das situações mais difíceis.

A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o des-velar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.

A partir de um imaginário “catastrofista”, o evangelho aponta à esperança, exige atenção e responsabilidade com os sinais menores e cotidianos para indicar que o presente tem futuro, porque Deus não abandona a criação e a humanidade mais ferida; Ele está enraizado no mais profundo dela como uma potência surpreendente que pede nossa responsabilidade e ousadia.

Na verdade, os discursos escatológicos e os anúncios apocalípticos, apesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”.

A autêntica esperança, no entanto, não só não nos afasta do presente, senão nos enraíza nele. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Agora”. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele. Presente carregado de uma Presença providente.

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 13,24-32

 

Na oração: Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, nos perguntamos:

- É possível “esperançar” quando sinto que a realidade é um “beco sem saída”?

- Como “esperançar” em meio a tanta violência, destruição, preconceito, indiferença?

- Qual tem sido meu suporte e ajuda nesses momentos da vida e como posso oferecê-lo aos outros?

- Quê ou quem me ajudou a despertar a esperança nos momentos mais obscuros?

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A carência de interioridade nos desumaniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 32º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Tomai cuidado com os mestres da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas...” (Mc 12,38)

 

No evangelho deste domingo, os mestres da Lei (escribas) e a viúva constituem dois símbolos que encarnam maneiras de viver diametralmente opostos. Os primeiros se movem sob o impulso do poder e da vaidade, querendo oferecer uma imagem ostentosa e buscando reconhecimento, privilégios e dinheiro através de qualquer meio, inclusive usando da religião. Jesus denuncia as “largas túnicas” que costumam utilizar, nos ambientes mais diferentes, como sinal distintivo de superioridade.

No nível mais profundo, podemos considerar os “mestres da Lei” como símbolos do ego (religioso) que, carentes de interioridade, vivem em função de suas próprias necessidades e interesses narcisistas.

Por outro lado, a imagem da viúva representa a pessoa capaz de doar e de entregar-se (“tudo o que possuía para viver”), de maneira generosa e desapegada.

O contraste que o relato realça deixa transparecer o que cada um de nós vive em nosso interior. Em nós convivem o melhor e o pior, e em diferentes “doses”, tanto o “escriba” (o ego que gira constantemente em tono a si mesmo), como a “viúva” (a dimensão profunda que vive na compreensão e se expressa no amor que se entrega).

O evangelista Marcos só precisou de sete versículos para mostrar duas realidades de alto contraste e que põem em evidência duas formas de situar-se na vida e na religiosidade.

O relato deste domingo começa situando Jesus em seu ministério pedagógico. Como verdadeiro Mestre, ensinava às pessoas, ensinava com transparência e a partir da liberdade que o caracterizava. Nesta ocasião, seu ensinamento se converte em um conselho imperativo: “tomai cuidado com os mestres da Lei”. E dá razões pelas quais é preciso proteger-se das atitudes deles.

Certamente os escribas eram os “experts” e intérpretes oficiais e lícitos da Escritura. Gozavam de grande autoridade; buscavam sempre serem vistos e admirados; vestiam de forma especial; Jesus os denuncia porque eles gostavam de andar pelas praças com vestes exuberantes. Não é casualidade que também os denuncie como aqueles que “devoravam os bens das viúvas”, pois costumavam persuadi-las demonstrando serem muito devotos para administrar seus bens e aproveitar-se delas.

Eles são justamente o contrário daquilo que Jesus vem pregando; o conflito está armado. Estes líderes religiosos revelam a superficialidade na vivência e no compromisso de sua fé. Uma religiosidade baseada na aparência, na conservação de uma posição sociocultural, em manter um lugar visível e hierárquico, em alimentar um ego inflado e enaltecido que os conduz a viver de modo ego-cêntrico e ego-ista.

O seguimento de Jesus, no entanto, é um modo de viver descentrado, um compromisso existencial, onde não prevalece a ambição do ego, mas o esvaziamento e a saída de si mesmo para centrar-se no cuidado e no serviço aos demais.

A ambição e a atitude dos “mestres da Lei” não se extinguirão nunca, nem sequer nas comunidades cristãs. Ainda hoje, a figura do “mestre da lei” continua atuante, sobretudo quando os “ministros” (ordenados e não-ordenados) insistem no uso exagerado de vestimentas exóticas que tem sua origem no modo de vestir dos poderosos do império romano. Tal insistência parece indicar a necessidade, consciente ou inconsciente, de manifestar posição de poder ou uma carência de interioridade. A “cultura da exterioridade” e da busca do reconhecimento revelam o “complexo de pavão”, quando predomina a preocupação com as aparências, o espetáculo visual, a insistência em ser o centro das atenções nas celebrações, em buscar o elogio e serem admirados por todos.

Diante do espetáculo visual dos “mestres da lei”, o evangelista Marcos apresenta uma nova situação: a viúva que colocou duas moedinhas no cesto das ofertas e que servirá de contraste para compreender a mensagem de Jesus. Esta mulher é muito mais que uma viúva que depositou uma insignificância no cesto. Jesus realça esta figura simbólica que rompeu os esquemas patriarcais e religiosos dos poderosos judeus e, neste caso, dos escribas. Um simples gesto recuperou a dignidade de uma mulher que, por ser mulher, não tinha nenhuma visibilidade e, por ser viúva, estava numa posição de indigência absoluta, segundo a visão judaica.

O gesto dela des-vela a essência do coração da nova comunidade de Jesus: um abandono e confiança em Deus, uma gratuidade plena, um amor solidário, generosidade. Ela não tem poder algum, nem cargos, nem possui “dignidade eclesiástica” alguma; a única coisa que possui é um coração generoso, mas isso conta pouco nas instituições de poder. Para Jesus, o centro da comunidade cristã não é o poder e nem são os poderosos, mas as pessoas simples, a fé e o bom coração dos humildes e misericordiosos.

Jesus admira a pobre viúva. Eles não se conheciam; ela não é discípula, nem cristã..., ela é uma mulher, dos pés à cabeça, que fiel à sua consciência, deposita tudo no Templo, cujo “deus”, manipulado pelas autoridades religiosas, a exclui de quase tudo por ser mulher; no entanto, ela sabe, no fundo de suas entranhas, que Deus não é como propagam aqueles que a oprimem e alimentam uma vaidade vazia, mas é Aquele revelado pelos profetas e salmos, e a Ele se entrega e confia totalmente.

A generosidade desta mulher não está baseada numa obrigação moral, nem em um gesto público para ser aplaudido, mas se apoia na consciência de sua dignidade que a mobiliza a entregar tudo o que ela considera que deve doar.

Jesus já tinha estado no Templo, purificando-o e expulsando aqueles que ocupavam o lugar de Deus. No relato de hoje tudo é diferente; Ele não está irado e tenso, mas se admira da viúva despojada; isso lhe dá força e convoca os seus discípulos para clarear as ideias deles e dizer-lhes onde está o verdadeiro amor e a autenticidade de vida cristã; e que não se enganem, porque o discípulo e a discípula devem ter em Deus seu tesouro.

Ao contemplar a pobre viúva, talvez Jesus pensasse em sua mãe, em todas as mulheres pobres que, ao longo da história, mantém os lares, as comunidades cristãs, visitam os doentes, partilham o pão com famintos e, sempre com um detalhe nobre: com ternura, com dignidade, com compaixão. Esta viúva, contemplada por Jesus, continua caminhando por nossas ruas e paróquias, anônimas, mas com um coração generoso. Porque é essa capacidade de entregar tudo sem medida que converte uma pessoa em discípula de Jesus.

Jesus nos convida a olhar este exemplo vivo para ilustrar o modo de nos situar no seu seguimento, em contraste com os escribas e fariseus. Critica estes personagens, certamente, mas propõe uma alternativa: a de uma vida conectada à dignidade e que tem como consequência gestos de entrega, de simplicidade e liberdade. O modo de viver a vida e a fé não é questão de quantidade, das vezes que repetimos os ritos, das vezes que fazemos gestos generosos, do dinheiro que doamos ou outros atos repetitivos que vão se esvaziando de sentido. É muito mais uma questão de qualidade, de uma auto-consciência de nos percebermos enraizados numa Presença Providente que nos mobiliza a colocar toda a nossa realidade humana sob a influência da sua energia criadora.

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 12,38-44

Na oração:

O Evangelho desvela dois personagens que habitam nosso interior; o doutor da lei, centrado em si mesmo, vive da aparência, usa da religião para se projetar, para brilhar... É a cultura da vaidade, da exterioridade... Por outro lado, a pobre viúva representa aquilo que em nosso interior não valorizamos ou rejeitamos, mas que, na sua pobreza e humildade, des-vela-se diante de Deus com um coração generoso. Não pensa em si, mas nos outros; partilha tudo o que tem. Não busca a glória e o elogio.

- Qual dos dois personagens eu alimento? Vivo da aparência e da vaidade ou do descentramento e serviço?

- O que em mim é “doutor da lei”? O que em mim é “pobre viúva”?