quinta-feira, 18 de julho de 2024

Descanso, um espaço aberto ao discernimento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 16º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31)

 

A vida, toda vida, tem sua dose de cansaço. Também Jesus experimentou isso: “Fatigado da caminhada, sentou-se junto ao poço” (Jo 4,6).

De que estava habitado o cansaço de Jesus? Marcos nos conta que eram muitos que chegavam e saiam, e não lhes sobrava tempo nem para comer. É um cansaço perpassado de rostos, que tem a ver com a vida que se gasta e se põe a fadigar por outros: “Levavam a eles todos os enfermos e endemoniados” (Mc 1,32).

De fato, de acordo com o evangelho deste domingo, as jornadas de Jesus se revelavam esgotadoras: muitos enfermos eram levados até Ele para que os tocasse e os curasse; muitas pessoas se aproximavam para escutá-lo; era muito exigido em todos os lugares por onde passava; os conflitos desgastantes com os fariseus...

Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas, ao mesmo tempo, sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.

Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo na sua missão com maior criatividade.

Talvez, por isto, nunca perdia o norte, sempre estava preparado, pronto, disposto a investir o melhor de si e a responder na direção adequada.

De que estão feitos nossos cansaços?

Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada.

Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça um repouso reparador. Os cansaços acabam nos revelando que, em nossa vida ativa, estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ele nos arranca de nossa existência maquinal.

É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “reabastecer o motor” ... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo, de stress...

Descansar tornou-se uma necessidade do planeta. A terra, nós e todos os seres vivos precisamos da pausa que revigora, do repouso que nos faz criativos.

Prazer, vitalidade e criatividade dependem dessas pausas que estamos negligenciando. Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.

O descanso nos conserva humanos; ele nos ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante, ou seja, recuperar a capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos, com o Criador... Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.

O descanso pode ser um bom tempo para retomar a vida com mais liberdade e para realizar atividades mais humanizantes. Nesse sentido, o objetivo principal do descanso é recuperar nosso lugar e nossa condição de homens e mulheres, afastando de nós o endeusamento e as fantasias de onipotência.

No descanso, voltamos a pisar a terra (húmus – humildade) para recuperar uma relação desinteressada e sadia com os outros, com o mundo e com Deus.

A vida tem necessidade de “con-sideração”, “avaliação”, “fundamentação” ... Do contrário, ela perde densidade e, sobretudo, desperdiça sua própria beleza.

Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos.

Precisamos de “paradas”, mas paradas com argumento interior. Elas devem ser algo assim como um retorno contemplativo, uma “re-flexão” em direção à raiz de nossas motivações.

O descanso permite sintonias profundas conosco mesmo e com a profundidade das circunstâncias habituais que fazem parte do nosso cenário cotidiano.

Ele desperta uma predisposição pessoal que pode ser decisiva para redescobrir o valor e o sentido do cotidiano no qual voltamos a mergulhar. O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras.

Nesse sentido, o descanso se assemelha muito a uma certa ressurreição; não é um simples reabastecimento, mas uma regeneração na qual se recompõe a interioridade, o espírito criativo, a disposição de coração...

“Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão”, senão uma “conexão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso nos possibilita afastar do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.

No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos.

Deste modo, o descanso também pode se constituir como um “tempo” privilegiado para uma intimidade com o Senhor, um espaço em nossa existência para estar gratuitamente com Ele, para saborear sua presença em nossa vida, para alegrar-nos com sua ação providente e cuidadosa.

“Tempo sagrado” para dirigir nosso olhar para o Pai, para compreender, a partir d’Ele, o sentido das coisas e da história. “Tempo” para Deus, para mergulharmos no mistério que pulsa no profundo da vida e render-nos diante d’Ele, para descalçarmos diante do sagrado e contemplar.

A mística inaciana tem muito a nos revelar sobre esta atividade tão divina e tão humana: o descanso.

“Viver descansadamente” (S. Inácio), é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...

Viver uma vida ativa descansadamente é viver com os pés na terra e contemplando as “coisas do alto”.

Como homem pragmático, Inácio de Loyola mandou construir casas de descanso para os jesuítas, pois sabia, por experiência, que uma atividade forte pede relaxamento. Ele compreendeu que os ambientes tensos e atividades estressantes não são desejáveis nem para a vida espiritual, nem para o trabalho, e recomenda “recreação” e “relaxamento” na atividade, seja corporal ou espiritual.


Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 6,30-34

Na oração:

Também na vida espiritual, necessitamos de pausa para um encontro profundo conosco e com Deus, e assim poder retomar a vida com mais dinamismo. A pausa é que dá sentido e inspiração à caminhada.

- Na perspectiva do discernimento, devemos, depois de cada descanso, nos perguntar:

“o que ele nos trouxe de novidade? Ajudou a nos dignificar como pessoas? Melhorou a relação com os outros? facilitou ao outro sentir-se bem? quê possibilidades novas nos apresentou?”

“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)

- Seu descanso: É tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?

quinta-feira, 11 de julho de 2024

SEGUIR JESUS: fome e sede de estradas

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 15º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Jesus chamou os Doze, e começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes autoridade...” (Mc 6,7) 

“Seguidores do novo caminho”: assim eram reconhecidos os primeiros cristãos (cf. At 16,17; 18,25-26; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). Pelos diversos caminhos da história perdem seu valor as verdades inamovíveis, dogmáticas, petrificadas, porque o importante na vida é discernir, em cada encruzilhada do percurso, o que nos diz hoje o Deus da Vida, sua Presença e sua voz manifestada nos rostos e nas existências de homens e mulheres de nosso mundo, em especial os mais desprezados e esquecidos.

Jesus envia seus discípulos com o necessário para caminhar. No envio, algumas orientações que pressupõem despojamento para o bom exercício da missão: segundo Marcos, levarão apenas um cajado, sandália e uma túnica, confiando na providência acerca do pão e do dinheiro.

Desprendimento é uma característica fundamental de quem está voltado para o Reino, anunciado por Jesus. Não precisam de mais nada para serem testemunhas do essencial. Jesus os quer ver livres e sem ataduras; sempre disponíveis, sem instalar-se na acomodação do bem-estar, confiando apenas na força do Evangelho.

Fala-se muito hoje, na comunidade eclesial, sobre a necessidade de uma nova evangelização. Em que consiste? Onde pode estar sua novidade? Que é preciso mudar? Qual foi realmente a intenção de Jesus ao enviar seus discípulos para prolongar sua missão evangelizadora?

O relato de Marcos, neste domingo, deixa claro que só Jesus é a fonte, o inspirador e o modelo da ação evangelizadora de seus seguidores. Estes atuarão com Sua “autoridade”. Não farão nada em nome próprio; serão os “enviados” do próprio Jesus. Não pregarão a si mesmos, nem uma doutrina, nem um moralismo doentio e muito menos uma nova religião, com seus ritualismos estéreis e ameaças. Só anunciarão o Evangelho de Jesus. Não terão outros interesses: só se dedicarão a abrir caminhos ao Reino de Deus.

A única maneira de impulsionar uma “nova evangelização” é purificar e intensificar a vinculação afetiva com Jesus. Afinal, somos seguidores de uma Pessoa, e isto implica revestir-nos do modo de ser e viver desta Pessoa. Não haverá nova evangelização se não há novos evangelizadores, e não haverá novos evangelizadores se não há uma identificação mais viva, lúcida e apaixonada com Jesus. Não haverá nova evangelização sem se deixar conduzir pelo mesmo Espírito que atuava em Jesus e o conduzia para a “margem”, para o mundo dos pobres e excluídos.

Ao enviá-los, Jesus não deixa seus discípulos abandonados às suas próprias forças; comunica-lhes sua “autoridade”, que não é um poder para controlar, governar ou dominar os outros, mas uma força para “expulsar espíritos imundos”, libertando as pessoas de tudo aquilo que as escraviza, oprime e desumaniza.

Para Jesus, o poder nunca pode ser mediação de salvação, muito menos o poder religioso; pois, onde há poder, há imposição, divisão, submissão, medo... No exercício do poder, o centro está na própria pessoa que manda e controla.

“Autoridade” é outra questão muito mais nobre. Provém do latim “augere” (fazer crescer) e indica a capacidade que uma pessoa tem para estimular os outros a crescerem, para torná-los mais adultos e mais capazes de uma vida digna. Na autoridade, o centro está no outro, pois ativa a autoria e autonomia deste outro. Ter autoridade é viver des-centrado, sem buscar seus próprios interesses.

Uma pessoa tem autoridade por sua bondade e inspirada presença em um grupo, na família, na comunidade, no povo, na igreja... Pode acontecer que uma pessoa tenha poder legítimo (conferido por eleição) e nenhuma autoridade; ou, de outro modo, pessoa que tem autoridade, mas sem poder.

Jesus não governou sobre ninguém e nem impôs nada à força. Nunca utilizou o poder para controlar ou dominar seus discípulos; jamais excluiu a alguém. Foi livre e libertador: acolheu os mendigos doentes e marginalizados, negou-se a condenar a mulher adúltera, pediu a Pedro perdoar até setenta vezes sete... Despertou a vida nas pessoas excluídas, sensatez e justiça na sociedade. Não ostentou nenhum poder oficial, mas, segundo as pessoas, atuava e falava como quem tem autoridade.

Os discípulos sabiam muito bem qual era o encargo que Jesus lhes confiava. Nunca o viram governando a ninguém. Sempre o viram curando feridas, aliviando o sofrimento, regerando vidas, libertando as pessoas dos medos, contagiando confiança no Deus Providente. “Curar” e “libertar” foram a essência do ministério terapêutico de Jesus. Ele sempre se revelou como “o Libertador” do ser humano.

Por isso, uma nova evangelização que não seja libertadora, é vazia de valores evangélicos; acaba tendo um efeito contrário: domina e escraviza as pessoas, alimenta medos paralisantes, impede as pessoas de viverem com mais lucidez e liberdade. Foi para vivermos livres que Jesus libertou a todos.

Sem recuperar este estilo evangélico, não há nova evangelização. O importante não é criar novas atividades e estratégias, mas desprender-nos de costumes, estruturas e maneiras de proceder que estão nos impedindo de ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.

A Igreja, infelizmente, está perdendo esse estilo itinerante que Jesus pediu. O caminhar da Igreja é lento e pesado; não acerta em acompanhar os passos da humanidade; não tem agilidade para passar de uma cultura a outra; agarra-se ao poder que tudo controla; enreda-se em interesses que não coincidem com o Reino de Deus; manipula-se as consciências das pessoas impondo-lhes pesados fardos de culpas, julgamentos, ritualismos de expiação, distantes da presença libertadora de Jesus.

Nesse contexto podemos recordar uma sentença do evangelho apócrifo de Tomé (que retoma a mensagem do envio de Marcos e Mateus): “Sede itinerantes! Sede transeuntes!” De passagem vivemos, mas no caminho podemos e devemos nos encontrar e nos ajudar, animando-nos. Foi assim que, com um grupo de homens e mulheres, como transeunte do Reino, voluntário do amor, rico de vida e mendicante de esperança, começou Jesus sua missão evangelizadora.

Assim começou Jesus; assim também começaram os grandes cristãos como Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João da Cruz, Madre Teresa..., e tantos outros que souberam retornar e retornam hoje aos caminhos da vida, para acompanhar os que vagueiam, acolher os perdidos, animar e deixar-se animar por todos.

Não foi Jesus um itinerante para estabelecer relações de domínio, mas de solidariedade, sabendo que aqueles que menos tem (itinerantes) são os que mais podem oferecer (anunciam o Reino, curam).

O grupo de Jesus não se constitui em chaves de dependência ou hierarquia, mas de experiência compartilhada e comunicação pessoal. Estas novas relações são as que estabelecem a novidade da instituição cristã.

Por isso, é urgente uma profunda conversão sinodal (“caminhar juntos”); e isto significa retornar à essência do Evangelho, à identificação com Aquele que é o centro da vida cristã.

A missão evangelizadora não é tarefa de uns poucos, mas a consequência inevitável da adesão a Jesus. Não se trata de salvaguardar, a todo custo, doutrinas ultrapassadas ou normas morais que não humanizam; menos ainda em conservar ritos fossilizados que já não dizem nada a ninguém.

A mensagem de Jesus não pode ser contida em fórmulas, nem numa programação. É uma maneira de ser e viver. Ser cristão é uma maneira de ser mais humano.

“As religiões se fazem indigestas – não só indigestas -, mas sumamente perigosas, quando pretendem apoderar-se do Absoluto” (J. Melloni, sj)

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 6,7-13

Na oração:

Nas estradas da vida acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência: falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...

A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.

O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.

 - Diante de Jesus, que “passa e chama” a todos, responda: como você vive, hoje, sua missão no trabalho, no seu ambiente, na sua comunidade? Que sentido você quer dar à sua própria vida?... em quê gastar suas forças, capacidades? Como viver, no seu cotidiano, sua vocação de discípulo(a)-missionário(a) itinerante?

sábado, 6 de julho de 2024

Em Nazaré, Jesus “humanizou-se” na escola do trabalho

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 14º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria...?” (Mc 6,3) 

Marcos não começa seu evangelho apresentando a família de Nazaré e a educação do protagonista Jesus; ele começa fazendo referência a João Batista, para relatar depois o que Jesus começou fazendo.

Só agora, depois de apresentar basicamente a mensagem de Jesus, Marcos fala de sua terra e da relação que Ele tem com seus familiares e conterrâneos. Só agora recebemos uma informação mais detalhada do tema, a partir de uma perspectiva polêmica.

O evangelista já havia chamado a atenção da relação de Jesus com seus parentes, em 3,21, quando diz que eles vieram buscá-lo, porque diziam que que Ele estava ficando louco.

O relato deste domingo não deixa de ser surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente em seu próprio povoado, entre aqueles que julgavam conhecê-lo melhor que ninguém. Chegou a Nazaré, acompanhado de seus discípulos, ou seja, um mestre que tem seus seguidores fixos; ninguém saiu ao seu encontro para recebê-lo, como acontecia em outros lugares. Também não levaram até Ele seus enfermos para que os curasse. Jesus precisou esperar o sábado para ir à sinagoga e falar-lhes. Não foram à sinagoga para escutá-lo, mas para cumprir o preceito do sábado. É Jesus que, por sua conta e risco, se põe a ensiná-los sem que eles o pedissem.

A presença de Jesus desperta assombro em todos. Não sabem quem lhe ensinou uma mensagem tão cheia de sabedoria; do mesmo modo, não sabem explicar de onde provém a força curadora de suas mãos. A única coisa que sabem é que Jesus é um trabalhador artesão, nascido numa família de sua aldeia. Tudo o mais revela-se escandaloso.

Neste retorno à sua terra, Marcos aproveita para apresentar o que poderíamos chamar “o curriculum vitae” de Jesus. Todo o cristianismo posterior depende, de algum modo, deste “curriculum”, onde Jesus aparece como carpinteiro, e não como mestre de obras; também aparece como descendente de uma mulher chama-da Maria, dentro de uma família conhecida. Os dados do texto poderiam ser usados para desprezar Jesus, como de fato aconteceu. Mas, Marcos os entende como fonte de honra, conforme um processo de “inversão” muito significativo.

De fato, Jesus, o Filho de Deus vivo, assumiu a condição humana, se fez “um entre tantos”, vizinho com os vizinhos, trabalhando com os que trabalhavam, assumindo a “comum lei do trabalho”. Era conhecido como o “filho do carpinteiro”.

Na vida escondida em Nazaré, Jesus assumiu a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, dos que vão trabalhar ou estão sem emprego, dos que tem que “ganhar a vida” porque na vida não encontram seu lar, daqueles que são pura estatística...

Quando se perde a referência vital de que Jesus é o “caminho que nos leva à vida”, o seu cotidiano focado no trabalho se torna insuportável para aqueles que “buscam fama, honra e estima”.

Nesta vida comum e cotidiana foi onde Jesus cresceu em sabedoria e graça; ali Ele se “humanizou”.

Foi em Nazaré que Jesus aprendeu a olhar a realidade, o contexto social, com o sofrimento dos homens e mulheres de seu entorno. Provavelmente seus antepassados foram da Judéia a Nazaré como agricultores, recebendo como propriedade, parcelas de terra, que os vinculavam à promessa e benção antigas. Mas, num dado momento, os descendentes desses novos colonos perderam as terras, devendo trabalhar como artesãos eventuais.

Em princípio, um israelita ideal (segundo as promessas de Deus) devia ser proprietário de uma terra herdada. Mas a política urbana e mercantilista de Herodes o Grande e de seu filho Antipas fez com que muitos agricultores de Galileia tivessem que vender suas propriedades, tornando-se camponeses sem campo, artesãos eventuais (ou a serviço do templo e das construções reais) ou mendigos.

Jesus viveu num tempo de transformação comercial e urbana e muitos agricultores não puderam manter sua autonomia, de maneira que tiveram que vender seus campos aos oligarcas, tornando-se arrendatários ou artesãos a serviço das classes ricas das cidades. Jesus não teve outra opção: era pobre pela situação social e laboral e a partir daí aprendeu a viver e a olhar a partir do mundo dos pobres.

Mc. 6,3 define Jesus como “ho tekton” (o artesão), ou seja, um camponês sem-terra, de maneira que teve de viver e trabalhar entre operários eventuais ou diaristas, arrendatários explorados, enfermos, marginaliza-dos e pobres. Conhecia a pobreza por dentro; era realmente pobre por seu trabalho e o lugar que ocupava na sociedade. Como “judeu marginalizado” não podia manter-se por si mesmo, senão que dependia do trabalho em obras alheias, alimentando-se mal ao ar livre, dormindo em lugares lúgubres...

Essa foi sua escola, essa foi sua identidade: vendia seu trabalho, encontrando-se à mercê das necessidades e ofertas (ou não ofertas) dos proprietários.

Só sabemos que foi o artesão de Nazaré, e que essa palavra o definia dentro da sociedade. Era um artesão do povo, pobre entre os pobres expulsos de suas terras. Como trabalhador artesão, pode conhecer a dor real do povo, na escola de Deus, que é a escola da vida humana, em contato com as necessidades dos excluídos, dos loucos, dos enfermos, dos famintos, em solidariedade laboral.

Não foi hábil marceneiro capaz de enriquecer-se através de sua destreza. Foi simples operário, como membro do grupo dos novos pobres, por necessidade social, pelo contexto em que havia nascido, ainda que por família tivesse recebido uma intensa formação. E na vida “oculta” Jesus cresceu em “sabedoria”.

Assim aprendeu a ser humano, ouvindo os gritos dos homens e mulheres de seu entorno, expulsos, oprimidos, como ovelhas sem pastor. Não teve que entrar a partir de fora no lugar da dor; cresceu ali, o levava dentro.

Jesus viveu e trabalhou no lugar apropriado para aprender, por experiência e solidariedade, aquilo que é mais importante, aquilo que até então quase ninguém tinha visto e escutado. Esses anos de trabalho artesão não foram de “vida oculta” (em sentido intimista), senão de solidariedade e encontro com homens e mulheres de seu contexto. Os evangelhos não quiseram dar mais detalhes sobre o tempo em Nazaré.

Quando uma pessoa não se empapa do cotidiano, não vive a vida normal do comum dos mortais, quando não compartilha da alegria e das dores da imensa maioria, quando não luta e se faz gente entre as pessoas, dificilmente terá resistência para viver um grande projeto, sem sucumbir às armadilhas deste mundo.

Viver “sendo um entre tantos” outros, acolhendo a vida cotidiana em toda sua riqueza e limitação é o que nos permite poder viver apostolicamente com “sabedoria”, nos permite saber discernir o trabalho e as atividades sem perder referências e dados da realidade. Quando deixamos de pôr os olhos n’Ele e na “imensa maioria” podemos perder o foco.

O trabalho na “vinha do Senhor” nos faz “um entre tantos”, mas, ser “um entre tantos” dá pânico em muitos ambientes cristãos. Custa-nos assumir a trama do cotidiano, do vulgar, daquilo que pertence ao ambiente popular, dá medo dissolver-nos e perder-nos. Viver o seguimento do Senhor Jesus é viver o caminho da vida; é na dureza da vida que encontramos o Espírito que nos foi dado. É no compromisso com a vida que encontramos o Vivente, Aquele que submergiu nas águas deste mundo do trabalho por amor até o extremo.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 6,1-6

Na oração:

Leia, com calma e sabor, o evangelho deste dia. Deixe que as palavras de Jesus despertem novas e diferentes palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.

- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus   sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.

- Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.

- Reze o seu “cotidiano”, lugar do encontro com Aquele que deu sentido a toda ação laboral.