Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 12º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Passemos para a outra margem” (Mc 4,35)
No relato evangélico deste domingo, Marcos prepara a
cena desde o início; diz-nos que era “ao cair da tarde”. Logo descerão as trevas da noite sobre o lago de Genesaré. É Jesus quem
toma a iniciativa daquela estranha travessia: “passemos
para a outra margem”. A expressão tem forte sentido: Ele convida os
discípulos a passarem juntos, na mesma barca, para outro mundo, para além do
conhecido: a região da Decápole.
Na vida de Jesus de Nazaré, segundo o evangelho de
Marcos, a “outra margem” é, sobretudo, território pagão e
desconhecido. Está próxima, pode-se ver suas colinas a partir do lado de cá do
lago. Mas, as pessoas do outro lado estão distantes: distintas pela cultura e
religião, pelas tradições e maneiras de viver.
Para a comunidade pós-pascal, como para Jesus, “passar
para a outra margem” implica todo um deslocamento para sair da “margem”
rotineira e conhecida, ir ao encontro dos outros e descobrir ali os caminhos do
Evangelho. Pois, Jesus não se desloca à outra margem com a rota já estabelecida
e com as respostas preparadas. Ele é o “homem da margem”, pois aprende com o
diferente e se deixa transformar em sua visão de Deus e sobre o Reino, como no
encontro com a mulher cananeia.
No
fundo, “passar para a outra margem” é, para Jesus um prolongamento do dinamismo
da própria Encarnação, quando cruzou a fronteira, a mais radical,
aquela que separa as margens aparentemente mais distintas: a do divino e do
humano. A Encarnação é expressão de um Deus que sai de si e atravessa
fronteiras, não por necessidade, mas por amor, porque lhe move um desejo
irrefreável de relacionar-se, de ser-conosco, de “fazer morada” no interior do
ser humano.
Assim, a Encarnação revela-se como uma ousada
“travessia” do Deus que se humaniza; identificados com o “Deus em contínua
travessia”, também nós, na essência somos “seres de travessias”.
Por isso, o apelo “passemos para a outra margem!” indica duas coisas importantes.
A primeira é que a expressão “passemos” está manifestando uma vontade de
colocar-nos em movimento. Ou melhor, de começar a mover-nos. A segunda indica a
direção da marcha: para onde é preciso ir? “À outra margem”.
Isso significa que há duas
margens, e que nós estamos numa, onde até agora nos encontrávamos tranquilos e
seguros. É nosso “ninho”. Agora, no entanto, descobrimos uma inquietação
interior que nos impulsiona a “sair”, a nos deslocar para o outro lado; não
estamos a gosto aqui, do lado de cá. Esta inquietação nos diz, de alguma
maneira, que no nosso desejo já atingimos a “outra margem”, embora não a
tenhamos pisado ainda. Começamos a pressentir que ali há algo mais importante e
desafiante, e que não temos do lado de cá; é necessário mobilizar-nos... e
“sair”.
Para fazer a travessia
é preciso “remar mar
adentro”. Porque
adentrar-nos não é ter chegado. É algo inacabado e em processo. Fala do sentido
do êxodo, de viver em trânsito e em um permanente movimento de busca que leva conosco
certa incerteza: deixamos de ver o lugar do qual procedemos e ainda não vemos o
lugar ao qual vamos chegar.
“Passar para a outra margem” tem muito de “adentrar-nos”, ou de submergir-nos, de
empapar-nos, de molhar-nos, de deixar-nos levar mais para dentro do mar da vida
das pessoas, para descobrir aí o novo, o diferente, os “traços” originais
d’Aquele que já fez a travessia e nos espera do outro lado.
Ao mesmo tempo, somos desafiados também a nos adentrar
no mar dos desafios de nosso mundo, com seus dramas e carências, para ajudar a
sanar suas feridas e estabelecer uma rede de solidariedade.
Somos convidados também a montar tendas leves nas
encruzilhadas dos caminhos inexplorados e a descobrir a geografia dos “aforas”
como uma fonte de revelação.
Assim, passar para a outra margem é acolher o que nos
é oferecido com gratuidade.
A imagem da “travessia”
do lago de Genesaré é também reveladora de nossa “travessia” no mar interior.
Como toda travessia, a da nossa interioridade também não é pacífica; os
desafios e as dificuldades estão expressos nas imagens de vento forte, ondas
impetuosas, barco instável.
Nosso eu profundo - “a
barca” -, mesmo atrevendo-se a sair de seu mundo habitual, experimenta um
movimento forte das ondas ameaçadoras no qual teme afundar-se sem saída.
Mas, não podemos evitar de pensar e dar espaço dentro
de nós ao fato tão simples e tantas vezes esquecido de que há “outra margem”,
outra perspectiva, outro olhar...
Entendemos que se trata de uma experiência original, que
mobiliza nossos melhores recursos e que ativa nossa criatividade. Nosso
amadurecimento no seguimento de Jesus se dá através da “travessia” da margem do
nosso “ego” (autocentrado,
fechado aos outros...), à outra margem que é a de nossa identidade profunda.
Por isso, a primeira margem é “fechada”, pois tem os mesmos limites que o ego, enquanto
a segunda é ilimitada. Na margem antiga controlamos tudo a partir da primazia
do ego; na nova margem, entramos no fluxo da Vida mesma e que se expressa em
tudo e que esvazia o ego de seu protagonismo anterior.
Nossa
margem interior é mais libertadora, não tem tantos pré-juízos, nem
tantas feridas e complexos.
Que
bonita é a outra margem quando nos aderimos à pessoa de Jesus que, serenamente
descansa em nosso barco da vida! Ele, com sua presença, estabelece a calma só
com sua palavra. Imediatamente, frente tal qualidade de presença, o mar se torna
pacificado, e o medo angustiante se converte em confiança admirada e
agradecida.
Cruzar nosso lago existencial com Ele é uma
experiência chave para partilhar o que somos e o que temos. Como “seres de
travessias”, vamos criando um estilo de vida que vai dando sentido à nossa vida
cristã envelhecida, normótica e sem inspiração.
Para sairmos de nossa comodidade temos de nos deixar
comover pelo sofrimento das pessoas e pelos clamores que vem da “outra margem”.
E isso não é fácil numa sociedade que nos anestesia, nos atordoa e embota nossa
sensibilidade.
Não se trata só de ir à outra margem, mas de “deixar-nos
conduzir”, ou seja, não podemos nos deslocar a partir de nossos próprios
planos, a partir de nossas próprias forças.
Como
seguidores(as) d’Aquele que se “fez travessia”, somos chamados(as) a nos
re-inventar, a aventurar-nos por mares desconhecidos, a navegar para a “outra
margem”, para uma terra nova...
Quem
se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e
de navegar.
Para
isso é indispensável uma forte dose de ousadia...
Não pode fugir, nem trair. É preciso ousar para não perecer; é preciso
aventurar-se e arriscar o primeiro passo; é preciso peregrinar infatigavelmente
para dar origem a uma nova humanidade; é preciso ser nômade seduzido por novos
horizontes.
“Tudo que valeu
a pena, inicialmente me aterrorizou” (Betty Bender)
Pergunte a um velejador quais os seus melhores
momentos no mar e ele lhe contará sobre um perigo que o colocou diante de seus
limites.
O medo e o prazer caminham juntos. Eles se fundem no desafio. O mar da vida é o lugar do novo, do risco, da coragem e da ousadia. A vida consiste na constante aventura de ousar.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 4,35-41
Na oração:
Para
viver em atitude de “travessia” é preciso estar em eterna vigilância; e, ao
mesmo tempo, abrir-se a um constante assombro e gratidão, porque cada manhã é
um milagre.
Só vive a travessia quem está desperto, entre o
realismo e a esperança.
-Que está acontecendo com os cristãos de hoje que,
diante de tantos desafios, sentem medo de fazer a travessia e se escondem atrás
de ritualismos vazios, devoções estéreis, práticas religiosas egóicas que não
desembocam no compromisso com aqueles que “estão do outro lado, à margem”?
- Por que buscamos segurança no conhecido e no
estabelecido no passado, e não escutamos o chamado de Jesus a “passar para a
outra margem” para prolongarmos seu modo de ser e viver, aberto ao novo e
diferente?
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