quinta-feira, 27 de junho de 2024

São Pedro e São Paulo: inspiradores da Igreja sinodal

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (Ano B - 2024).

“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15) 

A festa de S. Pedro e S. Paulo pode ser uma ocasião privilegiada para aprofunda nosso “ser Igreja”; pertencemos à Comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus, prolongando seu modo de ser e viver; Ele iniciou um “movimento de vida”; por isso se distanciou de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas; cercou-se de mulheres e homens dispostos a continuar seu caminho, anunciando a mensagem do Reino de Deus; proclamou as bem-aventuranças como modo de  viver; denunciou as opressões e injustiças tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe, através de suas curas.

Hoje este movimento quer se fazer presente e continuar nas comunidades cristãs de base, espalhadas pelo mundo, distantes, em muitos aspectos, da estrutura clerical e em conflitos com os interesses e objetivos da instituição eclesiástica, centrada no poder e no controle das pessoas.

No relato do evangelho deste domingo percebemos que foi importante para Jesus saber o que as pessoas pensavam d’Ele. Mas, é possível que isso tenha sido apenas uma introdução para a segunda pergunta, dirigida aos próprios discípulos. De modo particular, a Jesus lhe interessava não tanto saber o que os outros sabiam ou pensavam d’Ele, mas o “que Ele significava para eles?”, depois de um bom tempo de convivência.

Assim, Pedro confessa a verdadeira identidade de Jesus (“Messias, o Filho do Deus vivo”); ao mesmo tempo, Jesus des-vela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra” (rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”) quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).

Pedro, que era “petros” (pedra de tropeço no caminho), foi sendo transformado, através da identificação com Jesus, em “petra”, rocha firme da primitiva comunidade cristã.

Dessa forma, o Simão que era “petros” /pedregulho se converte em “Petra”/rocha firme, porque o mestre des-velou a nobreza que estava escondida no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus iria edificar sua Igreja.

Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, sólido, onde se encontra o fundamento para poder construir a própria vida. É aqui onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde parte as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.

A essência do próprio ser é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis conflitos.

Com confiança em si e na rocha do próprio interior, todas as forças vitais se acham disponíveis para crescer dia a dia, para a pessoa se tornar aquilo que originalmente é chamada a ser.

De “petros” a “petra”: esse é o des-velamento que acontece em todo seguidor de Jesus quando escuta e vive sua Palavra, proclamada no Sermão da Montanha.

Nossa identidade profunda é constituída pela fragilidade/petros e pela fortaleza/petra. Só no encontro com Aquele que é a Rocha firme é que transparece a “petra” que está oculta em nosso interior.

A pergunta de Jesus, dirigida a Simão Pedro, deve ter uma profunda ressonância em todos nós; aqui, o decisivo não é o quanto sabemos d’Ele, nem que doutrinas ou teorias sobre Ele seguimos, nem qual é a nossa teologia sobre Ele. Para Jesus lhe interessa mais “o significado, o sentido de Sua Vida em nossas vidas”.

Muitas vezes a própria comunidade cristã está muito mais preocupada com a “ortodoxia doutrinal” e não se empenha em revestir-se da Vida de Jesus. Há mais condenações doutrinais que condenações de falta de vivências. É preciso “mais evangelho e menos doutrina” (Papa Francisco).

A fé implica ideias e doutrinas. Mas a fé não é crer em doutrinas; é crer em “Alguém”; e, crer em Alguém que seja o centro de nossas vidas, em Alguém que inspira as nossas vidas, em Alguém que dê sentido ao que fazemos e como fazemos.

Começamos a ser cristãos quando nos deixamos impactar pela pessoa de Jesus e decidimos seguir seus passos e viver como Ele viveu. Podemos saber muita teologia sobre Jesus e ter uma vivência d’Ele muito pobre. O que importa é o “Jesus Vida e na vida”.

Todos estamos seguros de que Jesus é o centro de nossas vidas, mas não nos atrevemos a nos questionar por dentro. Com isso, nosso seguimento vai se esvaziando e se tornando pura normatividade.

Para aprofundar nossa fé em Jesus, é preciso nos perguntar constantemente por ela: que significado Ele tem em nossas vidas? Que implicações tem no nosso cotidiano o modo de ser e de viver de Jesus?

Porque não basta dizer que cremos nele; é preciso perguntar-nos: em que Jesus cremos e quem é Ele para nós? Tal pergunta nos conduz a uma identificação com o estilo de vida d’Ele. Afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não seguidores de uma religião, de uma determinada igreja, de doutrinas, de ritos...

Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita, nem uma doutrina, uma liturgia, um governo... Jesus pôs em marcha um movimento que, através de muitas circunstâncias e adversidades históricas, desembocará em igrejas organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada, com uma estrutura hierarquizada e com poder.

No entanto, a verdadeira comunidade cristã é aquela que se deixa conduzir pelo mesmo Espírito do Ressuscitado, soprado sobre cada um dos seus seguidores(as); ela é o ambiente propício para personalizar a e vivê-la como con-vocação e  co-responsabilidade com os outros; ela é o espaço privilegido para reforçar os laços de verdadeira amizade, interna e externa; ela é o lugar extremamente válido para a formação de cristãos comprometidos com a causa do Reino e com a evangelização de seu meio.

O Papa Francisco vem pedindo insistentemente à Igreja sua conversão sinodal. Muitos nem sabem o que isso significa; outros resistem a qualquer mudança. Mas, na realidade, estamos vivendo uma mudança de época, favorável à conversão sinodal, uma mudança urgente.

Que a Igreja seja “sinodal” é de sua essência mesma como Comunidade de seguidores(as) de Jesus. A conversão sinodal é retomar o início fundamental da mesma Igreja. São séculos de história onde houve um caminhar de outra forma. Sua conversão, portanto, é urgente e inadiável.

“Sinodal” significa “caminhar com”. Em grego, “sin” é “com” e “odos” é “caminho”. A Igreja é Sinodal porque a totalidade de seus membros, todos e todas “caminham uns com os outros”, muito unidos. Todos e todas são iguais em seu valor, sua dignidade, são ativos e participativos... Isso implica ter uma capacidade de escuta mútua, ativar o espírito de discernimento, tomar decisões buscando o bem de todos.

O cristão deve estar imbuído de mentalidade profundamente eclesial, de maneira que o seu sentir, pensar, falar e agir entre em sintonia com o sentir, pensar, falar e agir da grande comunidade cristã.


Textos bíblico: Evangelho segundo Mateus 16,13-19

Na oração:

A pergunta de Jesus dirigida aos discípulos pode se expandir nestas outras perguntas:

- Seguimos Jesus com paixão ou Ele se converteu para nós em um personagem gasto, ao qual continuamos invocando enquanto em nosso coração vai crescendo a indiferença e o esquecimento do modo de ser e viver do mesmo Jesus?

- Aqueles que se aproximam de nossas comunidades cristãs podem sentir a força e o atrativo que Jesus tem para nós? Sentimo-nos discípulos e discípulas de Jesus? Estamos aprendendo a viver Seu estilo de vida em meio à sociedade atual, ou nos deixamos arrastar pelo impulso consumista e egocêntrico? Dá no mesmo viver de qualquer maneira, ou fazemos de nossa comunidade uma escola para aprender a viver como Jesus?

- Temos aprendido a encontrar Jesus no silêncio do coração, ou sentimos que nossa fé vai se apagando, afogada pelo ruído e pelo vazio que há dentro de nós?

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Somos seres de “travessias”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 12º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Passemos para a outra margem” (Mc 4,35)

No relato evangélico deste domingo, Marcos prepara a cena desde o início; diz-nos que era “ao cair da tarde”. Logo descerão as trevas da noite sobre o lago de Genesaré. É Jesus quem toma a iniciativa daquela estranha travessia: “passemos para a outra margem”. A expressão tem forte sentido: Ele convida os discípulos a passarem juntos, na mesma barca, para outro mundo, para além do conhecido: a região da Decápole.

Na vida de Jesus de Nazaré, segundo o evangelho de Marcos, a “outra margem” é, sobretudo, território pagão e desconhecido. Está próxima, pode-se ver suas colinas a partir do lado de cá do lago. Mas, as pessoas do outro lado estão distantes: distintas pela cultura e religião, pelas tradições e maneiras de viver.

Para a comunidade pós-pascal, como para Jesus, “passar para a outra margem” implica todo um deslocamento para sair da “margem” rotineira e conhecida, ir ao encontro dos outros e descobrir ali os caminhos do Evangelho. Pois, Jesus não se desloca à outra margem com a rota já estabelecida e com as respostas preparadas. Ele é o “homem da margem”, pois aprende com o diferente e se deixa transformar em sua visão de Deus e sobre o Reino, como no encontro com a mulher cananeia.

No fundo, “passar para a outra margem” é, para Jesus um prolongamento do dinamismo da própria Encarnação, quando cruzou a fronteira, a mais radical, aquela que separa as margens aparentemente mais distintas: a do divino e do humano. A Encarnação é expressão de um Deus que sai de si e atravessa fronteiras, não por necessidade, mas por amor, porque lhe move um desejo irrefreável de relacionar-se, de ser-conosco, de “fazer morada” no interior do ser humano.

Assim, a Encarnação revela-se como uma ousada “travessia” do Deus que se humaniza; identificados com o “Deus em contínua travessia”, também nós, na essência somos “seres de travessias”.

Por isso, o apelo “passemos para a outra margem!” indica duas coisas importantes. A primeira é que a expressão “passemos” está manifestando uma vontade de colocar-nos em movimento. Ou melhor, de começar a mover-nos. A segunda indica a direção da marcha: para onde é preciso ir? “À outra margem”.

Isso significa que há duas margens, e que nós estamos numa, onde até agora nos encontrávamos tranquilos e seguros. É nosso “ninho”. Agora, no entanto, descobrimos uma inquietação interior que nos impulsiona a “sair”, a nos deslocar para o outro lado; não estamos a gosto aqui, do lado de cá. Esta inquietação nos diz, de alguma maneira, que no nosso desejo já atingimos a “outra margem”, embora não a tenhamos pisado ainda. Começamos a pressentir que ali há algo mais importante e desafiante, e que não temos do lado de cá; é necessário mobilizar-nos... e “sair”.

Para fazer a travessia é preciso “remar mar adentro”. Porque adentrar-nos não é ter chegado. É algo inacabado e em processo. Fala do sentido do êxodo, de viver em trânsito e em um permanente movimento de busca que leva conosco certa incerteza: deixamos de ver o lugar do qual procedemos e ainda não vemos o lugar ao qual vamos chegar.

“Passar para a outra margem” tem muito de “adentrar-nos”, ou de submergir-nos, de empapar-nos, de molhar-nos, de deixar-nos levar mais para dentro do mar da vida das pessoas, para descobrir aí o novo, o diferente, os “traços” originais d’Aquele que já fez a travessia e nos espera do outro lado.

Ao mesmo tempo, somos desafiados também a nos adentrar no mar dos desafios de nosso mundo, com seus dramas e carências, para ajudar a sanar suas feridas e estabelecer uma rede de solidariedade.

Somos convidados também a montar tendas leves nas encruzilhadas dos caminhos inexplorados e a descobrir a geografia dos “aforas” como uma fonte de revelação.

Assim, passar para a outra margem é acolher o que nos é oferecido com gratuidade.

A imagem da “travessia” do lago de Genesaré é também reveladora de nossa “travessia” no mar interior. Como toda travessia, a da nossa interioridade também não é pacífica; os desafios e as dificuldades estão expressos nas imagens de vento forte, ondas impetuosas, barco instável.

Nosso eu profundo - “a barca” -, mesmo atrevendo-se a sair de seu mundo habitual, experimenta um movimento forte das ondas ameaçadoras no qual teme afundar-se sem saída.

Mas, não podemos evitar de pensar e dar espaço dentro de nós ao fato tão simples e tantas vezes esquecido de que há “outra margem”, outra perspectiva, outro olhar...

Entendemos que se trata de uma experiência original, que mobiliza nossos melhores recursos e que ativa nossa criatividade. Nosso amadurecimento no seguimento de Jesus se dá através da “travessia” da margem do nosso “ego” (autocentrado, fechado aos outros...), à outra margem que é a de nossa identidade profunda. Por isso, a primeira margem é “fechada”, pois tem os mesmos limites que o ego, enquanto a segunda é ilimitada. Na margem antiga controlamos tudo a partir da primazia do ego; na nova margem, entramos no fluxo da Vida mesma e que se expressa em tudo e que esvazia o ego de seu protagonismo anterior.

Nossa margem interior é mais libertadora, não tem tantos pré-juízos, nem tantas feridas e complexos.

Que bonita é a outra margem quando nos aderimos à pessoa de Jesus que, serenamente descansa em nosso barco da vida! Ele, com sua presença, estabelece a calma só com sua palavra. Imediatamente, frente tal qualidade de presença, o mar se torna pacificado, e o medo angustiante se converte em confiança admirada e agradecida.

Cruzar nosso lago existencial com Ele é uma experiência chave para partilhar o que somos e o que temos. Como “seres de travessias”, vamos criando um estilo de vida que vai dando sentido à nossa vida cristã envelhecida, normótica e sem inspiração.

Para sairmos de nossa comodidade temos de nos deixar comover pelo sofrimento das pessoas e pelos clamores que vem da “outra margem”. E isso não é fácil numa sociedade que nos anestesia, nos atordoa e embota nossa sensibilidade.

Não se trata só de ir à outra margem, mas de “deixar-nos conduzir”, ou seja, não podemos nos deslocar a partir de nossos próprios planos, a partir de nossas próprias forças.

Como seguidores(as) d’Aquele que se “fez travessia”, somos chamados(as) a nos re-inventar, a aventurar-nos por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...

Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.

Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. É preciso ousar para não perecer; é preciso aventurar-se e arriscar o primeiro passo; é preciso peregrinar infatigavelmente para dar origem a uma nova humanidade; é preciso ser nômade seduzido por novos horizontes.

“Tudo que valeu a pena, inicialmente me aterrorizou” (Betty Bender)

Pergunte a um velejador quais os seus melhores momentos no mar e ele lhe contará sobre um perigo que o colocou diante de seus limites.

O medo e o prazer caminham juntos. Eles se fundem no desafio. O mar da vida é o lugar do novo, do risco, da coragem e da ousadia. A vida consiste na constante aventura de ousar.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 4,35-41

Na oração:

Para viver em atitude de “travessia” é preciso estar em eterna vigilância; e, ao mesmo tempo, abrir-se a um constante assombro e gratidão, porque cada manhã é um milagre.

Só vive a travessia quem está desperto, entre o realismo e a esperança.

-Que está acontecendo com os cristãos de hoje que, diante de tantos desafios, sentem medo de fazer a travessia e se escondem atrás de ritualismos vazios, devoções estéreis, práticas religiosas egóicas que não desembocam no compromisso com aqueles que “estão do outro lado, à margem”?

- Por que buscamos segurança no conhecido e no estabelecido no passado, e não escutamos o chamado de Jesus a “passar para a outra margem” para prolongarmos seu modo de ser e viver, aberto ao novo e diferente?

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Deixa crescer a semente que há em ti

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 11º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

 

“... e a semente vai germinando e crescendo, mas o agricultor não sabe como isso acontece”

 

A Natureza nos mostra muitos caminhos, simples e belos, que nos ajudam a sermos mais humanos, se tivermos um olhar atento e contemplativo, como o olhar sensível de Jesus. Suas parábolas deixam transparecer que Ele foi um homem com os “pés afundados na terra”, vivendo uma relação sadia e agradecida com todas as criaturas. Em tudo sentia a presença providente e cuidadosa do Pai.

A Terra tem seu ritmo, sua sinfonia, onde todos os elementos que a compõem, convivem numa perfeita harmonia e integração.

A relação com a terra desperta nossa sensibilidade, nos ajuda a ser melhores, mais sensíveis, mais pacientes, mais amáveis, mais observadores. A relação com a terra fortifica nossas raízes para que nossa relação com as pessoas e as criaturas seja melhor, nosso respeito ao meio ambiente seja mais profundo e espiritual.

Segundo a tradição oriental, quanto mais baixo estiver o corpo, mais feliz fica a mente.

O ocidente deseja que as pessoas pensem no céu, e alonguem a cabeça no ar para fazê-las olhar para cima e ver as nuvens. O oriente sabe que a melhor maneira de chegar ao céu é estar solidamente na terra, e por isso convida as pessoas a se agacharem ou se assentarem no chão. A postura cômoda, literalmente na terra, é condição para a paz interior. As pessoas são devolvidas às fontes terrenas.

Ao encontrar-se com a mãe-terra a pessoa é impulsionada para as experiências transcendentais.

Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a experiência espiritual.

Na Índia, quando as pessoas se levantam, sua primeira oração é juntar as mãos e pedir perdão à Mãe Terra por pisá-la. Que não haja ofensa no contato necessário com o chão, mas intimidade.

Em casa, as pessoas sempre andam descalças. O pé nu acaricia a terra que pisa, agradecendo o apoio e mostrando sua confiança. Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante. Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, palpar sua firmeza, medir sua intensidade. Cada chão tem uma palavra a lhe dizer, um valor a preservar, uma mensagem a acolher. É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.

Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.

Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.

É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe.

Os Evangelhos destacam, de muitas maneiras, a boa relação que Ele teve com a Terra.

Jesus soube viver as noites e empregá-las, para além de sua solidão e aspereza, para encontrar sentido e para dar profundidade às suas atuações mais decisivas.

Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que empregará como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade...

Experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada...

Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas buscam o mesmo horizonte.

Nas duas parábolas deste domingo, o crescimento da planta não é consequência de uma ação externa, mas a expansão dos elementos que já estavam presentes nela. Este aspecto é muito importante, por duas razões: a) Porque nos adverte que o importante não vem de fora, mas de dentro; b) Porque nos motiva a pensar não em algo estático, mas num processo que não tem fim, porque sua meta é o mesmo Deus.

Assim, as duas parábolas possibilitam fazer uma dupla leitura. Em primeiro lugar, pode ser aplicada a cada pessoa, enquanto está no mundo para expandir suas potencialidades até a plenitude, que deve ser alcançada através de sua vida. E, também, pode ser aplicada às comunidades e à humanidade em seu conjunto.

A partir do que cada um é no núcleo de seu ser, deve ativar todas as possibilidades sem pretender saber de antemão onde o levará a experiência de viver. Na vida espiritual é ruinoso prefixar metas às quais temos de chegar. É preciso, portanto, expandir a vida que, como tal, é imprevisível, porque toda vida é, antes de tudo, resposta às condições do seu entorno. Não podemos pretender nenhuma meta, mas abrir-nos às surpresas da vida e caminhar sempre para frente.

Em cada uma das parábolas, Jesus quer destacar um aspecto dessa realidade potencial dentro da semente. Na primeira, sua vitalidade, ou seja, a potencialidade deve desenvolver-se por si mesma. Na segunda, Ele quer destacar a desproporção entre a pequenez da semente e a planta que dela surge. Parece impossível que de uma semente quase imperceptível possa surgir, em pouco tempo, uma planta de grande porte.

A semente se desenvolve por si só, mas precisa humidade, luz, temperatura e nutrientes para poder expandir sua vitalidade latente. A semente com sua força está em cada um de nós. É a “semente divina” que está semeada em cada um de nós. Ela precisa desenvolver-se e fazer-se visível externamente. Só espera uma oportunidade. Devemos nos favorecer de condições mínimas indispensáveis para que nossa semente interior possa expandir sua própria energia. Caso não se desenvolva, a culpa não será da semente, mas nossa.

O tempo e o ritmo de crescimento não são os mesmos para todos. A ansiedade e a pressa podem frustrar-nos de produzir fruto sem ter passado pelas etapas de crescimento como talo, logo a espiga e por fim o fruto. No fundo da ansiedade há um desejo de sermos deuses ilimitados, de fazermos tudo imediatamente, de experimentarmos tudo sem perdermos nada, de termos tudo sob controle, sem que nada escape ao que foi planejado.

Também a vida espiritual tem seu ritmo e é preciso seguir os passos em sua ordem. A maioria das vezes nos desanimamos porque não vemos os frutos de nosso esforço. Devemos ter paciência. Cada passo que damos é uma conquista e nele já podemos apreciar o fruto, embora nos pareça que não chega nunca.

As duas pequenas parábolas deste domingo não dão nenhuma ênfase no fazer ou deixar de fazer. Ninguém tem o direito a dizer a outro o que tem de fazer ou deixar de fazer. O importante está em descobrir o que somos e atuar ou deixar de atuar segundo as exigências de nosso verdadeiro ser.

Diziam os antigos que o agir segue o ser. Devemos esquecer das muitas cobranças e normas que cumprimos mecanicamente e abrir espaço para que aquilo que nos faz mais humanos surja do mais profundo de nosso ser e não de programações que venham de fora.

Texto bíblicoEvangelho segundo Marcos 4,26-34

Na oração: A Palavra de Deus nos convida a pousar-nos

amorosamente em cada coisa, em cada pessoa, em cada atividade. Se agíssemos assim, bastariam a brisa, a luz, uma flor, um sorriso, uma atividade qualquer... para sermos felizes. Deus espera que procuremos crescer com empenho, mas também com um coração sereno e sem angústias, com paciência e calma, sob seu olhar de amor. Ele sabe esperar as mudanças profundas que vão se verificando pouco a pouco.

Curriculum vitae” significa o “percurso da vida”, e não “a vida em correria”.

- Em seu interior, quais potencialidades e recursos estão à espera de uma oportunidade para se expandir?

- Você vive a partir das “raízes” do seu ser ou é manipulado(a) pelas cobranças externas? Recebe a seiva divina, em abundância no seu eu profundo, ou se alimenta dos venenos que provém do exterior: mentiras, ódio, intolerâncias, racismos, preconceitos...

- Os “frutos” que brotam do seu terreno interior são saudáveis, inspiradores, tornando-o(a) mais humano(a)?

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Sob a ação do Espírito, viver em torno a Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 10º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

 “E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘aqui estão minha mãe e meus irmãos”


O evangelho de Marcos tem como preocupação fundamental responder à pergunta: “Quem é Jesus”. Porém, o evangelista não elabora teorias cristológicas, mas visa despertar nos leitores uma adesão e identificação com o Mestre da Galileia.

No evangelho deste domingo, Marcos revela a identidade de Jesus através de diferentes temas: a multidão que se reúne junto à casa onde Ele se encontrava, a reação de seus parentes que querem sequestrá-lo, os mestres da lei que o acusam de estar possuído por Belzebu, o pecado contra o Espírito Santo, a chegada de sua mãe e irmãos, a nova família que se reúne em torno a Ele... Embora pareça não haver uma relação e uma lógica interna no texto, estes temas tem um ponto em comum: a presença inspiradora e provocativa de Jesus. Não é mais possível permanecer neutro diante do seu modo de ser e viver, de sua liberdade, de sua transparência, de sua abertura à diversidade, de sua profunda sintonia com o Pai.

Por isso, de um lado, a reação da multidão, seduzida pelo novo ensinamento de Jesus; de outro, a reação de seus familiares e escribas que não o compreendem: querem sequestrá-lo ou o acusam de fazer pacto com “belzebu”.

Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem todos deveriam escutar. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.

A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco quando viram as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de “belzebu”, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia n’Ele e atribuíam ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!

As acusações contundentes levantadas contra Jesus deixavam transparecer um fechamento radical à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, torna-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Ele, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.

Se Jesus nos alerta severamente sobre a “blasfêmia contra o Espírito Santo” é porque este pecado consiste precisamente na atitude petrificada diante da ação de Deus em nós, permanecendo desamparados, sem ninguém que nos defenda do erro e do mal. Os blasfemos se excluem a si mesmos do perdão, se separam do Espírito de Deus. Trata-se de uma clara opção fundamental pelo mal, impedindo o Espírito Santo de agir. O pecado contra o Espírito Santo não é simplesmente um ato, mas uma atitude contínua de resistência, uma cegueira radical, uma petrificação interior que bloqueia toda possibilidade do perdão de Deus.

O Espírito é a força que sustenta a nova comunidade que Jesus instituiu com seu projeto messiânico; por isso, pecam contra o Espírito aqueles que negam e rejeitam sua ação libertadora em favor dos excluídos e dos pobres. Dura foi a acusação contra Jesus; duríssima foi sua resposta. Negando-se a acolher a obra de Deus, os mestres da lei se destroem a si mesmos. Ao afirmar que Jesus “tem um espírito impuro”, eles não o rejeitam simplesmente, mas rejeitam e negam a obra salvadora de Deus em favor daqueles que são vítimas de uma sociedade injusta.

O Espírito é uma força que atua em nós e que não é nossa. É o próprio Deus inspirando e transformando nossa vida. Ninguém pode dizer que não está habitado por esse Espírito. O importante é não o apagar, avivar seu fogo, fazer com que arda purificando e renovando nossa vida.

Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal e chega ao seu amadurecimento; elas assistem e sustentam o ser humano no caminho da maturidade para a plenitude do seu ser.

O mesmo Espírito, que atuava livremente em Jesus, sustenta os vínculos entre seus seguidores, constituindo a sua “nova família”.

O Reino de Deus, anunciado por Jesus, estabelece laços profundos entre aqueles que assumem seu projeto de vida. Estes laços fazem dos discípulos do Reino uma grande família, não unida pelos vínculos do sangue

e, sim, pela sintonia com a vontade do Pai. A comunidade dos seguidores de Jesus, então, pode ser definida como a família do Reino, cuja característica são os laços fraternos que unem seus membros.

Assim, a ligação entre Jesus e os seus(suas) seguidores(as) é muito mais profunda do que a sua convivência física com eles. Havia algo de superior que os une, sem estar na dependência de elementos conjunturais, quais sejam, a pertença a uma determinada família, raça ou cultura.

Para Jesus, estes são seus irmãos, suas irmãs, suas mães. São irrelevantes outros títulos de relação com Ele, quando falta este pré-requisito. O critério estabelecido por Jesus possibilita a todo discípulo do Reino, em qualquer tempo e lugar, saber-se unido a Ele como a um ser querido muito próximo. Por conseguinte, é sempre possível estabelecer laços com ele pela via da afetividade.

Ser “irmão” ou “irmã” de Jesus tem sua razão de ser; mas, ser sua “mãe” parece inexplicável. No entanto, podemos buscar uma luz no mais simples e cotidiano da vida, ou seja, o que acontece na gravidez: desde o começo e de maneira progressiva, todo o interior da mãe, as paredes do seu útero, vão se ampliando para deixar um espaço cada vez maior ao bebê que está crescendo dentro dela e que precisa mover-se e desenvolver-se.

Partindo desta imagem, podemos dizer que, para nos tornar “mãe de Jesus”, precisamos liberar espaços em nossa vida, “empurrando para trás” aquilo que não nos deixa expandir e crescer. Concretamente, trata-se da vivência cotidiana do amor, no sentido de abrir lugar para os outros, de deixá-los passar primeiro, de ampliar nossa própria interioridade para que eles possam ser como são e mover-se facilmente. Descobrimos que é preciso esvaziar-nos de falsas seguranças, desapegar-nos, remover costumes, relativizar coisas...

Certamente haverá algum sinal de vida querendo crescer e abrir caminho em nosso ser profundo.

Assim, o evangelista Marcos distingue dois tipos diferentes de “irmãs”, “irmãos” e “mães” de Jesus: aqueles que estão “fora” e aqueles que estão “dentro”, no círculo. O grupo que está em torno a Jesus goza de uma grande intimidade, de uma proximidade espacial e de sintonia com o coração d’Ele. Jesus, o Mestre, ocupa o centro e a multidão, numa atitude de escuta, situa-se em torno a Ele.

O relato do evangelho deste domingo finaliza priorizando a irmandade e situando o homem e a mulher em plano de igualdade. A imagem do círculo simboliza: vínculo com Jesus (identificação) e vínculo com os outros (diferentes serviços). A circularidade facilita estabelecer a igualdade; aqui não há hierarquia, nem imposição de uns sobre os outros. A igualdade é o lugar privilegiado, o único lugar. Todos vivem serviços diferentes, inspirados pelo modo de ser e viver do mesmo Jesus.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 3,20-35

Na oração:

Muitas vezes, nossas vidas giram em torno àquilo que dá a sensação de segurança: riqueza, vaidade, poder, prestígio... Outras vezes, giram em torno a ídolos ou mitos com “pés de barro”.

- Em torno de quê ou de quem gira sua vida?