Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma (2024).
“O
Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
O 1º. domingo da Quaresma nos conduz ao deserto; ali, na profunda solidão e silêncio,
Jesus teve uma experiência fundante, que marcou profundamente sua vida,
rompendo com a vida cotidiana anterior, em Nazaré. Enfrentou o que todos nós
enfrentamos continuamente: todos nascemos e somos movidos por uma forte tendência
a buscar poder, prestígio, riqueza; esta semente vai crescendo e se expandindo
por todos os meios possíveis. Prestemos atenção naqueles que fazem da busca do
poder, da riqueza e da vaidade, o centro de suas vidas, para ver os efeitos
devastadores deste veneno, presente dentro de nós e no nosso contexto social. São
as chamadas “tendências egóicas” que rompem toda possibilidade de
viver a fraternidade e a acolhida do diferente.
Quando nos deixamos determinar pelo
poder, para ter parte no “banquete de morte” dos poderosos, podemos
chegar a nos ajoelhar diante deles e “adorá-los”.
Diante desta perene tentação, Jesus,
no deserto, vem nos diz: o amor e o serviço são duas atitudes que ativam e
elevam a vida.
Quando queremos tirar os obstáculos
de nosso caminho para tornar nossa vida mais fácil, procuramos transformar “as
pedras em pães” com o que temos à mão: ameaças, extorsão, mentiras, ódios...
Jesus vem nos diz: “que a Palavra
sustente tua vida!”
Quando nos sentimos tentados a
manipular Deus a nosso favor, queremos negociar e “comprá-lo” com nossos ritos
e observâncias, acreditando que Ele está em dívida conosco.
Jesus vem nos convidar a viver como
filhos e filhas, sem tentar a Deus.
Para facilitar
o esvaziamento dos “impulsos egóicos” e re-ordenar a vida, a liturgia nos
convida a buscar inspiração junto a Jesus, durante sua estadia no deserto.
Ali, Jesus “vivia entre as
feras e os anjos o serviam”; o texto grego e latino diz “animais selvagens”.
Podemos entender a maneira como Jesus se situou na vida, em meio às “forças”
que condicionam o ser humano, umas boas (Espírito, anjos), outras más
(“demônios”, “feras”).
O relato do
evangelista Marcos também faz alusão aos tempos idílicos do Paraíso, onde a
harmonia entre seres humanos e a natureza inteira era total. Recordemos que o
tempo messiânico fora anunciado como uma etapa de convivência harmoniosa entre
seres humanos, os animais, a natureza...
Além disso, as tentações acompanharam
Jesus durante toda sua vida, como apontam claramente os Evangelhos. Isto quer
dizer, obviamente, que o discernimento que Jesus teve de fazer sobre sua
própria vida e sobre sua missão, não foi experiência de um dia ou de um
momento.
O Jesus
dos evangelhos é Aquele que busca, que reza, que discerne, que se vê na encruzilhada
de optar entre várias possibilidades, que se retira ao deserto para descobrir
qual é a Vontade do Pai, que elabora progressivamente seu projeto global e
passa depois às opções concretas.
Tudo isso iluminado e orientado a
partir de uma opção fundamental: a opção pela solidariedade com todos
aqueles que em suas vidas só experimentaram a exclusão. E isto, mantendo-se
fiel até o final, mesmo às custas de encontrar-se em situações de conflitos e
perseguições, até culminar em sua morte na Cruz.
Jesus não
sai fragilizado de seu deserto. Sai tão fortalecido que seu compromisso
posterior, fruto de sua relação direta com o Abba, que transforma a história em
um antes e um depois.
Portanto,
quando nos perguntamos por que foi Jesus tão liberal naquilo que se refere às
leis, normas e tradições religiosas, e porque foi tão radical a respeito da
justiça, do amor e da proximidade junto aos pobres, doentes e excluídos, a
resposta é clara. O segredo de tudo está na opção fundamental que
Ele assumiu no batismo e a manteve durante suas tentações, ou
seja, a opção pela solidariedade como meio e caminho para
realizar sua missão.
O relato evangélico deste domingo
termina nos dizendo que, após o batismo e o retiro no deserto, Jesus caminhava
pela Galileia “proclamando a Boa Notícia de Deus” (Mc 1,14). Para Jesus, Deus é uma
presença amistosa e próxima que faz viver e amar a vida intensamente. Jesus
vive Deus como o melhor amigo do ser humano: um Deus “Amigo da vida”. O que
contagia a todos é sua experiência de Deus como um “Mistério de bondade” que
nos liberta de tanto peso e de tantas culpas, alimentadas por um legalismo e
moralismo estéreis que acabam obscurecendo Seu rosto compassivo.
Quanta alegria se despertaria em
muitos se pudessem ver em Jesus os traços do Deus da vida! Como se acenderia
sua fé se pudesse captar com olhos novos o rosto de Deus encarnado em Jesus!
Muitos homens e mulheres de fé
frágil, vacilante e quase apagada necessitam hoje escutar a notícia de um Deus
bom e amigo: o Deus de Jesus Cristo, que só quer uma vida mais digna e feliz
para todos.
Tudo aquilo que impede acolher a
Deus como graça, libertação, perdão, alegria e força para crescer como seres
humanos não leva dentro a “Boa Notícia de Deus” proclamada por Jesus.
Crer no
Deus “amigo da vida” nos compromete a viver a “amizade social” como
atitude oblativa.
Neste tempo
quaresmal, a Campanha da Fraternidade nos motiva a
viver a amizade social como um
estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus. Viver como
Jesus significa encontrar-se com “o mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não
ficar indiferente”. A fraternidade,
que nasce da compaixão, nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
A amizade social se enriquece
quando se deixa pautar pelo diálogo fecundo, pela cultura do encontro, pela
paciência e tolerância com o diferente, pela renúncia a instrumentalizar e
descartar o outro simplesmente porque “vive, pensa, crê, sente e ama de
maneira diferente”.
O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se
distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra,
aí se encarna e aí revela os traços
da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça
ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz
encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o
lugar da receptividade,
da oferenda e do encontro
inspirador.
Isso pede de
todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que
implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por
ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência a
fraternidade como valor ético e como hábito permanente de vida.
Corremos o risco de viver em
mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de
hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de
situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional.
Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente
corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais
impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas
pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo,
complexo e cheio de surpresas.
É urgente que nos deixemos “empurrar ao deserto” pelo mesmo Espírito de Jesus, para sermos mais fraternos e humanos. Vivamos com “sabor” a travessia quaresmal!
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 1,12-15
Na
oração:
O Espírito de Jesus continua nos conduzindo ao
deserto para desintoxicar-nos de todo resquício de poder, vaidade, indiferença,
ódio, preconceito...; de tempos em tempos, precisamos nos deslocar para o
deserto, para o lugar de discernimento das diferentes vozes que nos movem por
dentro: vozes de morte (egóicas) e vozes de Vida.
É na escuta atenta do Espírito que seremos
capazes de tomar decisões oblativas, des-centradas, com sabor de Reino, e a dar
passos em direção ao amor incondicional.
- O que prevalece e determina sua vida: as más
tendências ou os sentimentos mais elevados, as vozes de morte ou as forças de
vida?
- Que experiências de deserto sustentam sua
vida?
Depois da minha primeira experiência com o retiro quaresmal, em 2022, só aumenta minha necessidade, de cada vez mais me aproximar dos ensinamentos tão profundos que os padres jesuítas nos proprcionam....
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