Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo da Quaresma (2024).
“Jesus
tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre
uma alta montanha” (Mc 9,2)
Os bons montanhistas
sabem que, para chegar ao cume, é necessário muito esforço e sacrifício. Subir
vai contra à nossa natureza humana; a gravidade nos arrasta para a comodidade
de uma poltrona.
A subida requer
programar o caminho, buscar uma rota acessível, usar calçado e uma roupa
adequada, exige uma preparação física, levar só o essencial; é imprescindível
ter bons companheiros de aventura para reativar o ânimo, ajudar-se mutuamente
diante dos perigos dos precipícios, dos escorregões, do mau tempo.
Mas, quando chegam
no alto, não sentem mais as bolhas, os cansaços e os arranhões; o ar é como um
frio punhal que enche seus pulmões, a luz é sua vestimenta, as nuvens são sua
almofada, o céu é tão azul como nunca sonharam, e todos os problemas do seu
pequeno mundo que ficaram para trás se tornam insignificantes como formigas.
Nas alturas sentem-se mais eles mesmos, como se sua alma pudesse voar.
E assim
também aconteceu com Jesus e seus amigos Pedro, Tiago e João: Ele subiu o monte
Tabor, para que, a partir do mais alto pudesse revelar sua verdadeira
identidade, cheia de Luz e de Paz. O carpinteiro se revela como Panto-crator,
custodiado por Moisés e Elias.
A
compreensão do relato de Marcos nos revela que a realidade “transfigurada” de
Jesus é uma realidade compartilhada: todos somos seres transfigurados.
Transfiguração: tempo de
interioridade, desejo de contemplar-nos a partir de nosso “eu profundo”,
“lugar” dos nossos recursos mais nobres, dos dinamismos de vida, da
criatividade, da intuição e dos sonhos, das forças que nos impulsionam a viver
em contínuas buscas...
Todo ser humano
possui dentro de si uma profundidade
que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar
santo, intocável, onde reside o que é mais nobre em
cada pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de
des-velar.
É aqui, onde a
pessoa encontra a sua identidade pessoal;
trata-se do coração, da dimensão
mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas
pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se
encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações
e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Uma das
características do mundo pós-moderno é a transformação, a evolução, a mudança.
O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos revela que é possível “transfigurar-nos”
se formos capazes de descobrir a Presença transformadora de Jesus em nós no
caminho que nos cabe viver, na subida ao monte (Sinai, Hermón ou Tabor),
símbolo do divino. É a subida da consciência, do conhecimento interior, dos
sentimentos elevados, dos desejos mais nobres... que brotam do mais profundo de
nós mesmos.
Diz o
texto de Marcos que Pedro, Tiago e João acompanharam Jesus. Que foi que viram?
Algo tão natural como cair na conta, em um momento concreto da existência, de
uma faísca, uma sensação que vai mais além dos sinais superficiais: a percepção
da presença do divino em si mesmos e a fonte da qual experimentaram um antes e
um depois. Poderíamos chamar isso de experiência fundante, prazerosa,
plenificante, quase nunca espetacular, mas que deixa uma profunda ressonância
interior. Nessa situação, pode surgir uma expressão tão humana como a de Pedro:
“é bom ficarmos aqui”.
Aqui, a
pessoa experimenta algo essencial em sua vida: sente-se como filho(a) amado(a).
Já paramos para pensar o que realmente significa ser “filho/a amado/a”?
Deus
conhece nossas necessidades, nossos desejos, nos oferece a oportunidade de
re-nascer, de transfigurar-nos. Em todo momento nos comunica sua Vida, a única.
Somos portadores do divino. No mais íntimo de nosso ser ouvimos sua voz: “Escutai
o que Ele diz!”. Uma voz que mobiliza o há de melhor em nós. É preciso distingui-la
daquelas vozes que nos atordoam, confundem ou violentam, das palavras falsas,
vazias, carregadas de promessas e mentiras que, lamentavelmente, são pronunciadas
sem pudor.
Somos
vida transfigurada na qual todos estamos implicados.
Diante de um
contexto mundial tão obscuro faz-se urgente despertar em nós os atributos mais
humanos e divinos para sermos pessoas de luz, pessoas que, através dos estilos
de vida sintonizados com a natureza, brilham com luz própria. Somos, na
essência, “seres translúcidos”, que deixam passar a Luz divina
presente em nós. A Luz existe desde o princípio e a nós cabe sermos testemunhas
dessa Luz e, portanto, seres que deveríamos transluzir essa Luz eterna em nosso
agir cotidiano.
Seres translúcidos
existiram e existem sempre; mesmo no escondimento, são tantos e tantas que
deixaram e deixam passar a Luz em suas vidas e que deixam marcas impagáveis em
nós.
De fato,
“ser translúcido” é nossa essência pois fomos criados por Amor, que é Luz,
embora tantas vezes podemos ficar opacos quando impera em nosso interior o
egocentrismo, o ódio, a intolerância, o medo, que nos atormenta e nos bloqueia.
Seguramente
que não podemos ser translúcidos sempre e em todo momento; assim como o sol, um
astro que brilha sempre, mas só chega a nós algumas horas do dia.
Mas,
podemos ser translúcidos a maior parte do tempo, levar a Luz que brilha desde
toda a eternidade e fazê-la brilhar na obscuridade que nos rodeia. Sejamos translúcidos, mostremos a Luz!
A Transfiguração
não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas é um
abrir-se à realidade cotidiana e cair na conta de que a vida e a história estão
cheias de sentido, de vida.
A realidade é uma
linguagem que nos fala de algo mais que a mera materialidade.
Há
pessoas que, no ambiente em que se encontram, transfiguram a vida e os
problemas, criando um clima de paz e serenidade na vida familiar, comunitária,
eclesial, laboral, etc...
Há
pessoas que transfiguram a guerra em paz, o pecado em graça, o ódio em respeito
e amor, a enfermidade em fonte de reflexão e aceitação da própria finitude, o
desespero em esperança...
Isso acontece
também no campo da arte, da estética: no fundo, é uma transfiguração do ferro,
da madeira, da pedra, da linguagem, dos sons e nos transportam a um “mais
além”.
Um
entardecer, um encontro, uma oração, podem transfigurar nosso ser, nossa
existência para a verdade, a bondade ou a beleza.
Quando
participamos de uma celebração de exéquias, evocando a morte dos seres
queridos, somos transportados, transfigurados e isso nos leva a outras
realidades de esperança, casa do Pai etc.
O mundo
de hoje pede pessoas capazes de transformar, de transfigurar, de proclamar uma
Palavra de verdade, de bondade, de estética, de ideais, valores, caminhos...
Viver é transfigurar a existência, transcendê-la. A experiência, o encontro com Cristo transformam, transfiguram nossa vida e a enchem de paz, de luz, de sentido.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 9,2-10
Na oração:
Transfigura tua existência, eis a questão!
Desapega-te de teus problemas, suba,
mesmo que te custe. Busque companheiros que te ajudem a situar-te a partir de
uma perspectiva de pássaro, onde o ar seja mais puro e a Luz mais clara.
Encontra teu Tabor, onde possas sentir a presença do Amor mais puro, onde
possas descansar, onde possas descobrir tua verdadeira identidade e o que é
essencial para tua vida. Desapega-te do celular, esquece tua agenda, silencia
tantos toques. Abandona tua pesada bagagem de preocupações e coisas que não
precisas. É teu Tabor.
De tempos em tempos é preciso subir teu
Tabor, mesmo que custe desprender-te do passado e do pesado.
- Você é uma pessoa que transfigura um
nascimento na família, um sofrimento, que transforma o trabalho, a convivência?
Está aberto(a) à transfiguração da grande noite da vida?