quarta-feira, 26 de julho de 2023
No “chão da vida” está escondido nosso verdadeiro tesouro
quinta-feira, 20 de julho de 2023
A Paciência que nos Faz Criativos
Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 16º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).
“Deixai crescer um e outro até a colheita!” (Mt 13,29)
A impressão que temos é que a paciência deixou de ser a virtude
de nosso tempo; parece estar ameaçada de extinção. Aumenta a ansiedade que não
espera, a angústia de não ter ainda o que se busca e a inquietude que parece
não ter fim. Vivemos o tempo do imediatismo, da instantaneidade e da urgência.
A pressa é a marca do nosso ritmo de vida e, por isso, nossas
ações, decisões e a construção de nós mesmos são tão efêmeras e sem raízes. O
impaciente se afoga em sua instabilidade, atropela tudo e rompe a harmonia, a
beleza e a relação com os outros.
No entanto, a paciência é a atitude que faz vir à tona um conjunto
de qualidades que nos fazem crescer como pessoas: saber esperar o ritmo das
coisas e pessoas, tolerar o novo e diferente, aprender a conviver com aquilo
que nos é próprio e respeitar o dos demais, firmeza na adversidade, levar
adiante nossas próprias convicções, deixar-nos tocar pela crítica construtiva,
olhar a realidade com uma visão mais ampla, crer naquilo que podemos chegar a
ser, guardar no coração aquilo que ainda não está resolvido, não atropelar as
pretensões dos outros, entrar em harmonia com a natureza, sonhar com uma
realidade nova, trabalhar e confiar, respeitar o tempo de maturação das
pessoas...
A paciência
não é um controle absoluto de tudo, senão impedir que a urgência das coisas nos
arraste para o turbilhão de pressas que nos impede respirar, pensar, decidir e
agir com criatividade.
Em
hebraico, a expressão “ser paciente”, significa “ter grandes narinas”. Isso quer dizer: respirar profundamente. De fato,
ser paciente é ter uma respiração larga,
uma respiração profunda.
Observemos
a maneira como respiramos, quando estamos impacientes; a respiração se torna
curta quando estamos ansiosos. Ativar em nós a paciência é entrar no
fluxo do ritmo tranquilo da respiração.
Ser paciente
é voltar sobre nossos próprios pés, enraizar-nos, aterrissar, estar aí, não nos
deixar arrastar pela emoção. Após ter expirado profundamente, alguém é capaz de
escutar o outro, é capaz de ser paciente.
A paciência é tecida na espera, mas também é
uma virtude que se ativa no esforço constante, muitas vezes rotineiro e pouco heroico.
A paciência abre a possibilidade do novo futuro, mantém acesa a busca e
movimenta valores como a perseverança, o discernimento, a confiança, a
resistência, a contemplação...
Segundo o evangelho deste domingo, o mistério escondido numa semente e as potencialidades presentes no ser humano merecem de todos nós o
sagrado respeito pelo ritmo de crescimento, suscitando em nós uma atitude de
admiração e encantamento.
A sementeira já foi realizada com
êxito, as forças de Deus continuam agindo, mesmo ocultas e desenvolvendo-se de
uma forma silenciosa. Ainda não chegou a colheita,
mas, com certeza ela virá. Enquanto isso, convém esperar pacientes e
tranquilos e confiar na ação providente de Deus. O ativismo, a pressa e a
inquietação não nos farão atingir os objetivos que almejamos; não são as
pessoas que realizam o Reino de Deus por suas forças; o Reino chega pela força de Deus e vai crescendo silenciosamente, “por
si só”, sem que se perceba a sua expansão.
As três pequenas e inspiradas
parábolas deste domingo nos falam de espera paciente, de respeito aos ritmos e
processos, de confiança no dinamismo da vida... Jesus, em diferentes
intervenções, faz referência a todo o processo agrícola, desde o plantio da
semente até a colheita dos frutos. Semear, cuidar do crescimento, colher... tem
seu ritmo próprio, o ritmo da natureza.
As três parábolas têm uma
mensagem comum. Nas três, o Reino de Deus se compara com algo pequeno e, ao
mesmo tempo, carregado de vida, que cresce e se manifesta pouco a pouco, a
partir de dentro, sem ruídos nem aparências. Não se impõe como uma superestrutura
na qual vivemos ou temos, mas que perpassa e transforma tudo, como uma força
silenciosa, mas potente, que vem da natureza, não de nós mesmos.
Infelizmente, estamos perdendo o ritmo da natureza
e queremos que tudo aconteça com a mesma rapidez quando nos comunicamos através
dos meios eletrônicos. Temos “entranhas de impaciência”. Desistimos facilmente
diante da falta de frutos ou as más ervas que crescem no campo da vida;
queremos que as coisas sejam como imaginamos que devem ser; queremos plantar
hoje e encher os celeiros amanhã. É preciso voltar a aprender com a mãe
natureza.
Um olhar repousado e paciente supõe
capacidade contemplativa e vida interior, aprender a diminuir a velocidade de
nossas vidas, ações e pensamentos, e preparar-nos para a serenidade e para a
espera criativa.
“A idolatria começa com um gesto de impaciência” (Onaknin). Na
parábola do trigo e joio a impaciência dos empregados
leva-os a querer ter o controle do campo, onde fora semeada boa semente. A paciência,
pelo contrário, está na entranha mesma da Vontade de Deus, que quer que cada
coisa se desenvolva em liberdade, com seu tempo e seu espaço, sem que ninguém
se sinta ameaçado. A paciência é mão estendida para Deus e para o outro,
enquanto a impaciência é um punho que ameaça e arrebata.
O “apressado”, coloca-se em estado de
revolta contra o que ainda está inacabado, sufocando seu amadurecer e impedindo
o ritmo normal de desenvolvimento.
A “pressa” tende a mostrar-se raivosa
e impor-se, cega, à realidade. Prisioneiro de suas limitações, o impaciente julga absurda toda demora e
mostra-se incapaz de ter interesse por tudo o que o cerca. Impaciente e irado,
caracteriza-se pela intolerância que é destruidora.
A paciência, por sua vez, nos dispõe a olhar ao
nosso redor e sermos surpreendidos por tanta beleza; ela nos possibilita aguardar e deixar-nos “tocar”
por algo surpreendente.
Cada um de nós recebeu milhões de boas sementes ao longo de nossa vida. Também
nos foram oferecidos todos os nutrientes que precisamos para crescer em meio às
más ervas, misturadas em nossa realidade interior. Será que somos conscientes
de que germinar e dar frutos, fermentar e mudar nosso ambiente, é um processo
lento que requer nossa colaboração? Como vivemos os tempos nos quais parece que
estamos debaixo da terra, no escuro, para poder sair e dar frutos?
É preciso, sobretudo, escutar nosso terreno interior com mais profundidade. Ali há um
rico “celeiro” e reservas dos melhores recursos que devem ser mobilizados para
o nosso crescimento e maturidade.
A
espiritualidade inaciana nos revela que a paciência é uma
ferramenta imprescindível no processo de decisão, uma luz que indica o próximo
passo no longo caminho de construção de nós mesmos. O hábito permanente do discernimento
pode tornar revolucionários os pequenos gestos de cada dia.
Pois a
paciência implica aprender a parar nas encruzilhadas dos caminhos para eleger o
melhor.
A paciência faz a vida; ela mobiliza nossos recursos mais nobres, desperta a criatividade e nos impulsiona a investir nossas melhores energias naquilo que é essencial e que dá sentido ao nosso caminhar.
Texto bíblico: Mt 13,24-43
Na oração: Devemos deixar transparecer a paciência do Criador e trazer em nós a
marca do tempo, dominando a pressa, purificando-a pela mística da atenção a tudo e todos que compõem o
nosso cotidiano. Como simples peregrinos
que somos, sempre a caminho, haveremos de suportar, pacientes, o adiamento. Em
clima de festa sentiremos a vida
em sua lenta e promissora evolução.
- Seu ritmo cotidiano é iluminado
pela paciência do Criador, que trabalha em tudo e em todos ou ele tem a marca
da pressa, da ansiedade, da impaciência?...
sexta-feira, 14 de julho de 2023
Deus é “semente fecunda” em nosso interior
Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 15º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).
“O semeador saiu para semear” (Mt 13,3)
O ser humano é
surpreendente, inesperado, imprevisível... é pulsação original, é interpelação
inquietante; é existência peregrina, é identidade dinâmica...; é uma mina de
significados e riquezas.
Com inesgotável potencialidade, ele re-cria a natureza e tem a
possibilidade de inventar a sua própria vida. Onde há ser humano há espírito
inteligente, impulso de liberdade e manifestação de tenacidade.
Tratar com
o ser humano é tratar com o imponderável, o misterioso... Ele é seduzido pela
liberdade que lhe apresenta horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele
é “espaço à
vida aberta”, “vida que se expande”. Com seu pensamento e
seu sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Essa capacidade é o que nós
chamamos transcendência, isto é,
“transcende, rompe, vai para além
daquilo que é dado”.
Numa palavra, o
ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência,
projeta-se em muitas
direções.
O ser humano é mais do que parece
ser. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais
criativo, mais arrojado, mais responsável... “Desejando e elegendo aquilo que mais nos conduz...” (Santo Inácio).
Jesus
expressa toda essa originalidade e riqueza do ser humano através da parábola do
camponês que, com suas mãos abertas, espalha as “sementes” em
diferentes terrenos.
A parábola
começa afirmando: “Saiu
o semeador a semear”.
Ele faz isso com uma confiança surpreendente. Semeia de maneira abundante. A
semente cai em todas as partes, inclusive ali onde parece difícil que ela possa
germinar.
De fato, na semente
encontra-se presente uma grande força de
crescimento... A força da vida,
contida no interior da semente, envelhecerá e se extinguirá se não houver quem
confie nela, e arrisque a sua terra, seu tempo e seu trabalho.
Quando a semente é
enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho;
ela avança passo a passo, seja durante as horas em que as circunstâncias lhe
são mais favoráveis, porque é de dia e existe luz e calor em
abundância, seja porque é de noite, e o ambiente para seu crescimento já não é
tão propício.
Escondida ali, debaixo da terra,
envolvida pelo absoluto silêncio, a semente
germina e vai crescendo. O talo, a espiga e os frutos conduzem toda a
vitalidade da minúscula semente até a maturidade da planta. E cada árvore vive
intensamente o tempo que lhe cabe viver, o tempo suficiente para produzir
frutos em abundância.
Ao terminar
o relato da parábola do semeador, Jesus faz este apelo: “Quem tem
ouvidos, ouça!”.
Ele nos pede que prestemos muita atenção à parábola. Mas, em que deve estar
focada nossa atenção: no semeador? na semente? nos diferentes terrenos?
Tradicionalmente,
nós cristãos nos fixamos quase exclusivamente nos “terremos” onde
cai a semente, para revisar qual é nossa atitude ao escutar o Evangelho. No
entanto, é importante dirigir nossa atenção ao semeador e a seu modo
de semear.
Para nós que crescemos em um
contexto religioso desde a infância, a leitura literal desta parábola
condicionou nossa visão da realidade em dois aspectos determinantes: o dualismo
e o moralismo.
Em tal leitura aparecia a imagem do
Deus semeador como um alguém separado e, portanto, distante.
Essa crença de separação, não só
alimentava um dualismo religioso – Deus frente ao mundo – de nefastas
consequências, mas que era a fonte de outras ideias igualmente perigosas em
suas consequências: o pecado, a culpa, a alienação, o infantilismo religioso...
Com frequência, o dualismo
religioso era acompanhado de moralismo. Se a semente não dava fruto numa pessoa
devia-se simplesmente à sua própria maldade, já que não havia preparado
adequadamente seu “terreno”. Assim se fazia presente a culpa em quem acreditava
ser um terreno improdutivo ou caía-se no farisaísmo, passando a vida limitando-se
somente a cumprir normas e leis.
A verdadeira “semente” é o que há de Deus em nós.
“O
semeador saiu”.
Para semear nos campos, na terra, é preciso sair de casa. Deus é, ao mesmo
tempo, “semeador e semente”. Ele “desce”, faz um Êxodo, um
deslocamento em direção à humanidade, onde encontra diferentes terrenos.
Em nossa terra interior já está
semeada a presença de Deus; é como a semente enterrada que permanece
fértil debaixo da terra desértica pela seca prolongada, e o olhar de Deus é
como a chuva que ao cair desperta a vida presente na semente. Também gerará
novidades em nós, convertendo-nos em vidas germinais.
Deus
se derrama em todos e por todos da mesma maneira, não como produto elaborado,
mas como semente, que cada deve acolher e deixar-se fecundar por ela,
para poder frutificar. O decisivo é tomar consciência do divino que nos habita e viver em harmonia com essa realidade. O
fruto seria uma nova maneira de nos relacionar com Deus, conosco mesmo, com os
outros e com as criaturas.
A semente é o mesmo Deus-Vida
germinando em cada um de nós; sua presença é sempre fecunda.
Deus habita em suas criaturas e se
manifesta em todas elas como algo tão íntimo que se constitui como semente de
tudo o que é. Não devemos dar a entender que nós os cristãos somos os
privilegiados que temos recebido a semente (Escritura). Deus se derrama em
todos e por todos da mesma maneira (a mão-aberta).
Somente
aquele que se deixa semear experimenta o sabor da seiva da vida de Deus
entrando por suas raízes, percorrendo seu ser inteiro, fazendo-o crescer e
dando os frutos de que nosso povo precisa. Aquele que não se deixa semear vive
de ilusões e fantasias que envenenam sua existência.
Entrar no
fluxo da ação do Semeador divino é preciso sair de nossos espaços seguros, de
nossas ideias e convicções atrofiadas, de nossos próprios esquemas fechados e
abrir-nos aos diferentes terrenos.
Semear é
uma tarefa nobre na vida: semear trigo, trabalho, cultura, educação, semear
ética, valores, esperança, respeito, dignidade, sentido da vida...
Ao mesmo
tempo que nobre, semear é uma tarefa de grande responsabilidade. Pais, mestres,
escolas, universidades, meios de comunicação, igrejas, etc., todos temos a
nobre e bela tarefa de semear.
Ao nos convidar a ter raízes profundas, o Evangelho de hoje está afirmando algo muito importante: nesta terra, nesta realidade social, cultural, eclesial e política, já está semeado o Reino, já está viva e ativa a presença do Deus fiel que cria futuro. Nós nos alimentamos desta Presença na medida em que nos deixamos semear nela.
Texto bíblico: Mt 13,1-23
Na
oração:
Durante nossa vida
somos convidados a nos deixar cultivar, a sermos arados e regados pela presença
de Deus que é capaz de transformar e extrair o melhor fruto de cada um de nós.
Por isso a vocação cristã é tão simples: deixar-nos fecundar por esta presença,
deixar-nos fazer por ela e permitir que ela frutifique em nós.
- Sinta-se como a
própria Terra que, na sua evolução, chegou ao estágio de sentimento, de
compreensão, de vontade, de responsabilidade, de veneração, carregando em seu
ventre a presença d’Aquele que é, ao mesmo tempo, Semeador e semente.
sábado, 8 de julho de 2023
A gratidão dá “sabor e calor” à vida
Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 14º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).
“Dou-te graças, Pai, Senhor do céu e da terra!” (Mt 11,25)
Sabemos, através dos evangelhos, que Jesus foi sempre um homem de oração, de intimidade profunda com o Pai, nos silêncios da noite, nas montanhas, nos desertos... Nenhum evangelista nos relata o conteúdo da oração nestes momentos de solitude (solidão habitada).
No Evangelho deste domingo, Mateus “pega Jesus em flagra” e nos revela não só o modo como Jesus vivia sua relação com o Pai, mas o conteúdo desta intimidade, através de palavras carregadas de gratidão, de assombro, de admiração...; trata-se de um louvor, um canto à vida.
Estes versículos deixam transparecer um estado de exultação que não nasce de nenhum estímulo exterior concreto. Nada do que precede justifica o canto que segue. Brota, sem dúvida, de um estado permanente, cheio de agradecimento assombrado, que vai mais além de um sentimento momentâneo. É um estado de gratidão que emerge do seu coração comovido, que nem a traição e o fechamento de cidades como Corazim e Betsaida são capazes de fazer sombras.
Mateus reúne aqui vários ditos, que parecem expressar atitudes e sentimentos característicos do Mestre de Nazaré. E, nesses sentimentos, deixa transparecer sua verdade mais profunda: a gratidão, a intimidade com o Pai, a proximidade bondosa para com aqueles que estão suportando fardos desumanos, o convite a permanecer na mansidão e na humildade, o oferecimento de uma mensagem que é descanso...
A gratidão parece brotar aos borbotões das entranhas mesmas de Jesus. Isso não é estranho se temos em conta que, junto com a compaixão, a gratuidade constitui a coluna vertebral de toda sua mensagem. E é impossível experimentar gratuidade sem que surja a gratidão.
Quando tomamos consciência de que tudo é Graça, para além de todas as expressões superficiais, brota um agradecimento espontâneo, permanente e profundo.
Mas isso requer uma condição: experimentar-nos em sintonia com a corrente da Vida que procede do Pai, na qual reconhecemos nossa verdadeira identidade. De fato, ao reconhecer-nos no fluxo da Vida, em meio a tudo o que acontece, descobrimos que a gratidão é outro dos nomes de nossa identidade profunda. Na medida em que cresce a compreensão de nós mesmos, reconhecemos que, vista a partir do plano espiritual, a gratidão não é simplesmente uma ação ou qualidade – algo que podemos viver com maior ou menor intensidade -, mas outro nome de nosso ser original: “somos gratidão”, é da nossa essência mais nobre. Por isso, ao vivê-la conscientemente, experimentamos comunhão, unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.
A gratidão é, ao mesmo tempo, um sentimento e uma atitude admiravelmente terapêuticos, capaz de sustentar o nosso “tônus vital”. Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa; por outro, constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.
Na medida em que a exercitamos, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que ela expande o nossopróprio coração, favorece a alegria de viver e facilita poderosamente a convivência.
Por pouco que a observemos, poderemos advertir que a gratidão genuína não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos aquilo que acontece. Se damos graças unicamente quando nos ocorre algo que consideramos “agradável”, não temos saído ainda de nosso egocentrismo.
A gratidão autêntica é profundamente unida com a vida, flui com ela. Nasce e se apoia na compreensão de que, para além dos juízos que nossa mente possa fazer, no fundo, tudo é graça. A gratidão está intimamente relacionada com a capacidade de “ver”. Por isso, quando sabemos ver, a gratidão aflora sem obstáculos.
Pelo contrário, se permanecemos aferrados às nossas expectativas – “a vida deve responder ao meu próprio querer, interesse e desejo” -, a frustração inevitável trará consigo a resistência e o sofrimento, o enfado, a queixa e o vitimismo.
A gratidão, como força que nos “des-egocentra”, nos faz tomar distância de nossos pequenos interesses e nos abre à compreensão profunda de que, em último termo, tudo é dom, tudo é dado, tudo é graça... Somos seres agraciados, “cheios de graça”.
Como o amor, como a alegria, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada em um treinamento cotidiano, no qual, conscientemente, damos graças por tudo.
Assim compreendido, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “agradecido” e “sim”. Por tudo o que aconteceu, agradecido(a)!; diante de tudo o que virá, sim!
Ao entrarmos em sintonia com o coração “manso e humilde” de Jesus temos a oportunidade de recuperar algo que a cultura pós-moderna apagou de nossa consciência: a capacidade de admiração, a possibilidade do assombro diante de tantas realidades, simples, mas divinizadas, que nos passam desapercebidas. Custa-nos muito maravilhar-nos porque não despertamos a capacidade de assombro e de valorizar tudo o que desfru-tamos, desde o cosmos até pequenos prazeres diários como tomar um café em boa companhia.
Nosso contexto social não facilita um contínuo louvor, um “canto à vida”. Basta repassar o olhar sobre diferentes realidades – político-econômico-religioso-cultural-ecológico – para nos dar conta da dificuldade objetiva de sairmos dos trilhos das lamentações e queixas. Esquecemos muitas coisas porque não as valorizamos até que nos faltem: saúde, convivência, trabalho, possibilidade de ajudar os outros, a capacidade de superação das adversidades, a própria vida em si mesma como um campo maravilhoso no qual podemos nos esforçar para deixar transparecer as melhores potencialidades de nosso ser...
“Dar graças”, “agradecer”, “louvar” ... é também uma questão de memória. Por isso o Papa Francisco fala com frequência de “memória agradecida”.
Só a “memória agradecida” está em condições de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, das pessoas, da realidade que nos envolve..., pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles. Eles passam a serem vistos sob nova luz para serem ressignificados.
Só a “memória redentora” mobiliza nossos melhores recursos, ativa os sentimentos oblativos e é fonte de vida espiritual pois continua alimentando ressonâncias no cotidiano.
Re-cordar (visitar de novo com o coração) os benefícios concedidos por Deus nutrem nosso presente com Sua Santidade e nos desperta para um futuro novo.
Por isso, a “memória agradecida” é o húmus natural de onde brota a gratidão.
Ao “fazer memória” dos dons e bens recebidos, brota naturalmente em nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo. E é Ele mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e corações, encorajando atitudes oblativas em nós.
É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa missão.
Com isso, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vivemos e diante do que virá.
Este é o processo vital que se torna um “estilo de vida”, pois, motiva a busca, desperta o interesse, faz olhar para frente, cria disposição para a construção de respostas novas, desperta o desejo de crescer, amplia os horizontes...
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Em sintonia com o coração de Jesus, cheio(a) de gratidão, sinta-se convidado(a) a uma leitura orante de todos os sinais do Amor de Deus manifestados ao longo da história da sua vida, bem como trazer à sua memória todos os bens recebidos ao longo deste tempo. Ponderar com muito afeto tudo o que o Senhor fez por você, por meio de muitas pessoas, da sua história passada e presente; como Ele o(a) cumulou de seus próprios dons e, além disso, continua cumulando-o(a).
- Marcado(a) pela experiência da oração, deixe emergir a fina percepção de que tudo é dom de Deus, tudo é Graça, tudo é dado “de graça”. Crie um clima de contínua ação de graças.